
(
1 de out. de 2023
)
A terceira margem
A terceira margem
Tássia do Nascimento
Aquilo que não havia, acontecia.
Guimarães Rosa
Em nosso imaginário coletivo prevalece uma percepção bastante difusa de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável em nossa sociedade. Diante disso, deixamos de conceber formas de organização anteriores a ele ou que se desenvolveram para além da perspectiva colonial. Nosso próprio olhar sobre o futuro se limita a esse ponto de vista. Mark Fisher, em seu livro Realismo capitalista (Editora, 2009), fala, para além de outros temas, sobre a necessidade de destruirmos essa aparência de “ordem natural” e construirmos uma política emancipatória que demonstre que aquilo que parece “necessário” e “inevitável” refere-se, na verdade, a um mero acaso. O impossível, em sua percepção, deve figurar como algo alcançável (Fisher, 2009). Minha pergunta, nesse sentido, seria: como fazemos isso?
Parto do princípio de que necessitamos vislumbrar outros arranjos sociais e outras formas de produção e, para isso, nossa capacidade de fabular torna-se imprescindível. A mudança de eixo precisa ser uma possibilidade e, para isso, precisamos descentralizar e ressignificar algumas práticas. A arte e, mais precisamente, a literatura têm um papel central nesse processo. O devir da ficção realiza isso, em parte.
Quando eu era adolescente li pela primeira vez o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, presente no livro Primeira histórias (Editora, ano). A princípio, um conto bastante nebuloso, mas me agarrei à sua leitura pela insistência e boa intermediação do meu professor de literatura. A terceira margem. A exatidão dessa afirmação do título andava na contramão da definição precisa de que um rio possui apenas duas faixas de terreno que se encontram em lados opostos. O que seria, então, essa terceira possibilidade?
O conto de Guimarães Rosa borra algumas fronteiras. O pai, “homem cumpridor”, decide encomendar uma canoa especial, “toda fabricada, escolhida forte” (Rosa, p. 79) para durar mais de vinte anos na água. Em um determinado dia, “sem alegria nem cuidado”, o homem colocou o chapéu e acenou um adeus para a esposa e os filhos. Sem dizer uma palavra, entrou na canoa e partiu. Mas não foi uma partida que aconteceu em estado físico. Ele permaneceu ali, no rio, próximo à casa. “Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais” (Rosa, p. 80).
A princípio, sua transgressão pode ser vista como insana, mas esse olhar apenas acontece porque sua atitude abandona algo pré-estabelecido. A terceira margem aparece no conto não como um lugar pré-estabelecido, mas como um estado. O pai é a terceira margem. Aquilo que antes não era concebido, naquele momento acontecia, tal qual a epígrafe deste ensaio. Há ali uma invenção, a criação de um entre-lugar. Aqueles que o observavam de meio a meio no rio tinham o impulso de nomeá-lo como “doido”, mas o narrador do conto adverte: “Ninguém é doido. Ou, então, todos” (Rosa, p. 84).
Para compreender o sentido da terceira margem, precisamos abandonar alguns conceitos e a imersão nesse processo pode nos permitir vivenciar novas possibilidades, encontrar novos eixos. A margem que surge no conto é um lugar de possibilidade, ideia que caminha na contramão dos significados atribuídos a essa palavra em nossa língua. Estar à margem significa estar do lado de fora, no lugar do abandono. Dela derivam palavras como marginal, usada como sinônimo de delinquente. No conto, a margem não se refere a uma ideia de ruína ou ausência.
A enunciação dessa terceira possibilidade serviu para refletir sobre o meu trabalho dentro da Ocupação Ouvidor 63. Ali ninguém é doido. Localizada em um antigo edifício construído entre 1948 e 1950, no centro da cidade de São Paulo, a ocupação do prédio de 13 andares por um coletivo de artistas aconteceu no dia 1º de maio de 2014. Mas, o que é a Ouvidor? Como podemos defini-la e pensar sobre ela? Antes de mais nada, “ao falar da ocupa, devemos usar Ouvidor 63, e não apenas Ouvidor, porque ouvidor é uma profissão. Somos uma coisa específica, então precisamos falar A Ouvidor 63” (Marina).
A primeira vez que vi Marina ela estava apalpando argila e vendendo tabaco na portaria da Ouvidor. “Você veio para a assembleia?”, ela me perguntou. Para ela, “A Ouvidor ocupa para tensionar a própria lógica da cidade (que tem multifunções), criando espaços culturais, tornando-se referência no mundo. A ocupação não é uma existência passiva, ela se faz presente e constrói uma filosofia sobre sua própria existência”.
Para Augusto, advogado de defesa, “a Ouvidor é marginal no sentido de que está na margem do rio Itororó. Essa é uma margem verdadeira e muito feliz que estamos descobrindo. Outra marginalidade interessante é a marginalidade arqueológica. A margem do caminho Peabiru (redes de estradas). Outras margens que nos trazem para o centro. A presença da Ouvidor no centro torna mais difícil marginalizar pessoas que estão na frente. Por isso é um território tão estratégico”.
mais ensaios
Descubra Sobre Possíveis mundos Pós-Capitalistas

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1 de out. de 2023
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A terceira margem
A terceira margem
Tássia do Nascimento
Aquilo que não havia, acontecia.
Guimarães Rosa
Em nosso imaginário coletivo prevalece uma percepção bastante difusa de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável em nossa sociedade. Diante disso, deixamos de conceber formas de organização anteriores a ele ou que se desenvolveram para além da perspectiva colonial. Nosso próprio olhar sobre o futuro se limita a esse ponto de vista. Mark Fisher, em seu livro Realismo capitalista (Editora, 2009), fala, para além de outros temas, sobre a necessidade de destruirmos essa aparência de “ordem natural” e construirmos uma política emancipatória que demonstre que aquilo que parece “necessário” e “inevitável” refere-se, na verdade, a um mero acaso. O impossível, em sua percepção, deve figurar como algo alcançável (Fisher, 2009). Minha pergunta, nesse sentido, seria: como fazemos isso?
Parto do princípio de que necessitamos vislumbrar outros arranjos sociais e outras formas de produção e, para isso, nossa capacidade de fabular torna-se imprescindível. A mudança de eixo precisa ser uma possibilidade e, para isso, precisamos descentralizar e ressignificar algumas práticas. A arte e, mais precisamente, a literatura têm um papel central nesse processo. O devir da ficção realiza isso, em parte.
Quando eu era adolescente li pela primeira vez o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, presente no livro Primeira histórias (Editora, ano). A princípio, um conto bastante nebuloso, mas me agarrei à sua leitura pela insistência e boa intermediação do meu professor de literatura. A terceira margem. A exatidão dessa afirmação do título andava na contramão da definição precisa de que um rio possui apenas duas faixas de terreno que se encontram em lados opostos. O que seria, então, essa terceira possibilidade?
O conto de Guimarães Rosa borra algumas fronteiras. O pai, “homem cumpridor”, decide encomendar uma canoa especial, “toda fabricada, escolhida forte” (Rosa, p. 79) para durar mais de vinte anos na água. Em um determinado dia, “sem alegria nem cuidado”, o homem colocou o chapéu e acenou um adeus para a esposa e os filhos. Sem dizer uma palavra, entrou na canoa e partiu. Mas não foi uma partida que aconteceu em estado físico. Ele permaneceu ali, no rio, próximo à casa. “Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais” (Rosa, p. 80).
A princípio, sua transgressão pode ser vista como insana, mas esse olhar apenas acontece porque sua atitude abandona algo pré-estabelecido. A terceira margem aparece no conto não como um lugar pré-estabelecido, mas como um estado. O pai é a terceira margem. Aquilo que antes não era concebido, naquele momento acontecia, tal qual a epígrafe deste ensaio. Há ali uma invenção, a criação de um entre-lugar. Aqueles que o observavam de meio a meio no rio tinham o impulso de nomeá-lo como “doido”, mas o narrador do conto adverte: “Ninguém é doido. Ou, então, todos” (Rosa, p. 84).
Para compreender o sentido da terceira margem, precisamos abandonar alguns conceitos e a imersão nesse processo pode nos permitir vivenciar novas possibilidades, encontrar novos eixos. A margem que surge no conto é um lugar de possibilidade, ideia que caminha na contramão dos significados atribuídos a essa palavra em nossa língua. Estar à margem significa estar do lado de fora, no lugar do abandono. Dela derivam palavras como marginal, usada como sinônimo de delinquente. No conto, a margem não se refere a uma ideia de ruína ou ausência.
A enunciação dessa terceira possibilidade serviu para refletir sobre o meu trabalho dentro da Ocupação Ouvidor 63. Ali ninguém é doido. Localizada em um antigo edifício construído entre 1948 e 1950, no centro da cidade de São Paulo, a ocupação do prédio de 13 andares por um coletivo de artistas aconteceu no dia 1º de maio de 2014. Mas, o que é a Ouvidor? Como podemos defini-la e pensar sobre ela? Antes de mais nada, “ao falar da ocupa, devemos usar Ouvidor 63, e não apenas Ouvidor, porque ouvidor é uma profissão. Somos uma coisa específica, então precisamos falar A Ouvidor 63” (Marina).
A primeira vez que vi Marina ela estava apalpando argila e vendendo tabaco na portaria da Ouvidor. “Você veio para a assembleia?”, ela me perguntou. Para ela, “A Ouvidor ocupa para tensionar a própria lógica da cidade (que tem multifunções), criando espaços culturais, tornando-se referência no mundo. A ocupação não é uma existência passiva, ela se faz presente e constrói uma filosofia sobre sua própria existência”.
Para Augusto, advogado de defesa, “a Ouvidor é marginal no sentido de que está na margem do rio Itororó. Essa é uma margem verdadeira e muito feliz que estamos descobrindo. Outra marginalidade interessante é a marginalidade arqueológica. A margem do caminho Peabiru (redes de estradas). Outras margens que nos trazem para o centro. A presença da Ouvidor no centro torna mais difícil marginalizar pessoas que estão na frente. Por isso é um território tão estratégico”.
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Aquilo que não havia, acontecia.
Guimarães Rosa
Em nosso imaginário coletivo prevalece uma percepção bastante difusa de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável em nossa sociedade. Diante disso, deixamos de conceber formas de organização anteriores a ele ou que se desenvolveram para além da perspectiva colonial. Nosso próprio olhar sobre o futuro se limita a esse ponto de vista. Mark Fisher, em seu livro Realismo capitalista (Editora, 2009), fala, para além de outros temas, sobre a necessidade de destruirmos essa aparência de “ordem natural” e construirmos uma política emancipatória que demonstre que aquilo que parece “necessário” e “inevitável” refere-se, na verdade, a um mero acaso. O impossível, em sua percepção, deve figurar como algo alcançável (Fisher, 2009). Minha pergunta, nesse sentido, seria: como fazemos isso?
Parto do princípio de que necessitamos vislumbrar outros arranjos sociais e outras formas de produção e, para isso, nossa capacidade de fabular torna-se imprescindível. A mudança de eixo precisa ser uma possibilidade e, para isso, precisamos descentralizar e ressignificar algumas práticas. A arte e, mais precisamente, a literatura têm um papel central nesse processo. O devir da ficção realiza isso, em parte.
Quando eu era adolescente li pela primeira vez o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, presente no livro Primeira histórias (Editora, ano). A princípio, um conto bastante nebuloso, mas me agarrei à sua leitura pela insistência e boa intermediação do meu professor de literatura. A terceira margem. A exatidão dessa afirmação do título andava na contramão da definição precisa de que um rio possui apenas duas faixas de terreno que se encontram em lados opostos. O que seria, então, essa terceira possibilidade?
O conto de Guimarães Rosa borra algumas fronteiras. O pai, “homem cumpridor”, decide encomendar uma canoa especial, “toda fabricada, escolhida forte” (Rosa, p. 79) para durar mais de vinte anos na água. Em um determinado dia, “sem alegria nem cuidado”, o homem colocou o chapéu e acenou um adeus para a esposa e os filhos. Sem dizer uma palavra, entrou na canoa e partiu. Mas não foi uma partida que aconteceu em estado físico. Ele permaneceu ali, no rio, próximo à casa. “Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais” (Rosa, p. 80).
A princípio, sua transgressão pode ser vista como insana, mas esse olhar apenas acontece porque sua atitude abandona algo pré-estabelecido. A terceira margem aparece no conto não como um lugar pré-estabelecido, mas como um estado. O pai é a terceira margem. Aquilo que antes não era concebido, naquele momento acontecia, tal qual a epígrafe deste ensaio. Há ali uma invenção, a criação de um entre-lugar. Aqueles que o observavam de meio a meio no rio tinham o impulso de nomeá-lo como “doido”, mas o narrador do conto adverte: “Ninguém é doido. Ou, então, todos” (Rosa, p. 84).
Para compreender o sentido da terceira margem, precisamos abandonar alguns conceitos e a imersão nesse processo pode nos permitir vivenciar novas possibilidades, encontrar novos eixos. A margem que surge no conto é um lugar de possibilidade, ideia que caminha na contramão dos significados atribuídos a essa palavra em nossa língua. Estar à margem significa estar do lado de fora, no lugar do abandono. Dela derivam palavras como marginal, usada como sinônimo de delinquente. No conto, a margem não se refere a uma ideia de ruína ou ausência.
A enunciação dessa terceira possibilidade serviu para refletir sobre o meu trabalho dentro da Ocupação Ouvidor 63. Ali ninguém é doido. Localizada em um antigo edifício construído entre 1948 e 1950, no centro da cidade de São Paulo, a ocupação do prédio de 13 andares por um coletivo de artistas aconteceu no dia 1º de maio de 2014. Mas, o que é a Ouvidor? Como podemos defini-la e pensar sobre ela? Antes de mais nada, “ao falar da ocupa, devemos usar Ouvidor 63, e não apenas Ouvidor, porque ouvidor é uma profissão. Somos uma coisa específica, então precisamos falar A Ouvidor 63” (Marina).
A primeira vez que vi Marina ela estava apalpando argila e vendendo tabaco na portaria da Ouvidor. “Você veio para a assembleia?”, ela me perguntou. Para ela, “A Ouvidor ocupa para tensionar a própria lógica da cidade (que tem multifunções), criando espaços culturais, tornando-se referência no mundo. A ocupação não é uma existência passiva, ela se faz presente e constrói uma filosofia sobre sua própria existência”.
Para Augusto, advogado de defesa, “a Ouvidor é marginal no sentido de que está na margem do rio Itororó. Essa é uma margem verdadeira e muito feliz que estamos descobrindo. Outra marginalidade interessante é a marginalidade arqueológica. A margem do caminho Peabiru (redes de estradas). Outras margens que nos trazem para o centro. A presença da Ouvidor no centro torna mais difícil marginalizar pessoas que estão na frente. Por isso é um território tão estratégico”.
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