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1 de out. de 2023

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Ouvidor63

Uma estrela social numa constelação de modos de vida alternativos

Bernardo Gutiérrez

De repente, uma projeção na parede transforma um quarto em sala de cinema. Uma mudança na estrutura da cozinha possibilita o surgimento de um novo ateliê. A rampa da garagem, originalmente feita para o acesso de veículos motorizados, permite campeonatos de skate, shows de música e festas (Ferreira, 2019). Alguns dias da semana, o térreo se transforma em um brechó comunitário. O prédio abandonado da rua Ouvidor 63 de São Paulo, depois de ser ocupado em 1º de maio de 2014, viveu um constante processo de reinvenção. Os novos moradores do Centro Cultural Ocupa Ouvidor 63, artistas procedentes de vários estados do Brasil e de outros países da América Latina, ocupas que improvisam uma vida coletiva vinculada a processos criativos, se entregaram à arte de “desinventar” espaços e objetos (Rodari, 2020). Um prédio ordinário que já abrigou a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, depois de ser ocupado, tornou-se no que Michel Foucault denomina de “contraespaço”, uma utopia localizada e em construção permanente.

Bernardo em reunião com o grupo de pesquisa na Ouvidor 63. Foto: Pedro Arantes.

Quase um ano antes da ocupação da Ouvidor 63, o parque Gezi de Istambul, na Turquia, foi tomado por um gigantesco acampamento. Uma multidão ocupou o parque Gezi para evitar a construção de um shopping. Durante a ocupação, milhares de pessoas dormiam em barracas, cozinhavam, limpavam o espaço e conviviam. A vida coletiva da ocupação provocou que muitos objetos adquirissem funções diferentes das habituais. Os limões e o vinagre eram usados para mitigar a coceira produzida pelo gás lacrimogêneo da polícia. Capacetes de operários de construção, óculos de natação e pedaços de persianas viraram escudos de proteção. As garrafas de plástico tornaram-se cinzeiros. No acampamento, máscaras médicas, cabos, tambores, lonas, extintores, latas de comida e sinais de trânsito, entre outras coisas, foram ressignificados numa nova esfera sensível. Um ano depois da experiência coletiva do parque Gezi, a artista plástica Zeyno Pekünlü começou a pintar natureza-morta com os objetos “desinventados” durante a cotidianidade do acampamento. Tentou recriar aquela “estranha combinação de objetos”, objetos-quase-totens, faíscas de um espaço temporariamente sagrado, de um novo enredo de relações sociais. Apenas sete anos depois da ocupação a artista “voltou a ver de novo um limão como um limão” (Pekünlü, em entrevista ao autor).

Ativistas do Parque Gezi (Istanbul) e do Movimento Parque Augusta (São Paulo), juntos no Parque Augusta durante 2014. Foto: Movimento Parque Augusta, divulgação.

Os processos de ocupação da Ouvidor 63 de São Paulo e do parque Gezi de Istambul, separados por onze meses e por 10.578 quilômetros, aparentemente desconectados, estão irmanados por um repertório de práticas comunitárias, formas de fazer, códigos, formas de organização, estilos de vida e imaginários. Vladimir Safatle (2012) retratou, em Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, a nova onda de protestos que sacolejou o planeta a partir de 2011. Depois dos protestos nos países árabes no começo do ano, a onda espalhou-se pelo sul da Europa (principalmente na Grécia e na Espanha), pelos Estados Unidos, por países da América Latina, África e Ásia. Depois do dia de ação global “150: United for the Global Change”, milhares de acampamentos surgiram no espaço público de meio mundo. Acampamentos, às vezes vinculados a outros espaços ocupados: parques, ruas, viadutos e prédios. A onda oxigenou também o movimento das ocupações urbanas. Na Grécia, até hospitais ou redações de TV foram ocupados (Gutiérrez, 2014). Na praça da Cinelândia, no Rio de Janeiro, brotou o acampamento OcupaRio. Do lado da Ocupa Ouvidor, no Vale do Anhangabaú, nasceu o OcupaSampa. O novo ciclo de ocupação global, que tinha marcadas diferenças organizacionais com o ciclo prévio da antiglobalização, atravessado pelo desejo de horizontalidade e pela tomada de decisões coletivas, viveu um renascimento no ano de 2013. O Brasil e a Turquia, adaptando o repertório de práticas sociais do “2011 global”, revigoraram o ciclo planetário de ação coletiva. No embalo das Jornadas de Junho de 2013, aconteceram ocupações de Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, parques, prédios e viadutos. Um período que continuou, de alguma forma, com a onda de ocupações secundaristas dos anos de 2015-2016.

A grande mídia e os agentes da esquerda tradicional demonstraram certa perplexidade perante a diversidade de demandas do novo movimento. Em alguns casos, criticaram a natureza diluída, dispersa e desorganizada dos protagonistas daquelas ocupações e, inclusive, a falta de demandas concretas. O establishment parecia não perceber as nuances e as sutilezas da organização dos desorganizados (Nunes, 2014). As ocupações eram meio e fim, cenário e marco. O dia a dia daqueles acampamentos e daquelas ocupações, retransmitido em lives, documentado digitalmente e compartilhado em mídias sociais, adquiria uma função de “construção de mundo”, exaltava o prazer dos vínculos sociais e a conexão entre as pessoas. A própria ocupação transformava-se na principal demanda: outro mundo possível, outra forma de vida, uma “cotidianidade outra” fora do fluxo do mercado.

A revolução da “cotidianidade outra”

A Ocupa Ouvidor 63, além de ser um espaço de moradia, é um “laboratório para o intercâmbio de conhecimento, transitando entre a esfera do doméstico/individual e do público/coletivo” (Monroy, 2021, p. 29). Os artistas residentes na Ouvidor 63 deslocaram sua criatividade para longe dos palcos reservados tradicionalmente para a produção artística. Os espaços fluidos da Ouvidor, a circulação informal entre salas comuns, quartos e ateliês, propicia uma vida comunitária e o devir plural da própria arte. De forma intuitiva e improvisada, a vida cotidiana dentro da ocupação configura a última fronteira da arte teorizada por Claire Bishop (2018): a obra artística não é só um produto, mas a teia de relações surgida ao longo do processo criativo. Ao mesmo tempo, a vida coletiva adquire camadas de performance. A vida coletiva se constitui “em disposições de corpos, em recortes de espaços e tempos singulares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, em coreografias próprias” (Rancière, 2012 apud Gomes, 2015, p. 2283).

Nas assembleias da Ouvidor, como argumenta Judith Butler (2015), em Notes towards a performative theory of assembly, a aliança dos corpos não é reduzível a indivíduos e acontece justamente entre aqueles que participam na performatividade compartilhada. Nas assembleias, existe “uma representação performativa que só pode articular uma boa vida no sentido de uma vida habitável” (Butler, 2015, p. 218, tradução nossa). “Corpo, corpos, carne pulsando dentro de um prédio que alguns moradores consideram um ser vivo” (Tamyris Soares, em entrevista ao autor). O corpo do outro passa a ser o que Suely Rolnik (2006) denomina uma “presença viva” com a qual “construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade”. A “presença viva” está feita de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos. Nosso corpo é um corpo vibrátil. Um corpo que, espelhado nos outros, tem o poder de vibração das forças do mundo.

Por outro lado, a execução coletiva das tarefas domésticas, dever e prazer coletivo na Ouvidor 63, desfaz o estigma colocado pela sociedade sobre elas. Na ocupação, cozinhar, limpar ou cuidar dos outros não são funções subalternas. Formam parte da essência criativa do espaço. No segundo andar do prédio, há um vasto espaço aberto com uma biblioteca, algumas mesas e um vão onde crianças brincam. As crianças, de fato, circulam à vontade pela maioria dos espaços. Já existiu uma brinquedoteca e é habitual a contação de histórias para elas (Soares, em entrevista ao autor). A facilidade das crianças para criar contraespaços é fundamental, segundo Foucault (2013), para quebrar a rígida distribuição espacial dos adultos.

A pesquisa The aesthetic of protest (McGarry et al., 2019), realizada sobre a ocupação do parque Gezi de Istambul, provou que o acampamento, a efêmera República de Gezi, fez emergir coletividades que transcendiam sua heterogeneidade social graças “às práticas do dia a dia, de um viver juntos que mantinha a higiene e as clínicas, recolhia lixo, compartilhava comida, papos sem fim e celebrava alegres comemorações” (Werbner, 2014, p. 7). A turca Begüm Özden Fırat, que estudou as imagens do ciclo de protestos global 2011-2013, ficou surpresa ao reparar que as fotografias das ações de limpeza dos acampamentos eram as mais compartilhadas em mídias sociais. Varrer, passar pano ou recolher lixo, atos realizados quase sempre de forma coletiva, reforçavam o sentimento de pertencimento ao lugar e à comunidade (Fırat, 2020). A limpeza e os trabalhos considerados habitualmente como improdutivos, realizados principalmente por mulheres, brilhavam nos acampamentos como criação artística de vanguarda, tal como reivindica o movimento da maintenance art (Ukeles, 1969).

Clínica Veterinária auto organizada do acampamento do parque Gezi de Estambul durante 2013

Cozinhar é criar. Cozinhar é resistir

No dia a dia da Ouvidor 63, a cozinha merece uma menção especial. O ato de cozinhar, que acontece em diferentes andares graças a planilhas de organização coletiva, cria e tece, segundo a pesquisadora Alana Moraes, uma infrapolítica composta por memórias ancestrais, conhecimentos autônomos transmitidos por gerações sem os quais não sobreviveríamos. Moraes defende que as cozinhas, espaços centrais em quilombos, aldeias, acampamentos de refugiados, ocupações e assentamentos, são os espaços mais abertos a experimentar coisas que favoreçam a vida compartilhada.

Estar na cozinha é ter que realizar um feito e o sucesso desse feito-feitiço é conferido por aqueles e aquelas que fazem parte da comunidade sempre provisória entre cozinheiras e comensais. Ao contrário das fábulas de salvação dos heróis, na cozinha tudo é sempre sobre relações. Mais do que “esclarecer”, a cozinha nos exige uma atenção para todas as tarefas ordinárias e invisíveis que nos mantêm vivas (Moraes, 2021).
 

O cartaz “Quem ocupa, cuida. Cozinhar é revolucionário” brilhou durante a 35ª Bienal de São Paulo, no espaço reservado para a Cozinha da Ocupação 9 de Julho dentro da mostra. Convidando a Cozinha da Ocupação, a Bienal reivindicou, em palavras de Manuel Borja-Villel (2023), “a comida como um lugar de estarmos juntos”. Cacá Mousinho, artista plástica vinculada à Cozinha da Ocupação 9 de Julho de São Paulo, considera que a “cozinha é todo um acontecimento que trabalha com o corpo do sensível” (Mousinho, em entrevista ao autor).

Limpar e cozinhar. Cuidar e conviver. Sobreviver e criar. A vida na Ouvidor 63, com seus repertórios para defender o espaço de inimigos externos e com seus mecanismos para sustentar a organização coletiva, transforma-se no que a pesquisadora Judith Revel define como “assincronia resistencial”, ou seja, uma resistência que afirma sua dimensão positiva, afirmativa e propositiva; essa resistência expressa sua diferença criativa, sua capacidade de inventar um novo ser, novas formas de vida e novas formas de subjetivação (Revel, 2009).

Thiago Vinícius da Silva, da Agência Solano Trindade, fala de uma resistência criativa à brasileira, uma arte da resistência que emerge das periferias, dos quilombos, das aldeias, das quebradas, dos assentamentos e das ocupações. Segundo ele:

Nosso fazer artístico passa por sobreviver, morar, refletir, criar, pesquisar, se alimentar, enfim, um caldeirão em ebulição em que é preciso entender as opressões para combatê-las e saber pensar o espaço para se organizar nele. (Silva, 2023).

Cozinha colaborativa da Acampada Sol, na puerta del Sol de Madri, ocupada pelo movimento 15M o dia 15 de maio de 2011

Constelação local, constelação global 

No início de 2015, uma impressora apareceu na Ouvidor 63, proveniente do Art Palácio. No final de 2013, a Prefeitura de São Paulo havia cedido temporariamente a gestão do cinema Art Palácio, abandonado durante muitos anos, a diferentes coletivos culturais. A impressora, comprada com dinheiro público, acabou na Ouvidor 63, uma ocupação que bate de frente contra os interesses do capital privado. Os ativistas do Parque Augusta iam à Ouvidor, entre outras coisas, para imprimir filipetas e cartazes na impressora. A Ouvidor 63 tornou-se um vértice crucial no triângulo autogestionado cinema-parque-ocupa. Simultaneamente, a ocupação tornou-se um nó importante de múltiplas redes de ação e afeto de outros espaços ocupados no país.

A pesquisadora Mariana Angelis Ferreira estudou o papel da Ocupação Ouvidor 63 nas mediações culturais e sociais de São Paulo. Segundo ela, a Ouvidor cumpriu um papel de mediação importante entre OcupaSampa (localizada inicialmente no Vale do Anhangabaú), o Estúdio Lâmina (Avenida São João, 108) e a Casa Amarela Quilombo Afroguarany, uma ocupação artística estabelecida em 2014 (Ferreira, 2019). Apesar de a OcupaSampa ter existido apenas no ano de 2011, foi um criadouro para a futura Ouvidor 63. Criou uma atmosfera, um jeito de ocupar e metodologias participativas para a tomada de decisões. Depois da ocupação do Parque Augusta, o fluxo entre a Ouvidor 63 e o novo espaço ocupado intensificou-se, com diversas camadas internacionais.

O movimento Parque Augusta participou na criação de uma rede de doze parques ameaçados em São Paulo, todos em processo de resistência. Ao mesmo tempo, essa rede estava em contato próximo com outras lutas ambientais urbanas no Brasil. A maioria era composta por processos de ocupação, como o Ocupe Estelita (Recife), o Parque Gongo (Curitiba), o Parque Cocó (Fortaleza) e o #OcupaGolfe (Rio de Janeiro). As conexões globais eram também importantes: em 2014, ativistas que participaram da ocupação do parque Gezi de Istambul visitaram o Parque Augusta. Os dois movimentos lançaram juntos o manifesto #ReclaimingOurParks. O Parque Augusta, ícone que ganhava apoio em vários países, tornou-se uma pedra angular de uma conversa multifacetada e global que alimentava a luta pelos bens comuns verdes. A Ouvidor 63, como um nó parceiro, também participava dessa conversa internacional.

Montagem: Ioga, pintura, uma ciranda e limpeza colaborativa do Parque Augusta de São Paulo durante a ocupação do parque em 2015

Paralelamente, a Ouvidor foi criando conexões com diferentes espaços ocupados no mundo. A pesquisa de Sol Emanuel Calderón Vargas, morador da Ouvidor 63, identifica o “nomadismo cultural” (circular pelo mundo morando temporariamente em diferentes ocupas) como prática habitual de uma parte de seus habitantes (Vargas, 2023). O levantamento de Sol Vargas revela que, antes de chegar à Ouvidor 63, muitos moradores da ocupa tinham circulado pelo acampamento OcupaSampa, pelo Parque Augusta, pela Casa Amarela de São Paulo e por ocupações como Ocupação Pântano Revida Aracruz (Rio de Janeiro), Ocupação Anarco Punk (Porto Alegre), Tacheles (Berlim), Palau (Barcelona), St. Paul (Londres), La Minga (Buenos Aires), El Tábano (Lima), El Hogar (Santiago de Chile) ou La Chispa (Assunção), entre outras.

As conexões da Ouvidor 63 estão construídas sobre afeto, confiança e reciprocidade. São laços fluidos, mutantes e flexíveis. Vínculos efêmeros que, vistos com perspectiva, desenham uma teia de cultura e estilos de vida. Formas de vida coletiva que, segundo a filósofa alemã Rahel Jaeggi (2018), são conjuntos de práticas coletivas que constituem a vida cotidiana, marcadas por inércias e, ao mesmo tempo, por transformações ao longo do tempo. Mais do que compor uma federação estruturada, a rede da Ouvidor 63 remete a uma constelação de estrelas. Algumas ocupas-estrelas continuam brilhando desde tempos remotos, seja o Parque Augusta, seja o Edifício Prestes Maia de São Paulo (Ferreira, 2019). Outras irradiam inspiradora luminosidade a milhares de quilômetros de distância.

Alinhadas, todas as ocupas-estrelas brilham em conjunto. Existem numa nova galáxia revelada, repentina, eternamente instantânea. Reverberam no mesmo ciclo de ocupações que sacolejou o planeta a partir de 2011. Habitam a mesma atmosfera cúmplice. Configuram um novo mundo no qual os modos de fazer evoluíram para modos de estar. Arte e vida, vida e arte, misturados, sem fronteiras, diluídos. Vida-arte no tempo espiralado da revolução da cotidianidade. Arte-vida numa velha-nova cotidianidade reinventada. Como defende Michel de Certeau (2000), praticar o espaço, ocupá-lo, é mais do que um ato de rebeldia, é repetir a experiência jubilosa e silenciosa da infância, é ser outro no lugar e ser o outro. Os modos de estar são “a vida sem catracas” que ressoava nos gritos das Jornadas de Junho de 2013. São estilos de vida alternativos, rizomáticos e atmosféricos. Modos de estar pós-capitalistas regidos pela nova estética proposta pela revista Adbusters, convocante da ocupação Occupy Wall Street de Nova York em 2011.

Se a gente vai ter que continuar para frente mais mil anos, vamos ter que elaborar uma nova narrativa, um novo roteiro… um novo tom, estilo, sentimento, humor… uma nova estética… uma nova forma de “estar” no mundo. Teremos que começar um impulso global, uma insurreição espiritual. Teremos que usar a criatividade para destruir o velho mundo, a velha estética comercial e parir um novo sentido da beleza. (Lasn, 2012).

Referências

BISHOP, Claire. El giro social: (la) colaboración y sus descontentos. Museo Experimental El Eco, 15 mar. 2018. Disponível em: https://eleco.unam.mx/el-giro-social-la-colaboracion-y-sus-insatisfacciones/. Acesso em: Acesso em: 14 dez. 2024.

BORJA-VILLEL, Manuel. Todo el capitalismo financiero es fraude. [Entrevista cedida a] Bernardo Gutiérrez. ctxt Contexto y Acción, 5 set. 2023. Disponível em: https://ctxt.es/es/20230901/Politica/44006/Manuel-Borja-Villel-Museo-Reina-Sofia-guerra-cultural-neoliberalismo-pandemia-entrevista.htm. Acesso em: 14 dez. 2024. 

BUTLER, Judith. Notes towards a performative theory of assembly. Cambridge: Harvard University Press, 2015.

CERTEAU, Michel de. La invención de lo cotidiano. México, D.F.: Universidad Iberoamericana, Departamento de Historia, 2000.

FERREIRA, Mariana Angelis. Arte Ocupa: as mediações do Centro Cultural Ocupa Ouvidor 63. 2019. 134 f. Dissertação (Mestrado em Artes) — Programa de Pós-graduação em Artes, Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

FIRAT, Begüm Özden. Drones and streets: iconic images of the Tahrir and Gezi Occupations. In: STEINBOCK, Eliza; IEVEN, Bram; DE VALCK, Marijke (ed.). Art and activism in the age of systemic crisis: aesthetic resilience. Londres: Routledge, 2020. 

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico: as heterotopias. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

GOMES, Fernanda de Oliveira. Novos cenários artísticos e urbanos: ocupações, experimentações e agenciamentos nos espaços públicos. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 24., 2015, Santa Maria. Anais [...]. Santa Maria, 2015. p. 2286-2300. Disponível em: https://anpap.org.br/anais/2015/simposios/s2/fernanda_de_oliveira_gomes.pdf. Acesso em: 14 dez. 2024. 

GUTIÉRREZ, Bernardo. Grecia se vuelca en la auto gestión. elDiario.es, 25 dez. 2014. Disponível em: https://www.eldiario.es/internacional/grecia-auto-gestion-anarquismo-economia-solidaria-movimientos-autonomos-procomun_1_4446352.html. Acesso em: 14 dez. 2024.

JAEGGI, Rahel. Critique of forms of life. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2018.

LASN, Kalle. Guerra de memes: la destrucción creativa de la economía neoclásica. Nova York: Interzone Industries, 2012.

MCGARRY, Aidan et al. Beyond the iconic protest images: the performance of ‘everyday life’ on social media during Gezi park. Social Movement Studies, [S. l.], v. 18, n. 3, p. 284-304, 2019. DOI: 10.1080/14742837.2018.1561259

MONROY, Paula. II Bienal de Artes da Ocupação Ouvidor 63: modos insurgentes de produção artística e seus desdobramentos no espaço. 2021. 117 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2021.

MORAES, Alana. Para o preparo de uma teoria política geral da cozinha ou como insistir nos feitiços contracoloniais. Escola de Ativismo, 5 out. 2021. Disponível em: https://escoladeativismo.org.br/para-o-preparo-de-uma-teoria-politica-geral-da-cozinha-ou-como-insistir-nos-feiticos-contracoloniais/. Acesso em: 14 dez. 2024..

NUNES, Rodrigo. The organisation of the organisationless: collective action after networks. Londres: Mute, 2014.

REVEL, Judith. Multitud singular: el arte de resistir. Madrid: Editorial Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2009.

RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. São Paulo: Summus Editorial, 2020.

ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. Transversal texts, out. 2006. Disponível em: https://transversal.at/transversal/1106/rolnik/pt. Acesso em: 14 dez. 2024.

SAFATLE, Vladimir. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo, 2012.

SILVA, Thiago Vinícius de Paula da. Um sentido. Bienal de São Paulo, 20 abr. 2023. Disponível em: https://35.bienal.org.br/um-sentido/. Acesso em: 14 dez. 2024.

UKELES, Mierle Laderman. Manifesto for Maintenance Art. Nova York, 1969. Disponível em: https://queensmuseum.org/wp-content/uploads/2016/04/Ukeles-Manifesto-for-Maintenance-Art-1969.pdf. Acesso em: 16 jan. 2025.

VARGAS, Sol Emanuel Calderón. Nomadismo cultural e redes de ocupações: uma análise da Ouvidor 63. [Mestrado em andamento em História da Arte]. Universidade Federal de São Paulo, 2023.

WERBNER, Pnina et al (Eds), The Political Aesthetics of Global Protest: the Arab Spring and Beyond. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2014.

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Uma estrela social numa constelação de modos de vida alternativos

Bernardo Gutiérrez

De repente, uma projeção na parede transforma um quarto em sala de cinema. Uma mudança na estrutura da cozinha possibilita o surgimento de um novo ateliê. A rampa da garagem, originalmente feita para o acesso de veículos motorizados, permite campeonatos de skate, shows de música e festas (Ferreira, 2019). Alguns dias da semana, o térreo se transforma em um brechó comunitário. O prédio abandonado da rua Ouvidor 63 de São Paulo, depois de ser ocupado em 1º de maio de 2014, viveu um constante processo de reinvenção. Os novos moradores do Centro Cultural Ocupa Ouvidor 63, artistas procedentes de vários estados do Brasil e de outros países da América Latina, ocupas que improvisam uma vida coletiva vinculada a processos criativos, se entregaram à arte de “desinventar” espaços e objetos (Rodari, 2020). Um prédio ordinário que já abrigou a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, depois de ser ocupado, tornou-se no que Michel Foucault denomina de “contraespaço”, uma utopia localizada e em construção permanente.

Bernardo em reunião com o grupo de pesquisa na Ouvidor 63. Foto: Pedro Arantes.

Quase um ano antes da ocupação da Ouvidor 63, o parque Gezi de Istambul, na Turquia, foi tomado por um gigantesco acampamento. Uma multidão ocupou o parque Gezi para evitar a construção de um shopping. Durante a ocupação, milhares de pessoas dormiam em barracas, cozinhavam, limpavam o espaço e conviviam. A vida coletiva da ocupação provocou que muitos objetos adquirissem funções diferentes das habituais. Os limões e o vinagre eram usados para mitigar a coceira produzida pelo gás lacrimogêneo da polícia. Capacetes de operários de construção, óculos de natação e pedaços de persianas viraram escudos de proteção. As garrafas de plástico tornaram-se cinzeiros. No acampamento, máscaras médicas, cabos, tambores, lonas, extintores, latas de comida e sinais de trânsito, entre outras coisas, foram ressignificados numa nova esfera sensível. Um ano depois da experiência coletiva do parque Gezi, a artista plástica Zeyno Pekünlü começou a pintar natureza-morta com os objetos “desinventados” durante a cotidianidade do acampamento. Tentou recriar aquela “estranha combinação de objetos”, objetos-quase-totens, faíscas de um espaço temporariamente sagrado, de um novo enredo de relações sociais. Apenas sete anos depois da ocupação a artista “voltou a ver de novo um limão como um limão” (Pekünlü, em entrevista ao autor).

Ativistas do Parque Gezi (Istanbul) e do Movimento Parque Augusta (São Paulo), juntos no Parque Augusta durante 2014. Foto: Movimento Parque Augusta, divulgação.

Os processos de ocupação da Ouvidor 63 de São Paulo e do parque Gezi de Istambul, separados por onze meses e por 10.578 quilômetros, aparentemente desconectados, estão irmanados por um repertório de práticas comunitárias, formas de fazer, códigos, formas de organização, estilos de vida e imaginários. Vladimir Safatle (2012) retratou, em Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, a nova onda de protestos que sacolejou o planeta a partir de 2011. Depois dos protestos nos países árabes no começo do ano, a onda espalhou-se pelo sul da Europa (principalmente na Grécia e na Espanha), pelos Estados Unidos, por países da América Latina, África e Ásia. Depois do dia de ação global “150: United for the Global Change”, milhares de acampamentos surgiram no espaço público de meio mundo. Acampamentos, às vezes vinculados a outros espaços ocupados: parques, ruas, viadutos e prédios. A onda oxigenou também o movimento das ocupações urbanas. Na Grécia, até hospitais ou redações de TV foram ocupados (Gutiérrez, 2014). Na praça da Cinelândia, no Rio de Janeiro, brotou o acampamento OcupaRio. Do lado da Ocupa Ouvidor, no Vale do Anhangabaú, nasceu o OcupaSampa. O novo ciclo de ocupação global, que tinha marcadas diferenças organizacionais com o ciclo prévio da antiglobalização, atravessado pelo desejo de horizontalidade e pela tomada de decisões coletivas, viveu um renascimento no ano de 2013. O Brasil e a Turquia, adaptando o repertório de práticas sociais do “2011 global”, revigoraram o ciclo planetário de ação coletiva. No embalo das Jornadas de Junho de 2013, aconteceram ocupações de Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, parques, prédios e viadutos. Um período que continuou, de alguma forma, com a onda de ocupações secundaristas dos anos de 2015-2016.

A grande mídia e os agentes da esquerda tradicional demonstraram certa perplexidade perante a diversidade de demandas do novo movimento. Em alguns casos, criticaram a natureza diluída, dispersa e desorganizada dos protagonistas daquelas ocupações e, inclusive, a falta de demandas concretas. O establishment parecia não perceber as nuances e as sutilezas da organização dos desorganizados (Nunes, 2014). As ocupações eram meio e fim, cenário e marco. O dia a dia daqueles acampamentos e daquelas ocupações, retransmitido em lives, documentado digitalmente e compartilhado em mídias sociais, adquiria uma função de “construção de mundo”, exaltava o prazer dos vínculos sociais e a conexão entre as pessoas. A própria ocupação transformava-se na principal demanda: outro mundo possível, outra forma de vida, uma “cotidianidade outra” fora do fluxo do mercado.

A revolução da “cotidianidade outra”

A Ocupa Ouvidor 63, além de ser um espaço de moradia, é um “laboratório para o intercâmbio de conhecimento, transitando entre a esfera do doméstico/individual e do público/coletivo” (Monroy, 2021, p. 29). Os artistas residentes na Ouvidor 63 deslocaram sua criatividade para longe dos palcos reservados tradicionalmente para a produção artística. Os espaços fluidos da Ouvidor, a circulação informal entre salas comuns, quartos e ateliês, propicia uma vida comunitária e o devir plural da própria arte. De forma intuitiva e improvisada, a vida cotidiana dentro da ocupação configura a última fronteira da arte teorizada por Claire Bishop (2018): a obra artística não é só um produto, mas a teia de relações surgida ao longo do processo criativo. Ao mesmo tempo, a vida coletiva adquire camadas de performance. A vida coletiva se constitui “em disposições de corpos, em recortes de espaços e tempos singulares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, em coreografias próprias” (Rancière, 2012 apud Gomes, 2015, p. 2283).

Nas assembleias da Ouvidor, como argumenta Judith Butler (2015), em Notes towards a performative theory of assembly, a aliança dos corpos não é reduzível a indivíduos e acontece justamente entre aqueles que participam na performatividade compartilhada. Nas assembleias, existe “uma representação performativa que só pode articular uma boa vida no sentido de uma vida habitável” (Butler, 2015, p. 218, tradução nossa). “Corpo, corpos, carne pulsando dentro de um prédio que alguns moradores consideram um ser vivo” (Tamyris Soares, em entrevista ao autor). O corpo do outro passa a ser o que Suely Rolnik (2006) denomina uma “presença viva” com a qual “construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade”. A “presença viva” está feita de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos. Nosso corpo é um corpo vibrátil. Um corpo que, espelhado nos outros, tem o poder de vibração das forças do mundo.

Por outro lado, a execução coletiva das tarefas domésticas, dever e prazer coletivo na Ouvidor 63, desfaz o estigma colocado pela sociedade sobre elas. Na ocupação, cozinhar, limpar ou cuidar dos outros não são funções subalternas. Formam parte da essência criativa do espaço. No segundo andar do prédio, há um vasto espaço aberto com uma biblioteca, algumas mesas e um vão onde crianças brincam. As crianças, de fato, circulam à vontade pela maioria dos espaços. Já existiu uma brinquedoteca e é habitual a contação de histórias para elas (Soares, em entrevista ao autor). A facilidade das crianças para criar contraespaços é fundamental, segundo Foucault (2013), para quebrar a rígida distribuição espacial dos adultos.

A pesquisa The aesthetic of protest (McGarry et al., 2019), realizada sobre a ocupação do parque Gezi de Istambul, provou que o acampamento, a efêmera República de Gezi, fez emergir coletividades que transcendiam sua heterogeneidade social graças “às práticas do dia a dia, de um viver juntos que mantinha a higiene e as clínicas, recolhia lixo, compartilhava comida, papos sem fim e celebrava alegres comemorações” (Werbner, 2014, p. 7). A turca Begüm Özden Fırat, que estudou as imagens do ciclo de protestos global 2011-2013, ficou surpresa ao reparar que as fotografias das ações de limpeza dos acampamentos eram as mais compartilhadas em mídias sociais. Varrer, passar pano ou recolher lixo, atos realizados quase sempre de forma coletiva, reforçavam o sentimento de pertencimento ao lugar e à comunidade (Fırat, 2020). A limpeza e os trabalhos considerados habitualmente como improdutivos, realizados principalmente por mulheres, brilhavam nos acampamentos como criação artística de vanguarda, tal como reivindica o movimento da maintenance art (Ukeles, 1969).

Clínica Veterinária auto organizada do acampamento do parque Gezi de Estambul durante 2013

Cozinhar é criar. Cozinhar é resistir

No dia a dia da Ouvidor 63, a cozinha merece uma menção especial. O ato de cozinhar, que acontece em diferentes andares graças a planilhas de organização coletiva, cria e tece, segundo a pesquisadora Alana Moraes, uma infrapolítica composta por memórias ancestrais, conhecimentos autônomos transmitidos por gerações sem os quais não sobreviveríamos. Moraes defende que as cozinhas, espaços centrais em quilombos, aldeias, acampamentos de refugiados, ocupações e assentamentos, são os espaços mais abertos a experimentar coisas que favoreçam a vida compartilhada.

Estar na cozinha é ter que realizar um feito e o sucesso desse feito-feitiço é conferido por aqueles e aquelas que fazem parte da comunidade sempre provisória entre cozinheiras e comensais. Ao contrário das fábulas de salvação dos heróis, na cozinha tudo é sempre sobre relações. Mais do que “esclarecer”, a cozinha nos exige uma atenção para todas as tarefas ordinárias e invisíveis que nos mantêm vivas (Moraes, 2021).
 

O cartaz “Quem ocupa, cuida. Cozinhar é revolucionário” brilhou durante a 35ª Bienal de São Paulo, no espaço reservado para a Cozinha da Ocupação 9 de Julho dentro da mostra. Convidando a Cozinha da Ocupação, a Bienal reivindicou, em palavras de Manuel Borja-Villel (2023), “a comida como um lugar de estarmos juntos”. Cacá Mousinho, artista plástica vinculada à Cozinha da Ocupação 9 de Julho de São Paulo, considera que a “cozinha é todo um acontecimento que trabalha com o corpo do sensível” (Mousinho, em entrevista ao autor).

Limpar e cozinhar. Cuidar e conviver. Sobreviver e criar. A vida na Ouvidor 63, com seus repertórios para defender o espaço de inimigos externos e com seus mecanismos para sustentar a organização coletiva, transforma-se no que a pesquisadora Judith Revel define como “assincronia resistencial”, ou seja, uma resistência que afirma sua dimensão positiva, afirmativa e propositiva; essa resistência expressa sua diferença criativa, sua capacidade de inventar um novo ser, novas formas de vida e novas formas de subjetivação (Revel, 2009).

Thiago Vinícius da Silva, da Agência Solano Trindade, fala de uma resistência criativa à brasileira, uma arte da resistência que emerge das periferias, dos quilombos, das aldeias, das quebradas, dos assentamentos e das ocupações. Segundo ele:

Nosso fazer artístico passa por sobreviver, morar, refletir, criar, pesquisar, se alimentar, enfim, um caldeirão em ebulição em que é preciso entender as opressões para combatê-las e saber pensar o espaço para se organizar nele. (Silva, 2023).

Cozinha colaborativa da Acampada Sol, na puerta del Sol de Madri, ocupada pelo movimento 15M o dia 15 de maio de 2011

Constelação local, constelação global 

No início de 2015, uma impressora apareceu na Ouvidor 63, proveniente do Art Palácio. No final de 2013, a Prefeitura de São Paulo havia cedido temporariamente a gestão do cinema Art Palácio, abandonado durante muitos anos, a diferentes coletivos culturais. A impressora, comprada com dinheiro público, acabou na Ouvidor 63, uma ocupação que bate de frente contra os interesses do capital privado. Os ativistas do Parque Augusta iam à Ouvidor, entre outras coisas, para imprimir filipetas e cartazes na impressora. A Ouvidor 63 tornou-se um vértice crucial no triângulo autogestionado cinema-parque-ocupa. Simultaneamente, a ocupação tornou-se um nó importante de múltiplas redes de ação e afeto de outros espaços ocupados no país.

A pesquisadora Mariana Angelis Ferreira estudou o papel da Ocupação Ouvidor 63 nas mediações culturais e sociais de São Paulo. Segundo ela, a Ouvidor cumpriu um papel de mediação importante entre OcupaSampa (localizada inicialmente no Vale do Anhangabaú), o Estúdio Lâmina (Avenida São João, 108) e a Casa Amarela Quilombo Afroguarany, uma ocupação artística estabelecida em 2014 (Ferreira, 2019). Apesar de a OcupaSampa ter existido apenas no ano de 2011, foi um criadouro para a futura Ouvidor 63. Criou uma atmosfera, um jeito de ocupar e metodologias participativas para a tomada de decisões. Depois da ocupação do Parque Augusta, o fluxo entre a Ouvidor 63 e o novo espaço ocupado intensificou-se, com diversas camadas internacionais.

O movimento Parque Augusta participou na criação de uma rede de doze parques ameaçados em São Paulo, todos em processo de resistência. Ao mesmo tempo, essa rede estava em contato próximo com outras lutas ambientais urbanas no Brasil. A maioria era composta por processos de ocupação, como o Ocupe Estelita (Recife), o Parque Gongo (Curitiba), o Parque Cocó (Fortaleza) e o #OcupaGolfe (Rio de Janeiro). As conexões globais eram também importantes: em 2014, ativistas que participaram da ocupação do parque Gezi de Istambul visitaram o Parque Augusta. Os dois movimentos lançaram juntos o manifesto #ReclaimingOurParks. O Parque Augusta, ícone que ganhava apoio em vários países, tornou-se uma pedra angular de uma conversa multifacetada e global que alimentava a luta pelos bens comuns verdes. A Ouvidor 63, como um nó parceiro, também participava dessa conversa internacional.

Montagem: Ioga, pintura, uma ciranda e limpeza colaborativa do Parque Augusta de São Paulo durante a ocupação do parque em 2015

Paralelamente, a Ouvidor foi criando conexões com diferentes espaços ocupados no mundo. A pesquisa de Sol Emanuel Calderón Vargas, morador da Ouvidor 63, identifica o “nomadismo cultural” (circular pelo mundo morando temporariamente em diferentes ocupas) como prática habitual de uma parte de seus habitantes (Vargas, 2023). O levantamento de Sol Vargas revela que, antes de chegar à Ouvidor 63, muitos moradores da ocupa tinham circulado pelo acampamento OcupaSampa, pelo Parque Augusta, pela Casa Amarela de São Paulo e por ocupações como Ocupação Pântano Revida Aracruz (Rio de Janeiro), Ocupação Anarco Punk (Porto Alegre), Tacheles (Berlim), Palau (Barcelona), St. Paul (Londres), La Minga (Buenos Aires), El Tábano (Lima), El Hogar (Santiago de Chile) ou La Chispa (Assunção), entre outras.

As conexões da Ouvidor 63 estão construídas sobre afeto, confiança e reciprocidade. São laços fluidos, mutantes e flexíveis. Vínculos efêmeros que, vistos com perspectiva, desenham uma teia de cultura e estilos de vida. Formas de vida coletiva que, segundo a filósofa alemã Rahel Jaeggi (2018), são conjuntos de práticas coletivas que constituem a vida cotidiana, marcadas por inércias e, ao mesmo tempo, por transformações ao longo do tempo. Mais do que compor uma federação estruturada, a rede da Ouvidor 63 remete a uma constelação de estrelas. Algumas ocupas-estrelas continuam brilhando desde tempos remotos, seja o Parque Augusta, seja o Edifício Prestes Maia de São Paulo (Ferreira, 2019). Outras irradiam inspiradora luminosidade a milhares de quilômetros de distância.

Alinhadas, todas as ocupas-estrelas brilham em conjunto. Existem numa nova galáxia revelada, repentina, eternamente instantânea. Reverberam no mesmo ciclo de ocupações que sacolejou o planeta a partir de 2011. Habitam a mesma atmosfera cúmplice. Configuram um novo mundo no qual os modos de fazer evoluíram para modos de estar. Arte e vida, vida e arte, misturados, sem fronteiras, diluídos. Vida-arte no tempo espiralado da revolução da cotidianidade. Arte-vida numa velha-nova cotidianidade reinventada. Como defende Michel de Certeau (2000), praticar o espaço, ocupá-lo, é mais do que um ato de rebeldia, é repetir a experiência jubilosa e silenciosa da infância, é ser outro no lugar e ser o outro. Os modos de estar são “a vida sem catracas” que ressoava nos gritos das Jornadas de Junho de 2013. São estilos de vida alternativos, rizomáticos e atmosféricos. Modos de estar pós-capitalistas regidos pela nova estética proposta pela revista Adbusters, convocante da ocupação Occupy Wall Street de Nova York em 2011.

Se a gente vai ter que continuar para frente mais mil anos, vamos ter que elaborar uma nova narrativa, um novo roteiro… um novo tom, estilo, sentimento, humor… uma nova estética… uma nova forma de “estar” no mundo. Teremos que começar um impulso global, uma insurreição espiritual. Teremos que usar a criatividade para destruir o velho mundo, a velha estética comercial e parir um novo sentido da beleza. (Lasn, 2012).

Referências

BISHOP, Claire. El giro social: (la) colaboración y sus descontentos. Museo Experimental El Eco, 15 mar. 2018. Disponível em: https://eleco.unam.mx/el-giro-social-la-colaboracion-y-sus-insatisfacciones/. Acesso em: Acesso em: 14 dez. 2024.

BORJA-VILLEL, Manuel. Todo el capitalismo financiero es fraude. [Entrevista cedida a] Bernardo Gutiérrez. ctxt Contexto y Acción, 5 set. 2023. Disponível em: https://ctxt.es/es/20230901/Politica/44006/Manuel-Borja-Villel-Museo-Reina-Sofia-guerra-cultural-neoliberalismo-pandemia-entrevista.htm. Acesso em: 14 dez. 2024. 

BUTLER, Judith. Notes towards a performative theory of assembly. Cambridge: Harvard University Press, 2015.

CERTEAU, Michel de. La invención de lo cotidiano. México, D.F.: Universidad Iberoamericana, Departamento de Historia, 2000.

FERREIRA, Mariana Angelis. Arte Ocupa: as mediações do Centro Cultural Ocupa Ouvidor 63. 2019. 134 f. Dissertação (Mestrado em Artes) — Programa de Pós-graduação em Artes, Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

FIRAT, Begüm Özden. Drones and streets: iconic images of the Tahrir and Gezi Occupations. In: STEINBOCK, Eliza; IEVEN, Bram; DE VALCK, Marijke (ed.). Art and activism in the age of systemic crisis: aesthetic resilience. Londres: Routledge, 2020. 

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico: as heterotopias. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

GOMES, Fernanda de Oliveira. Novos cenários artísticos e urbanos: ocupações, experimentações e agenciamentos nos espaços públicos. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 24., 2015, Santa Maria. Anais [...]. Santa Maria, 2015. p. 2286-2300. Disponível em: https://anpap.org.br/anais/2015/simposios/s2/fernanda_de_oliveira_gomes.pdf. Acesso em: 14 dez. 2024. 

GUTIÉRREZ, Bernardo. Grecia se vuelca en la auto gestión. elDiario.es, 25 dez. 2014. Disponível em: https://www.eldiario.es/internacional/grecia-auto-gestion-anarquismo-economia-solidaria-movimientos-autonomos-procomun_1_4446352.html. Acesso em: 14 dez. 2024.

JAEGGI, Rahel. Critique of forms of life. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2018.

LASN, Kalle. Guerra de memes: la destrucción creativa de la economía neoclásica. Nova York: Interzone Industries, 2012.

MCGARRY, Aidan et al. Beyond the iconic protest images: the performance of ‘everyday life’ on social media during Gezi park. Social Movement Studies, [S. l.], v. 18, n. 3, p. 284-304, 2019. DOI: 10.1080/14742837.2018.1561259

MONROY, Paula. II Bienal de Artes da Ocupação Ouvidor 63: modos insurgentes de produção artística e seus desdobramentos no espaço. 2021. 117 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2021.

MORAES, Alana. Para o preparo de uma teoria política geral da cozinha ou como insistir nos feitiços contracoloniais. Escola de Ativismo, 5 out. 2021. Disponível em: https://escoladeativismo.org.br/para-o-preparo-de-uma-teoria-politica-geral-da-cozinha-ou-como-insistir-nos-feiticos-contracoloniais/. Acesso em: 14 dez. 2024..

NUNES, Rodrigo. The organisation of the organisationless: collective action after networks. Londres: Mute, 2014.

REVEL, Judith. Multitud singular: el arte de resistir. Madrid: Editorial Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2009.

RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. São Paulo: Summus Editorial, 2020.

ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. Transversal texts, out. 2006. Disponível em: https://transversal.at/transversal/1106/rolnik/pt. Acesso em: 14 dez. 2024.

SAFATLE, Vladimir. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo, 2012.

SILVA, Thiago Vinícius de Paula da. Um sentido. Bienal de São Paulo, 20 abr. 2023. Disponível em: https://35.bienal.org.br/um-sentido/. Acesso em: 14 dez. 2024.

UKELES, Mierle Laderman. Manifesto for Maintenance Art. Nova York, 1969. Disponível em: https://queensmuseum.org/wp-content/uploads/2016/04/Ukeles-Manifesto-for-Maintenance-Art-1969.pdf. Acesso em: 16 jan. 2025.

VARGAS, Sol Emanuel Calderón. Nomadismo cultural e redes de ocupações: uma análise da Ouvidor 63. [Mestrado em andamento em História da Arte]. Universidade Federal de São Paulo, 2023.

WERBNER, Pnina et al (Eds), The Political Aesthetics of Global Protest: the Arab Spring and Beyond. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2014.

mais ensaios

Descubra Sobre Possíveis mundos Pós-Capitalistas

(

1 de out. de 2023

)

Ouvidor63

Uma estrela social numa constelação de modos de vida alternativos

Bernardo Gutiérrez

De repente, uma projeção na parede transforma um quarto em sala de cinema. Uma mudança na estrutura da cozinha possibilita o surgimento de um novo ateliê. A rampa da garagem, originalmente feita para o acesso de veículos motorizados, permite campeonatos de skate, shows de música e festas (Ferreira, 2019). Alguns dias da semana, o térreo se transforma em um brechó comunitário. O prédio abandonado da rua Ouvidor 63 de São Paulo, depois de ser ocupado em 1º de maio de 2014, viveu um constante processo de reinvenção. Os novos moradores do Centro Cultural Ocupa Ouvidor 63, artistas procedentes de vários estados do Brasil e de outros países da América Latina, ocupas que improvisam uma vida coletiva vinculada a processos criativos, se entregaram à arte de “desinventar” espaços e objetos (Rodari, 2020). Um prédio ordinário que já abrigou a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, depois de ser ocupado, tornou-se no que Michel Foucault denomina de “contraespaço”, uma utopia localizada e em construção permanente.

Bernardo em reunião com o grupo de pesquisa na Ouvidor 63. Foto: Pedro Arantes.

Quase um ano antes da ocupação da Ouvidor 63, o parque Gezi de Istambul, na Turquia, foi tomado por um gigantesco acampamento. Uma multidão ocupou o parque Gezi para evitar a construção de um shopping. Durante a ocupação, milhares de pessoas dormiam em barracas, cozinhavam, limpavam o espaço e conviviam. A vida coletiva da ocupação provocou que muitos objetos adquirissem funções diferentes das habituais. Os limões e o vinagre eram usados para mitigar a coceira produzida pelo gás lacrimogêneo da polícia. Capacetes de operários de construção, óculos de natação e pedaços de persianas viraram escudos de proteção. As garrafas de plástico tornaram-se cinzeiros. No acampamento, máscaras médicas, cabos, tambores, lonas, extintores, latas de comida e sinais de trânsito, entre outras coisas, foram ressignificados numa nova esfera sensível. Um ano depois da experiência coletiva do parque Gezi, a artista plástica Zeyno Pekünlü começou a pintar natureza-morta com os objetos “desinventados” durante a cotidianidade do acampamento. Tentou recriar aquela “estranha combinação de objetos”, objetos-quase-totens, faíscas de um espaço temporariamente sagrado, de um novo enredo de relações sociais. Apenas sete anos depois da ocupação a artista “voltou a ver de novo um limão como um limão” (Pekünlü, em entrevista ao autor).

Ativistas do Parque Gezi (Istanbul) e do Movimento Parque Augusta (São Paulo), juntos no Parque Augusta durante 2014. Foto: Movimento Parque Augusta, divulgação.

Os processos de ocupação da Ouvidor 63 de São Paulo e do parque Gezi de Istambul, separados por onze meses e por 10.578 quilômetros, aparentemente desconectados, estão irmanados por um repertório de práticas comunitárias, formas de fazer, códigos, formas de organização, estilos de vida e imaginários. Vladimir Safatle (2012) retratou, em Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, a nova onda de protestos que sacolejou o planeta a partir de 2011. Depois dos protestos nos países árabes no começo do ano, a onda espalhou-se pelo sul da Europa (principalmente na Grécia e na Espanha), pelos Estados Unidos, por países da América Latina, África e Ásia. Depois do dia de ação global “150: United for the Global Change”, milhares de acampamentos surgiram no espaço público de meio mundo. Acampamentos, às vezes vinculados a outros espaços ocupados: parques, ruas, viadutos e prédios. A onda oxigenou também o movimento das ocupações urbanas. Na Grécia, até hospitais ou redações de TV foram ocupados (Gutiérrez, 2014). Na praça da Cinelândia, no Rio de Janeiro, brotou o acampamento OcupaRio. Do lado da Ocupa Ouvidor, no Vale do Anhangabaú, nasceu o OcupaSampa. O novo ciclo de ocupação global, que tinha marcadas diferenças organizacionais com o ciclo prévio da antiglobalização, atravessado pelo desejo de horizontalidade e pela tomada de decisões coletivas, viveu um renascimento no ano de 2013. O Brasil e a Turquia, adaptando o repertório de práticas sociais do “2011 global”, revigoraram o ciclo planetário de ação coletiva. No embalo das Jornadas de Junho de 2013, aconteceram ocupações de Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, parques, prédios e viadutos. Um período que continuou, de alguma forma, com a onda de ocupações secundaristas dos anos de 2015-2016.

A grande mídia e os agentes da esquerda tradicional demonstraram certa perplexidade perante a diversidade de demandas do novo movimento. Em alguns casos, criticaram a natureza diluída, dispersa e desorganizada dos protagonistas daquelas ocupações e, inclusive, a falta de demandas concretas. O establishment parecia não perceber as nuances e as sutilezas da organização dos desorganizados (Nunes, 2014). As ocupações eram meio e fim, cenário e marco. O dia a dia daqueles acampamentos e daquelas ocupações, retransmitido em lives, documentado digitalmente e compartilhado em mídias sociais, adquiria uma função de “construção de mundo”, exaltava o prazer dos vínculos sociais e a conexão entre as pessoas. A própria ocupação transformava-se na principal demanda: outro mundo possível, outra forma de vida, uma “cotidianidade outra” fora do fluxo do mercado.

A revolução da “cotidianidade outra”

A Ocupa Ouvidor 63, além de ser um espaço de moradia, é um “laboratório para o intercâmbio de conhecimento, transitando entre a esfera do doméstico/individual e do público/coletivo” (Monroy, 2021, p. 29). Os artistas residentes na Ouvidor 63 deslocaram sua criatividade para longe dos palcos reservados tradicionalmente para a produção artística. Os espaços fluidos da Ouvidor, a circulação informal entre salas comuns, quartos e ateliês, propicia uma vida comunitária e o devir plural da própria arte. De forma intuitiva e improvisada, a vida cotidiana dentro da ocupação configura a última fronteira da arte teorizada por Claire Bishop (2018): a obra artística não é só um produto, mas a teia de relações surgida ao longo do processo criativo. Ao mesmo tempo, a vida coletiva adquire camadas de performance. A vida coletiva se constitui “em disposições de corpos, em recortes de espaços e tempos singulares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, em coreografias próprias” (Rancière, 2012 apud Gomes, 2015, p. 2283).

Nas assembleias da Ouvidor, como argumenta Judith Butler (2015), em Notes towards a performative theory of assembly, a aliança dos corpos não é reduzível a indivíduos e acontece justamente entre aqueles que participam na performatividade compartilhada. Nas assembleias, existe “uma representação performativa que só pode articular uma boa vida no sentido de uma vida habitável” (Butler, 2015, p. 218, tradução nossa). “Corpo, corpos, carne pulsando dentro de um prédio que alguns moradores consideram um ser vivo” (Tamyris Soares, em entrevista ao autor). O corpo do outro passa a ser o que Suely Rolnik (2006) denomina uma “presença viva” com a qual “construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade”. A “presença viva” está feita de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos. Nosso corpo é um corpo vibrátil. Um corpo que, espelhado nos outros, tem o poder de vibração das forças do mundo.

Por outro lado, a execução coletiva das tarefas domésticas, dever e prazer coletivo na Ouvidor 63, desfaz o estigma colocado pela sociedade sobre elas. Na ocupação, cozinhar, limpar ou cuidar dos outros não são funções subalternas. Formam parte da essência criativa do espaço. No segundo andar do prédio, há um vasto espaço aberto com uma biblioteca, algumas mesas e um vão onde crianças brincam. As crianças, de fato, circulam à vontade pela maioria dos espaços. Já existiu uma brinquedoteca e é habitual a contação de histórias para elas (Soares, em entrevista ao autor). A facilidade das crianças para criar contraespaços é fundamental, segundo Foucault (2013), para quebrar a rígida distribuição espacial dos adultos.

A pesquisa The aesthetic of protest (McGarry et al., 2019), realizada sobre a ocupação do parque Gezi de Istambul, provou que o acampamento, a efêmera República de Gezi, fez emergir coletividades que transcendiam sua heterogeneidade social graças “às práticas do dia a dia, de um viver juntos que mantinha a higiene e as clínicas, recolhia lixo, compartilhava comida, papos sem fim e celebrava alegres comemorações” (Werbner, 2014, p. 7). A turca Begüm Özden Fırat, que estudou as imagens do ciclo de protestos global 2011-2013, ficou surpresa ao reparar que as fotografias das ações de limpeza dos acampamentos eram as mais compartilhadas em mídias sociais. Varrer, passar pano ou recolher lixo, atos realizados quase sempre de forma coletiva, reforçavam o sentimento de pertencimento ao lugar e à comunidade (Fırat, 2020). A limpeza e os trabalhos considerados habitualmente como improdutivos, realizados principalmente por mulheres, brilhavam nos acampamentos como criação artística de vanguarda, tal como reivindica o movimento da maintenance art (Ukeles, 1969).

Clínica Veterinária auto organizada do acampamento do parque Gezi de Estambul durante 2013

Cozinhar é criar. Cozinhar é resistir

No dia a dia da Ouvidor 63, a cozinha merece uma menção especial. O ato de cozinhar, que acontece em diferentes andares graças a planilhas de organização coletiva, cria e tece, segundo a pesquisadora Alana Moraes, uma infrapolítica composta por memórias ancestrais, conhecimentos autônomos transmitidos por gerações sem os quais não sobreviveríamos. Moraes defende que as cozinhas, espaços centrais em quilombos, aldeias, acampamentos de refugiados, ocupações e assentamentos, são os espaços mais abertos a experimentar coisas que favoreçam a vida compartilhada.

Estar na cozinha é ter que realizar um feito e o sucesso desse feito-feitiço é conferido por aqueles e aquelas que fazem parte da comunidade sempre provisória entre cozinheiras e comensais. Ao contrário das fábulas de salvação dos heróis, na cozinha tudo é sempre sobre relações. Mais do que “esclarecer”, a cozinha nos exige uma atenção para todas as tarefas ordinárias e invisíveis que nos mantêm vivas (Moraes, 2021).
 

O cartaz “Quem ocupa, cuida. Cozinhar é revolucionário” brilhou durante a 35ª Bienal de São Paulo, no espaço reservado para a Cozinha da Ocupação 9 de Julho dentro da mostra. Convidando a Cozinha da Ocupação, a Bienal reivindicou, em palavras de Manuel Borja-Villel (2023), “a comida como um lugar de estarmos juntos”. Cacá Mousinho, artista plástica vinculada à Cozinha da Ocupação 9 de Julho de São Paulo, considera que a “cozinha é todo um acontecimento que trabalha com o corpo do sensível” (Mousinho, em entrevista ao autor).

Limpar e cozinhar. Cuidar e conviver. Sobreviver e criar. A vida na Ouvidor 63, com seus repertórios para defender o espaço de inimigos externos e com seus mecanismos para sustentar a organização coletiva, transforma-se no que a pesquisadora Judith Revel define como “assincronia resistencial”, ou seja, uma resistência que afirma sua dimensão positiva, afirmativa e propositiva; essa resistência expressa sua diferença criativa, sua capacidade de inventar um novo ser, novas formas de vida e novas formas de subjetivação (Revel, 2009).

Thiago Vinícius da Silva, da Agência Solano Trindade, fala de uma resistência criativa à brasileira, uma arte da resistência que emerge das periferias, dos quilombos, das aldeias, das quebradas, dos assentamentos e das ocupações. Segundo ele:

Nosso fazer artístico passa por sobreviver, morar, refletir, criar, pesquisar, se alimentar, enfim, um caldeirão em ebulição em que é preciso entender as opressões para combatê-las e saber pensar o espaço para se organizar nele. (Silva, 2023).

Cozinha colaborativa da Acampada Sol, na puerta del Sol de Madri, ocupada pelo movimento 15M o dia 15 de maio de 2011

Constelação local, constelação global 

No início de 2015, uma impressora apareceu na Ouvidor 63, proveniente do Art Palácio. No final de 2013, a Prefeitura de São Paulo havia cedido temporariamente a gestão do cinema Art Palácio, abandonado durante muitos anos, a diferentes coletivos culturais. A impressora, comprada com dinheiro público, acabou na Ouvidor 63, uma ocupação que bate de frente contra os interesses do capital privado. Os ativistas do Parque Augusta iam à Ouvidor, entre outras coisas, para imprimir filipetas e cartazes na impressora. A Ouvidor 63 tornou-se um vértice crucial no triângulo autogestionado cinema-parque-ocupa. Simultaneamente, a ocupação tornou-se um nó importante de múltiplas redes de ação e afeto de outros espaços ocupados no país.

A pesquisadora Mariana Angelis Ferreira estudou o papel da Ocupação Ouvidor 63 nas mediações culturais e sociais de São Paulo. Segundo ela, a Ouvidor cumpriu um papel de mediação importante entre OcupaSampa (localizada inicialmente no Vale do Anhangabaú), o Estúdio Lâmina (Avenida São João, 108) e a Casa Amarela Quilombo Afroguarany, uma ocupação artística estabelecida em 2014 (Ferreira, 2019). Apesar de a OcupaSampa ter existido apenas no ano de 2011, foi um criadouro para a futura Ouvidor 63. Criou uma atmosfera, um jeito de ocupar e metodologias participativas para a tomada de decisões. Depois da ocupação do Parque Augusta, o fluxo entre a Ouvidor 63 e o novo espaço ocupado intensificou-se, com diversas camadas internacionais.

O movimento Parque Augusta participou na criação de uma rede de doze parques ameaçados em São Paulo, todos em processo de resistência. Ao mesmo tempo, essa rede estava em contato próximo com outras lutas ambientais urbanas no Brasil. A maioria era composta por processos de ocupação, como o Ocupe Estelita (Recife), o Parque Gongo (Curitiba), o Parque Cocó (Fortaleza) e o #OcupaGolfe (Rio de Janeiro). As conexões globais eram também importantes: em 2014, ativistas que participaram da ocupação do parque Gezi de Istambul visitaram o Parque Augusta. Os dois movimentos lançaram juntos o manifesto #ReclaimingOurParks. O Parque Augusta, ícone que ganhava apoio em vários países, tornou-se uma pedra angular de uma conversa multifacetada e global que alimentava a luta pelos bens comuns verdes. A Ouvidor 63, como um nó parceiro, também participava dessa conversa internacional.

Montagem: Ioga, pintura, uma ciranda e limpeza colaborativa do Parque Augusta de São Paulo durante a ocupação do parque em 2015

Paralelamente, a Ouvidor foi criando conexões com diferentes espaços ocupados no mundo. A pesquisa de Sol Emanuel Calderón Vargas, morador da Ouvidor 63, identifica o “nomadismo cultural” (circular pelo mundo morando temporariamente em diferentes ocupas) como prática habitual de uma parte de seus habitantes (Vargas, 2023). O levantamento de Sol Vargas revela que, antes de chegar à Ouvidor 63, muitos moradores da ocupa tinham circulado pelo acampamento OcupaSampa, pelo Parque Augusta, pela Casa Amarela de São Paulo e por ocupações como Ocupação Pântano Revida Aracruz (Rio de Janeiro), Ocupação Anarco Punk (Porto Alegre), Tacheles (Berlim), Palau (Barcelona), St. Paul (Londres), La Minga (Buenos Aires), El Tábano (Lima), El Hogar (Santiago de Chile) ou La Chispa (Assunção), entre outras.

As conexões da Ouvidor 63 estão construídas sobre afeto, confiança e reciprocidade. São laços fluidos, mutantes e flexíveis. Vínculos efêmeros que, vistos com perspectiva, desenham uma teia de cultura e estilos de vida. Formas de vida coletiva que, segundo a filósofa alemã Rahel Jaeggi (2018), são conjuntos de práticas coletivas que constituem a vida cotidiana, marcadas por inércias e, ao mesmo tempo, por transformações ao longo do tempo. Mais do que compor uma federação estruturada, a rede da Ouvidor 63 remete a uma constelação de estrelas. Algumas ocupas-estrelas continuam brilhando desde tempos remotos, seja o Parque Augusta, seja o Edifício Prestes Maia de São Paulo (Ferreira, 2019). Outras irradiam inspiradora luminosidade a milhares de quilômetros de distância.

Alinhadas, todas as ocupas-estrelas brilham em conjunto. Existem numa nova galáxia revelada, repentina, eternamente instantânea. Reverberam no mesmo ciclo de ocupações que sacolejou o planeta a partir de 2011. Habitam a mesma atmosfera cúmplice. Configuram um novo mundo no qual os modos de fazer evoluíram para modos de estar. Arte e vida, vida e arte, misturados, sem fronteiras, diluídos. Vida-arte no tempo espiralado da revolução da cotidianidade. Arte-vida numa velha-nova cotidianidade reinventada. Como defende Michel de Certeau (2000), praticar o espaço, ocupá-lo, é mais do que um ato de rebeldia, é repetir a experiência jubilosa e silenciosa da infância, é ser outro no lugar e ser o outro. Os modos de estar são “a vida sem catracas” que ressoava nos gritos das Jornadas de Junho de 2013. São estilos de vida alternativos, rizomáticos e atmosféricos. Modos de estar pós-capitalistas regidos pela nova estética proposta pela revista Adbusters, convocante da ocupação Occupy Wall Street de Nova York em 2011.

Se a gente vai ter que continuar para frente mais mil anos, vamos ter que elaborar uma nova narrativa, um novo roteiro… um novo tom, estilo, sentimento, humor… uma nova estética… uma nova forma de “estar” no mundo. Teremos que começar um impulso global, uma insurreição espiritual. Teremos que usar a criatividade para destruir o velho mundo, a velha estética comercial e parir um novo sentido da beleza. (Lasn, 2012).

Referências

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