
(
1 de out. de 2023
)
Des-pejo
depejo
Thaissa Machado Gonçalves
Quando recebi o convite para me juntar ao projeto de pesquisa, o trabalho já estava em curso, e para que eu pudesse acompanhar todas as dinâmicas de entender o texto acadêmico e debater sobre como desconstruir o academicismo exacerbado, pensar em linguagens acessíveis, definir por onde começar, era importante um exercício sobre o “Eu Pesquisador”. Qualquer um ali foi chamado porque existe um propósito, e, sobretudo, porque consegue trocar com o projeto. O que você pesquisa? Quem é você e como você dialoga com as ocupações? Como iniciou sua relação com a Ouvidor?
Depois que todos escreveram e compartilharam suas experiências, fui convidada pelo grupo a identificar um tema no texto que mais ressoava comigo, ou que mais aparecia, e percebi que, na dinâmica das palavras, o que eu mais trazia era sobre despejo. A constelação de palavras e frases que todos os pesquisadores escolheram se entrelaçam, mas nunca deixou de existir a possibilidade de nos desfazermos dela e trabalhar em outras questões.
O que era falar sobre despejo? Bem, definimos que, para além do que já era muito debatido no grupo de pesquisa, cada um deveria entender a origem, a relação com outras palavras, do termo de pesquisa escolhido, assim como suas referências na literatura. O termo “despejo” está intimamente conectado a uma série de sinônimos e antônimos, cada um invocando nuances específicas que ampliam sua riqueza semântica.
Sinônimos como “desapropriação”, “desapossamento”, “exclusão”, “deslocamento” e “expulsão” compartilham uma natureza de afastamento — de propriedades, posse ou espaços —, mas cada um carrega suas próprias conotações legais e sociais, e diferem de seu significado original etimológico. Esses sinônimos destacam diferentes aspectos do processo de despejo — pela retirada de propriedade, pela perda de posse ou pela exclusão de espaços sociais.
Por outro lado, antônimos como “posse”, “permanência”, “pejo”, “retenção”, “preservação” e “sustentar” delineiam formas de resistência, manutenção e cuidado contra a ideia de despejo. Enquanto a resistência e a posse refletem a luta contra a remoção, a permanência sugere a ideia de continuidade e estabilidade. “Pejo” aponta para a moderação e o constrangimento, normalmente atribuídos ao “animal” selvagem. Des-pejar, a ausência de pejo, pode representar a natureza combativa. ????? que não se ausentes no despejo, enquanto “retenção”, “preservação” e “sustentar” enfatizam a ideia de manter, proteger e sustentar, contrastando com a ideia de despejo como uma ação abrupta e forçada. Esses sinônimos e antônimos, quando comparados, destacam a complexidade do termo “despejo” e a diversidade de situações e emoções associadas a essa prática em diferentes contextos.
No grupo de pesquisa, fui questionada sobre como podemos escrever sobre um tema difícil, atual e delicado para a maior ocupação artística da América Latina, a Ouvidor 63, que enfrenta ameaça de despejo e uma batalha judicial. Como devo abordar com respeito essa ferida ainda aberta e inflamada? Como processar isso não sendo uma artista-moradora e vivendo em outra cidade?
Onde existe ocupação, existe despejo, ou a sua ameaça. O fenômeno dos despejos em ocupações urbanas é uma realidade dolorosa, de vários rostos, e recorrente nas grandes cidades. O ato de despejo é uma prática que, embora frequentemente associada a processos jurídicos, carrega em si profundas implicações sociais e políticas. A análise desse fenômeno torna-se ainda mais complexa quando se entrelaçam os conceitos de gentrificação, especulação imobiliária e artivismo. Para compreender essas dinâmicas, é essencial recorrer a uma lente crítica que aborde as relações de poder e as histórias invisibilizadas daqueles que são mais diretamente afetados.
Precisamos reconhecer narrativas das populações que são marginalizadas, e ainda são excluídas sistematicamente de registros históricos, como podemos observar no livro Os excluídos da História, escrito por Michelle Perrot (ano). E, na realidade dos despejos, muitas vezes, falamos de um evento que não é um evento isolado, mas sim o prosseguimento de uma longa herança de exclusão social, em que os mais vulneráveis são constantemente deslocados para as margens da sociedade, com pouquíssimas histórias chegando nas livrarias.
Geralmente, as ocupações representam não apenas a luta por um lugar para viver, mas também como resistir contra um sistema que perpetua desigualdades. A ideia de ocupar é um vocabulário novo das lutas do proletariado, nas quais havia greve, piquete, barricadas, como formas de manifestação de trabalhadores em fábricas, em 1960/1970, com a influência da crise do bem-estar social, ascensão do neoliberalismo, os jovens não tendo fábricas, ocupam prédios. As ocupações passam por fases, mas se torna inevitável ocupar, dentro do imaginário das lutas da juventude, um berço de contracultura e movimento punk: se eu luto, eu ocupo.
E analisando sob a ótica de Vigiar e Punir, de Michel Foucault (2014), podemos entender como as estratégias de controle e vigilância do Estado se manifestam nessas situações. No estado de São Paulo, assim como em outras grandes metrópoles, têm sido adotadas medidas de disciplina e repressão que visam não apenas a remoção física dos ocupantes, mas também a contenção e o controle de movimentos sociais que desafiam a ordem estabelecida.
Neste ensaio, exploro como os despejos se conectam com o coletivo, como, em especial a ocupação Ouvidor 63, tem lidado com isso, e como podemos garantir o registro de tudo isso e lutar pelo seu tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Estou usando como base teórica fundamental o documento de tombamento do IPHAN, rebeliões coletivas e o poder feminino, nas ideias apresentadas por Silvia Federici, em Calibã e a Bruxa (2023), e obras como os já citados Vigiar e Punir, de Michel Foucault (2014), e Os excluídos da História, de Michelle Perrot (ano), entre outros.
A proposta é provocar manualmente, entre o coletivo, a relação de cada fio dentro da tessitura que se forma e protege o corpo, no caso, o prédio.
Presente de Natal (pedidos de reintegração de posse do Estado em dezembro)
No estado de São Paulo, a movimentação é no mínimo estranhamente “coordenada”, e usam as mesmas ferramentas de poder para perseguir e suprimir ocupações vigentes.
Em dezembro de 2023, a Ocupação Ouvidor 63 foi aconselhada a preparar um documento frente à ameaça da desocupação do prédio, elaborando uma proposta oficializada de uso do prédio, o que apropriadamente causou muitas controvérsias e debates dentro da Ouvidor sobre um receio de a ocupação anarco-punk se tornar institucionalizada, tal como a Casa Amarela, que, após sua institucionalização, teve uma limitação das atividades promovidas e dos artistas residentes.
Na minha cidade, São José dos Campos, acompanhei o sorrateiro golpe em outra ocupação, a comunidade Esperança que fica localizada no “banhado”, uma região de proteção ambiental localizada próximo ao centro da cidade.
Em 2023, várias foram as desocupações provocadas, um interesse de diversos estados e países de reaver a posse de imóveis ocupados, com estratégias surpresas similares ao agirem contra a população ocupante. Navegando pelo Archive.org (uma grande base de arquivos na internet com o objetivo de preservar da perda), descubro um nicho, uma rede de usuários ocupantes, ex-ocupantes ou ativistas de todo o mundo que se unem para alimentar um bom material para servir de fonte de informação, pesquisa, inspiração, enfim!

Fonte: Archive
O material vai desde artigos acadêmicos, passando pela digitalização de diversos zines e posteres políticos de ocupações, até documentários como o How to Squash a Squat, de Franck Goldberg, que relata a ação violenta da polícia nova-iorquina no despejo, demolição e queima de uma ocupação que se chamava NYC East Village, em 1989, e o que me chamou a atenção, um podcast gravado em julho de 2023, durante a invasão e o despejo dos artistas da STOP, em Porto, Portugal.
[...] I Deserve to be Protected. [...] I dont have anyone now.
O podcast foi gravado pela Rádio Paralelo enquanto os artistas e as pessoas que não ocupavam protestavam no período da tarde. Segundo a legenda, 500 artistas do Centro Comercial STOP, com aproximadamente 104 lojas com salas de ensaio e centros culturais, foram despejados numa operação policial por ordem da câmara municipal da cidade de Porto. Uma das entrevistadas comenta que os policiais apareceram à paisana, de madrugada, e invadiram pela manhã, retirando todos os que não tivessem alvará para funcionamento, o que os artistas estranham é, segundo a legenda original, a câmara ignorar por tantos anos, e quando se propõe a enxergar a questão, é através de uma ação autoritária.

Ilustração Monopoly C.C. Stop por @esbocos_rabiscos, republicada no instagram da STOP


Centro Comercial STOP. Autor desconhecido. Publicadas no Site All About Portugal
Vigilância, disciplina e controle social
Os despejos não são apenas uma questão de retirada física de pessoas de um espaço; eles representam um mecanismo de controle social. Quando uma ocupação é colocada abaixo, o Estado e as forças econômicas estão, de certo modo, reafirmando seu poder sobre aqueles que desafiam e driblam o sistema. As ocupações, muitas vezes situadas em prédios ou terrenos abandonados, transformam-se em símbolos de resistência contra a especulação imobiliária e a gentrificação.
O ato de ocupar não é apenas uma necessidade de um teto que te protege e dá dignidade, mas também uma forma de contestação. As comunidades que constroem nesses espaços desenvolvem redes de solidariedade e criam novas manifestações de cunho político-social, frequentemente em oposição ao modelo capitalista tradicional. Quando um despejo acontece, essas redes são rompidas, o tecido de toda a comunidade é esgarçado e a tentativa é de desmobilizar a resistência coletiva, de acabar com “o sabá das bruxas”.
Em Vigiar e Punir, Foucault (2014) explora como o poder se exerce por meio de mecanismos de vigilância e disciplina, transformando a sociedade em uma “sociedade disciplinar” onde os corpos são constantemente observados e controlados. No contexto das ocupações urbanas, essa vigilância se manifesta através da presença constante das forças de segurança, do monitoramento das atividades dos ocupantes e das estratégias legais e administrativas que buscam regular e limitar essas iniciativas.
O Estado de São Paulo, por exemplo, utiliza uma combinação de vigilância física — com a presença de policiais e câmeras de segurança — e vigilância jurídica, mediante processos judiciais que buscam criminalizar as ocupações. É relevante percebermos as diferentes vigilâncias, pois estas não apenas são ferramentas de reação ao ato de ocupar, como também fazem parte da estratégia de promover um controle social mais amplo, no qual as pessoas seguem sendo disciplinadas e persuadidas a não desafiar a propriedade privada, apontar a falta de respaldo social e questionar a ordem urbana estabelecida.
As operações de despejo em São Paulo são, muitas vezes, executadas com uma precisão que lembra as práticas disciplinares descritas por Foucault, envolvendo uma série de procedimentos legais e administrativos que visam desmobilizar as ocupações e restaurar a “ordem” no espaço urbano. Essas medidas incluem desde a emissão de mandados de reintegração de posse até o uso da força policial para remover os ocupantes.
Foucault argumenta que a disciplina não é apenas uma forma de repressão, mas também de normatização, pois estabelece padrões de comportamento que devem ser seguidos. Nas ocupações, o Estado procura impor um modelo específico de cidadania e de uso do espaço urbano, e aqueles que não se enquadram na institucionalização são punidos e removidos. As ocupações, ao desafiarem essa normatividade, se tornam alvos das medidas disciplinares do Estado, que busca restabelecer o controle sobre o território. Na história, é tudo sobre poder.
Rebeliões coletivas e a resistência
A resposta aos despejos às vezes acontece através de manifestações coletivas, na quais a comunidade se une para resistir à remoção forçada. Essas rebeliões transcendem a defesa do espaço físico, englobando também a proteção de um modo de vida construído naquele espaço, e, no caso da Ouvidor, toda a amplitude de um centro cultural consolidado não apenas com os moradores, mas com a região do entorno e as comunidades afetadas pelos projetos que executam, ou então os espaços coletivos de auto-organização.
Essa forma de resistência é um eco das lutas históricas por direitos e reconhecimento, em que o povo se levanta contra as forças opressoras.
Silvia Federici (2023), em Calibã e a Bruxa, apresenta como a rebelião foi uma característica central nas lutas populares, especialmente durante períodos de grande transformação social e econômica. A autora observa que as revoltas camponesas e as insurgências urbanas durante a transição do feudalismo para o capitalismo foram respostas diretas à intensificação da exploração e ao controle sobre o corpo e a mente dos indivíduos.
De fato, há uma conexão direta entre a nova onda — que se traduz em um processo de acumulação baseado em despossessão, com a imposição de formas cada vez mais intensas de exploração da natureza e do corpo. Isso leva a um ataque direto contra os meios de reprodução da vida, sobretudo em comunidades camponesas, indígenas e tradicionais. E como sabemos, a guerra à reprodução é uma guerra às mulheres (Federici, 20232017, p. 16).
Assim, as rebeliões atuais contra despejos podem ser vistas como a continuidade dessas lutas históricas, respondendo à exploração e à marginalização contemporâneas, afinal “os antigos problemas continuam na agenda”.
“Nesse sentido, a história está a serviço da política, pois ela confirma que, nas regiões onde povos oprimidos mantêm suas estruturas comunais e algum controle sobre as condições de sua reprodução, há maior sucesso na resistência à exploração” (Federici, 20232017, p. 23).
Como as mulheres são afetadas
Quando você imagina os rostos de uma ocupação, de quem o seu cérebro evoca? Qual tipo de indivíduo? O meu, antes de entrar em contato com a Ouvidor, ao ouvir meu colega de faculdade falar sobre isso em aula pela primeira vez, imaginava jovens, mas principalmente homens anarquistas. Hoje eu não consigo desvincular a ideia de uma Ouvidor construída também pelas mães e mulheres que puxam e promovem várias das ações, assim como suas crianças. A Okupa transborda de talento e resistência feminina, nesses anos em diálogo, criei bons laços e carrego comigo imensa admiração pelos trabalhos de Vandal, Rose, Tamyres, Mica, (Citar mais mulheres). Todas orbitando o universo Ouvidor com projetos espetaculares que edificam a minha visão.
As mulheres frequentemente assumem papéis centrais na organização e na manutenção da comunidade, portanto, aqui não seria diferente. Essa força pode ser compreendida através das ideias de Federici sobre a importância das mulheres nas lutas populares. Ela argumenta que o controle sobre as mulheres e seus corpos foi crucial para a consolidação do capitalismo, e o empoderamento das mulheres em coletivos de ocupação desafia essas estruturas de controle. As mulheres lideram iniciativas de resistência, organizam redes de apoio mútuo e mantêm as dinâmicas sociais dentro desses espaços, transformando o espaço ocupado em um local de cuidado e resistência para todos, inclusive as crianças. Federici destaca que “A relação entre a caça às bruxas e a expropriação de terras está cada vez mais evidente” (Federici, 20232017, p. 17), e entender que existe sim uma relação vigente da expropriação de terras, e, nesse caso, uma expropriação de um prédio ocupado por muitas mulheres e mães ativistas que reivindicam o direito à moradia, e esse empoderamento é uma forma de subverter as lógicas patriarcais e capitalistas que governam o mundo.
Por que depois de quinhentos anos do domínio do capital, no início do terceiro milênio, os trabalhadores ainda são massivamente definidos como pobres, bruxas e bandoleiros? De que maneira a expropriação e a pauperização se relacionam com o permanente ataque contra as mulheres? (Federici, 20232017, p. 33).
Mães em ocupações
Quando a gente imagina os rostos da uma ocup Para compreender a profundidade das dificuldades enfrentadas, é útil considerar o relato de Carolina Maria de Jesus (ano), em Quarto de Despejo. Seu diário compartilha com o leitor as severas dificuldades enfrentadas por uma mãe favelada, incluindo a luta diária pela sobrevivência e as inseguranças associadas à falta de moradia e de recursos. Particularmente, como uma mãe solo, reaprendendo a colocar as coisas no lugar depois de ter que sair de um lugar de insegurança alimentar, e em contato com algumas mães da Ouvidor 63, ler Carolina não só ressoa com a minha luta, mas como a dessas mulheres que refletem para cuidar de seus filhos em um ambiente de extrema pobreza espelha as dificuldades enfrentadas por mães em ocupações urbanas, que também enfrentam o medo constante do despejo e da insegurança. Ambas as situações refletem uma batalha constante para assegurar não apenas um teto, mas um espaço digno e seguro para viver. As mães em ocupações, assim como Carolina, estão na linha de frente de uma luta que é tanto pela sobrevivência quanto pela dignidade, resistindo a um sistema que frequentemente ignora suas necessidades e seus direitos.

Estudo fotográfico (2022). Foto: Sol Emanuel Calderón.
Gentrificação e especulação imobiliária: despejo como ferramenta de exclusão
A partir de Foucault (2014), podemos entender os despejos como parte de um processo de normalização do espaço urbano. O Estado e as elites urbanas buscam transformar a cidade em um espaço ordenado e previsível, onde cada indivíduo tem lugar e função definidos. As ocupações, por sua natureza desafiadora e disruptiva, representam uma ameaça a essa ordem e, portanto, são alvo de uma vigilância constante e de intervenções disciplinares.
No estado de São Paulo, a normalização do espaço urbano passa pela remoção das ocupações e pela subsequente gentrificação desses espaços. O Estado não apenas remove os ocupantes, mas também apaga e redefine o uso desse território, frequentemente transformando-os em áreas de interesse para o mercado imobiliário. Esse processo é uma forma de disciplinar o espaço, garantindo que seja usado conforme as normas estabelecidas pela economia e pela política urbana.
Os mecanismos de controle descritos por Foucault podem ser observados nas práticas de despejo, em que o Estado e o capital atuam em coautoria para remover populações marginalizadas. O despejo não é apenas a retirada física de uma residência; é também a negação de direitos fundamentais e a imposição de uma ordem social excludente. A especulação imobiliária, nesse sentido, serve para reforçar e perpetuar a desigualdade, subordinando as necessidades humanas ao lucro.
A gentrificação é um processo pelo qual áreas urbanas degradadas são revitalizadas, muitas vezes resultando na expulsão de moradores antigos para dar lugar a uma população mais abastada. A especulação imobiliária atua como motor desse processo, no qual o valor da terra e das propriedades é artificialmente inflado, tornando o custo de vida insustentável para os antigos residentes. Essas dinâmicas, que aparentam ser meramente econômicas, são profundamente políticas e revelam as estruturas de poder que Foucault analisa em Vigiar e Punir (2014). A lógica de controle social, aplicada ao espaço urbano, busca disciplinar e normalizar quem tem direito à cidade e quem deve ser excluído dela.
Conclusão
Os despejos em ocupações urbanas são manifestações de violência estrutural que visam desmobilizar coletivos organizados e reafirmar o controle sobre a população. No entanto, a resistência a esses despejos, frequentemente liderada por mulheres, é uma continuidade das lutas históricas contra a exploração e o controle social. Essas resistências podem ser compreendidas como parte de um movimento maior que desafia as estruturas de poder existentes e busca criar novas formas de convivência comunitária. As ocupações, portanto, transcendem a simples disputa por moradia, uma vez que representam uma luta por espaços onde novas possibilidades de vida e organização social possam florescer, desafiando um sistema que marginaliza e exclui.
A história oficial, conforme aponta Perrot (ano), tende a ignorar aqueles que não têm poder ou voz dentro das estruturas dominantes. Contudo, são essas histórias de luta que revelam as verdadeiras consequências da gentrificação e da especulação imobiliária. Cada despejo é uma narrativa de perda e resistência, em que comunidades se organizam para lutar pelo direito à cidade e à moradia digna. Analisando os despejos sob a perspectiva de Vigiar e Punir (Foucault, 2014), observamos como o Estado utiliza vigilância e disciplina para controlar e remover aqueles que desafiam a ordem estabelecida. As ocupações, ao romperem com as normas tradicionais de propriedade e uso do espaço, tornam-se alvos de um sistema que busca normalizar e regular todos os aspectos da vida urbana. Medidas disciplinares, como as intervenções punitivas em São Paulo, exemplificam esse processo de controle, no qual a vigilância constante visa manter a ordem sobre o território e seus habitantes.
Diante da violência simbólica e física do despejo, o artivismo surge como uma forma poderosa de resistência. A combinação de arte e ativismo permite que as comunidades afetadas expressem suas histórias, denunciem injustiças e reivindiquem seus direitos. O artivismo desafia, assim, a invisibilidade imposta aos marginalizados, trazendo suas vozes para o centro do debate público. A arte, nesse contexto, não é apenas uma ferramenta de expressão, mas também de transformação. Documentando os processos de despejo e as lutas contra a gentrificação, artistas e ativistas criam uma memória coletiva que resiste ao apagamento. Murais, performances e intervenções urbanas tornam-se atos de denúncia e afirmação, reconfigurando o espaço público como um campo de batalha pelo direito à cidade. Além disso, o artivismo atua como um contraponto à narrativa hegemônica que justifica a gentrificação como “melhoria” urbana, reivindicando a cidade como um espaço plural onde todas as vozes têm direito de existir.
Em uma busca por compreender melhor essas dinâmicas, encontrei nos arquivos do Archive.org um valioso acervo de postagens de ativistas relacionadas a antigos e atuais squats, bem como materiais de zines e lambes que documentam a história dessas ocupações. Esses arquivos que preservam importantes relatos e perspectivas sobre as lutas e estratégias dos movimentos de ocupação contribuem para a salvaguarda da memória coletiva e das experiências de resistência. E deveria ser uma das abordagens da ocupação Ouvidor 63, frente à ameaça iminente, estabelecer esse acervo internacional que impacte outras ocupações, um conhecimento à disposição, e que desperte o surgimento de outras moradias coletivas alternativas.
Referências
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. 2. ed. Trad. Coletivo Syrorax. São Paulo: Elefante, 2023.
JESUS, Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. Cidade: Editora, ano.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Cidade: Editora, ano.
mais ensaios
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1 de out. de 2023
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Des-pejo
depejo
Thaissa Machado Gonçalves
Quando recebi o convite para me juntar ao projeto de pesquisa, o trabalho já estava em curso, e para que eu pudesse acompanhar todas as dinâmicas de entender o texto acadêmico e debater sobre como desconstruir o academicismo exacerbado, pensar em linguagens acessíveis, definir por onde começar, era importante um exercício sobre o “Eu Pesquisador”. Qualquer um ali foi chamado porque existe um propósito, e, sobretudo, porque consegue trocar com o projeto. O que você pesquisa? Quem é você e como você dialoga com as ocupações? Como iniciou sua relação com a Ouvidor?
Depois que todos escreveram e compartilharam suas experiências, fui convidada pelo grupo a identificar um tema no texto que mais ressoava comigo, ou que mais aparecia, e percebi que, na dinâmica das palavras, o que eu mais trazia era sobre despejo. A constelação de palavras e frases que todos os pesquisadores escolheram se entrelaçam, mas nunca deixou de existir a possibilidade de nos desfazermos dela e trabalhar em outras questões.
O que era falar sobre despejo? Bem, definimos que, para além do que já era muito debatido no grupo de pesquisa, cada um deveria entender a origem, a relação com outras palavras, do termo de pesquisa escolhido, assim como suas referências na literatura. O termo “despejo” está intimamente conectado a uma série de sinônimos e antônimos, cada um invocando nuances específicas que ampliam sua riqueza semântica.
Sinônimos como “desapropriação”, “desapossamento”, “exclusão”, “deslocamento” e “expulsão” compartilham uma natureza de afastamento — de propriedades, posse ou espaços —, mas cada um carrega suas próprias conotações legais e sociais, e diferem de seu significado original etimológico. Esses sinônimos destacam diferentes aspectos do processo de despejo — pela retirada de propriedade, pela perda de posse ou pela exclusão de espaços sociais.
Por outro lado, antônimos como “posse”, “permanência”, “pejo”, “retenção”, “preservação” e “sustentar” delineiam formas de resistência, manutenção e cuidado contra a ideia de despejo. Enquanto a resistência e a posse refletem a luta contra a remoção, a permanência sugere a ideia de continuidade e estabilidade. “Pejo” aponta para a moderação e o constrangimento, normalmente atribuídos ao “animal” selvagem. Des-pejar, a ausência de pejo, pode representar a natureza combativa. ????? que não se ausentes no despejo, enquanto “retenção”, “preservação” e “sustentar” enfatizam a ideia de manter, proteger e sustentar, contrastando com a ideia de despejo como uma ação abrupta e forçada. Esses sinônimos e antônimos, quando comparados, destacam a complexidade do termo “despejo” e a diversidade de situações e emoções associadas a essa prática em diferentes contextos.
No grupo de pesquisa, fui questionada sobre como podemos escrever sobre um tema difícil, atual e delicado para a maior ocupação artística da América Latina, a Ouvidor 63, que enfrenta ameaça de despejo e uma batalha judicial. Como devo abordar com respeito essa ferida ainda aberta e inflamada? Como processar isso não sendo uma artista-moradora e vivendo em outra cidade?
Onde existe ocupação, existe despejo, ou a sua ameaça. O fenômeno dos despejos em ocupações urbanas é uma realidade dolorosa, de vários rostos, e recorrente nas grandes cidades. O ato de despejo é uma prática que, embora frequentemente associada a processos jurídicos, carrega em si profundas implicações sociais e políticas. A análise desse fenômeno torna-se ainda mais complexa quando se entrelaçam os conceitos de gentrificação, especulação imobiliária e artivismo. Para compreender essas dinâmicas, é essencial recorrer a uma lente crítica que aborde as relações de poder e as histórias invisibilizadas daqueles que são mais diretamente afetados.
Precisamos reconhecer narrativas das populações que são marginalizadas, e ainda são excluídas sistematicamente de registros históricos, como podemos observar no livro Os excluídos da História, escrito por Michelle Perrot (ano). E, na realidade dos despejos, muitas vezes, falamos de um evento que não é um evento isolado, mas sim o prosseguimento de uma longa herança de exclusão social, em que os mais vulneráveis são constantemente deslocados para as margens da sociedade, com pouquíssimas histórias chegando nas livrarias.
Geralmente, as ocupações representam não apenas a luta por um lugar para viver, mas também como resistir contra um sistema que perpetua desigualdades. A ideia de ocupar é um vocabulário novo das lutas do proletariado, nas quais havia greve, piquete, barricadas, como formas de manifestação de trabalhadores em fábricas, em 1960/1970, com a influência da crise do bem-estar social, ascensão do neoliberalismo, os jovens não tendo fábricas, ocupam prédios. As ocupações passam por fases, mas se torna inevitável ocupar, dentro do imaginário das lutas da juventude, um berço de contracultura e movimento punk: se eu luto, eu ocupo.
E analisando sob a ótica de Vigiar e Punir, de Michel Foucault (2014), podemos entender como as estratégias de controle e vigilância do Estado se manifestam nessas situações. No estado de São Paulo, assim como em outras grandes metrópoles, têm sido adotadas medidas de disciplina e repressão que visam não apenas a remoção física dos ocupantes, mas também a contenção e o controle de movimentos sociais que desafiam a ordem estabelecida.
Neste ensaio, exploro como os despejos se conectam com o coletivo, como, em especial a ocupação Ouvidor 63, tem lidado com isso, e como podemos garantir o registro de tudo isso e lutar pelo seu tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Estou usando como base teórica fundamental o documento de tombamento do IPHAN, rebeliões coletivas e o poder feminino, nas ideias apresentadas por Silvia Federici, em Calibã e a Bruxa (2023), e obras como os já citados Vigiar e Punir, de Michel Foucault (2014), e Os excluídos da História, de Michelle Perrot (ano), entre outros.
A proposta é provocar manualmente, entre o coletivo, a relação de cada fio dentro da tessitura que se forma e protege o corpo, no caso, o prédio.
Presente de Natal (pedidos de reintegração de posse do Estado em dezembro)
No estado de São Paulo, a movimentação é no mínimo estranhamente “coordenada”, e usam as mesmas ferramentas de poder para perseguir e suprimir ocupações vigentes.
Em dezembro de 2023, a Ocupação Ouvidor 63 foi aconselhada a preparar um documento frente à ameaça da desocupação do prédio, elaborando uma proposta oficializada de uso do prédio, o que apropriadamente causou muitas controvérsias e debates dentro da Ouvidor sobre um receio de a ocupação anarco-punk se tornar institucionalizada, tal como a Casa Amarela, que, após sua institucionalização, teve uma limitação das atividades promovidas e dos artistas residentes.
Na minha cidade, São José dos Campos, acompanhei o sorrateiro golpe em outra ocupação, a comunidade Esperança que fica localizada no “banhado”, uma região de proteção ambiental localizada próximo ao centro da cidade.
Em 2023, várias foram as desocupações provocadas, um interesse de diversos estados e países de reaver a posse de imóveis ocupados, com estratégias surpresas similares ao agirem contra a população ocupante. Navegando pelo Archive.org (uma grande base de arquivos na internet com o objetivo de preservar da perda), descubro um nicho, uma rede de usuários ocupantes, ex-ocupantes ou ativistas de todo o mundo que se unem para alimentar um bom material para servir de fonte de informação, pesquisa, inspiração, enfim!

Fonte: Archive
O material vai desde artigos acadêmicos, passando pela digitalização de diversos zines e posteres políticos de ocupações, até documentários como o How to Squash a Squat, de Franck Goldberg, que relata a ação violenta da polícia nova-iorquina no despejo, demolição e queima de uma ocupação que se chamava NYC East Village, em 1989, e o que me chamou a atenção, um podcast gravado em julho de 2023, durante a invasão e o despejo dos artistas da STOP, em Porto, Portugal.
[...] I Deserve to be Protected. [...] I dont have anyone now.
O podcast foi gravado pela Rádio Paralelo enquanto os artistas e as pessoas que não ocupavam protestavam no período da tarde. Segundo a legenda, 500 artistas do Centro Comercial STOP, com aproximadamente 104 lojas com salas de ensaio e centros culturais, foram despejados numa operação policial por ordem da câmara municipal da cidade de Porto. Uma das entrevistadas comenta que os policiais apareceram à paisana, de madrugada, e invadiram pela manhã, retirando todos os que não tivessem alvará para funcionamento, o que os artistas estranham é, segundo a legenda original, a câmara ignorar por tantos anos, e quando se propõe a enxergar a questão, é através de uma ação autoritária.

Ilustração Monopoly C.C. Stop por @esbocos_rabiscos, republicada no instagram da STOP


Centro Comercial STOP. Autor desconhecido. Publicadas no Site All About Portugal
Vigilância, disciplina e controle social
Os despejos não são apenas uma questão de retirada física de pessoas de um espaço; eles representam um mecanismo de controle social. Quando uma ocupação é colocada abaixo, o Estado e as forças econômicas estão, de certo modo, reafirmando seu poder sobre aqueles que desafiam e driblam o sistema. As ocupações, muitas vezes situadas em prédios ou terrenos abandonados, transformam-se em símbolos de resistência contra a especulação imobiliária e a gentrificação.
O ato de ocupar não é apenas uma necessidade de um teto que te protege e dá dignidade, mas também uma forma de contestação. As comunidades que constroem nesses espaços desenvolvem redes de solidariedade e criam novas manifestações de cunho político-social, frequentemente em oposição ao modelo capitalista tradicional. Quando um despejo acontece, essas redes são rompidas, o tecido de toda a comunidade é esgarçado e a tentativa é de desmobilizar a resistência coletiva, de acabar com “o sabá das bruxas”.
Em Vigiar e Punir, Foucault (2014) explora como o poder se exerce por meio de mecanismos de vigilância e disciplina, transformando a sociedade em uma “sociedade disciplinar” onde os corpos são constantemente observados e controlados. No contexto das ocupações urbanas, essa vigilância se manifesta através da presença constante das forças de segurança, do monitoramento das atividades dos ocupantes e das estratégias legais e administrativas que buscam regular e limitar essas iniciativas.
O Estado de São Paulo, por exemplo, utiliza uma combinação de vigilância física — com a presença de policiais e câmeras de segurança — e vigilância jurídica, mediante processos judiciais que buscam criminalizar as ocupações. É relevante percebermos as diferentes vigilâncias, pois estas não apenas são ferramentas de reação ao ato de ocupar, como também fazem parte da estratégia de promover um controle social mais amplo, no qual as pessoas seguem sendo disciplinadas e persuadidas a não desafiar a propriedade privada, apontar a falta de respaldo social e questionar a ordem urbana estabelecida.
As operações de despejo em São Paulo são, muitas vezes, executadas com uma precisão que lembra as práticas disciplinares descritas por Foucault, envolvendo uma série de procedimentos legais e administrativos que visam desmobilizar as ocupações e restaurar a “ordem” no espaço urbano. Essas medidas incluem desde a emissão de mandados de reintegração de posse até o uso da força policial para remover os ocupantes.
Foucault argumenta que a disciplina não é apenas uma forma de repressão, mas também de normatização, pois estabelece padrões de comportamento que devem ser seguidos. Nas ocupações, o Estado procura impor um modelo específico de cidadania e de uso do espaço urbano, e aqueles que não se enquadram na institucionalização são punidos e removidos. As ocupações, ao desafiarem essa normatividade, se tornam alvos das medidas disciplinares do Estado, que busca restabelecer o controle sobre o território. Na história, é tudo sobre poder.
Rebeliões coletivas e a resistência
A resposta aos despejos às vezes acontece através de manifestações coletivas, na quais a comunidade se une para resistir à remoção forçada. Essas rebeliões transcendem a defesa do espaço físico, englobando também a proteção de um modo de vida construído naquele espaço, e, no caso da Ouvidor, toda a amplitude de um centro cultural consolidado não apenas com os moradores, mas com a região do entorno e as comunidades afetadas pelos projetos que executam, ou então os espaços coletivos de auto-organização.
Essa forma de resistência é um eco das lutas históricas por direitos e reconhecimento, em que o povo se levanta contra as forças opressoras.
Silvia Federici (2023), em Calibã e a Bruxa, apresenta como a rebelião foi uma característica central nas lutas populares, especialmente durante períodos de grande transformação social e econômica. A autora observa que as revoltas camponesas e as insurgências urbanas durante a transição do feudalismo para o capitalismo foram respostas diretas à intensificação da exploração e ao controle sobre o corpo e a mente dos indivíduos.
De fato, há uma conexão direta entre a nova onda — que se traduz em um processo de acumulação baseado em despossessão, com a imposição de formas cada vez mais intensas de exploração da natureza e do corpo. Isso leva a um ataque direto contra os meios de reprodução da vida, sobretudo em comunidades camponesas, indígenas e tradicionais. E como sabemos, a guerra à reprodução é uma guerra às mulheres (Federici, 20232017, p. 16).
Assim, as rebeliões atuais contra despejos podem ser vistas como a continuidade dessas lutas históricas, respondendo à exploração e à marginalização contemporâneas, afinal “os antigos problemas continuam na agenda”.
“Nesse sentido, a história está a serviço da política, pois ela confirma que, nas regiões onde povos oprimidos mantêm suas estruturas comunais e algum controle sobre as condições de sua reprodução, há maior sucesso na resistência à exploração” (Federici, 20232017, p. 23).
Como as mulheres são afetadas
Quando você imagina os rostos de uma ocupação, de quem o seu cérebro evoca? Qual tipo de indivíduo? O meu, antes de entrar em contato com a Ouvidor, ao ouvir meu colega de faculdade falar sobre isso em aula pela primeira vez, imaginava jovens, mas principalmente homens anarquistas. Hoje eu não consigo desvincular a ideia de uma Ouvidor construída também pelas mães e mulheres que puxam e promovem várias das ações, assim como suas crianças. A Okupa transborda de talento e resistência feminina, nesses anos em diálogo, criei bons laços e carrego comigo imensa admiração pelos trabalhos de Vandal, Rose, Tamyres, Mica, (Citar mais mulheres). Todas orbitando o universo Ouvidor com projetos espetaculares que edificam a minha visão.
As mulheres frequentemente assumem papéis centrais na organização e na manutenção da comunidade, portanto, aqui não seria diferente. Essa força pode ser compreendida através das ideias de Federici sobre a importância das mulheres nas lutas populares. Ela argumenta que o controle sobre as mulheres e seus corpos foi crucial para a consolidação do capitalismo, e o empoderamento das mulheres em coletivos de ocupação desafia essas estruturas de controle. As mulheres lideram iniciativas de resistência, organizam redes de apoio mútuo e mantêm as dinâmicas sociais dentro desses espaços, transformando o espaço ocupado em um local de cuidado e resistência para todos, inclusive as crianças. Federici destaca que “A relação entre a caça às bruxas e a expropriação de terras está cada vez mais evidente” (Federici, 20232017, p. 17), e entender que existe sim uma relação vigente da expropriação de terras, e, nesse caso, uma expropriação de um prédio ocupado por muitas mulheres e mães ativistas que reivindicam o direito à moradia, e esse empoderamento é uma forma de subverter as lógicas patriarcais e capitalistas que governam o mundo.
Por que depois de quinhentos anos do domínio do capital, no início do terceiro milênio, os trabalhadores ainda são massivamente definidos como pobres, bruxas e bandoleiros? De que maneira a expropriação e a pauperização se relacionam com o permanente ataque contra as mulheres? (Federici, 20232017, p. 33).
Mães em ocupações
Quando a gente imagina os rostos da uma ocup Para compreender a profundidade das dificuldades enfrentadas, é útil considerar o relato de Carolina Maria de Jesus (ano), em Quarto de Despejo. Seu diário compartilha com o leitor as severas dificuldades enfrentadas por uma mãe favelada, incluindo a luta diária pela sobrevivência e as inseguranças associadas à falta de moradia e de recursos. Particularmente, como uma mãe solo, reaprendendo a colocar as coisas no lugar depois de ter que sair de um lugar de insegurança alimentar, e em contato com algumas mães da Ouvidor 63, ler Carolina não só ressoa com a minha luta, mas como a dessas mulheres que refletem para cuidar de seus filhos em um ambiente de extrema pobreza espelha as dificuldades enfrentadas por mães em ocupações urbanas, que também enfrentam o medo constante do despejo e da insegurança. Ambas as situações refletem uma batalha constante para assegurar não apenas um teto, mas um espaço digno e seguro para viver. As mães em ocupações, assim como Carolina, estão na linha de frente de uma luta que é tanto pela sobrevivência quanto pela dignidade, resistindo a um sistema que frequentemente ignora suas necessidades e seus direitos.

Estudo fotográfico (2022). Foto: Sol Emanuel Calderón.
Gentrificação e especulação imobiliária: despejo como ferramenta de exclusão
A partir de Foucault (2014), podemos entender os despejos como parte de um processo de normalização do espaço urbano. O Estado e as elites urbanas buscam transformar a cidade em um espaço ordenado e previsível, onde cada indivíduo tem lugar e função definidos. As ocupações, por sua natureza desafiadora e disruptiva, representam uma ameaça a essa ordem e, portanto, são alvo de uma vigilância constante e de intervenções disciplinares.
No estado de São Paulo, a normalização do espaço urbano passa pela remoção das ocupações e pela subsequente gentrificação desses espaços. O Estado não apenas remove os ocupantes, mas também apaga e redefine o uso desse território, frequentemente transformando-os em áreas de interesse para o mercado imobiliário. Esse processo é uma forma de disciplinar o espaço, garantindo que seja usado conforme as normas estabelecidas pela economia e pela política urbana.
Os mecanismos de controle descritos por Foucault podem ser observados nas práticas de despejo, em que o Estado e o capital atuam em coautoria para remover populações marginalizadas. O despejo não é apenas a retirada física de uma residência; é também a negação de direitos fundamentais e a imposição de uma ordem social excludente. A especulação imobiliária, nesse sentido, serve para reforçar e perpetuar a desigualdade, subordinando as necessidades humanas ao lucro.
A gentrificação é um processo pelo qual áreas urbanas degradadas são revitalizadas, muitas vezes resultando na expulsão de moradores antigos para dar lugar a uma população mais abastada. A especulação imobiliária atua como motor desse processo, no qual o valor da terra e das propriedades é artificialmente inflado, tornando o custo de vida insustentável para os antigos residentes. Essas dinâmicas, que aparentam ser meramente econômicas, são profundamente políticas e revelam as estruturas de poder que Foucault analisa em Vigiar e Punir (2014). A lógica de controle social, aplicada ao espaço urbano, busca disciplinar e normalizar quem tem direito à cidade e quem deve ser excluído dela.
Conclusão
Os despejos em ocupações urbanas são manifestações de violência estrutural que visam desmobilizar coletivos organizados e reafirmar o controle sobre a população. No entanto, a resistência a esses despejos, frequentemente liderada por mulheres, é uma continuidade das lutas históricas contra a exploração e o controle social. Essas resistências podem ser compreendidas como parte de um movimento maior que desafia as estruturas de poder existentes e busca criar novas formas de convivência comunitária. As ocupações, portanto, transcendem a simples disputa por moradia, uma vez que representam uma luta por espaços onde novas possibilidades de vida e organização social possam florescer, desafiando um sistema que marginaliza e exclui.
A história oficial, conforme aponta Perrot (ano), tende a ignorar aqueles que não têm poder ou voz dentro das estruturas dominantes. Contudo, são essas histórias de luta que revelam as verdadeiras consequências da gentrificação e da especulação imobiliária. Cada despejo é uma narrativa de perda e resistência, em que comunidades se organizam para lutar pelo direito à cidade e à moradia digna. Analisando os despejos sob a perspectiva de Vigiar e Punir (Foucault, 2014), observamos como o Estado utiliza vigilância e disciplina para controlar e remover aqueles que desafiam a ordem estabelecida. As ocupações, ao romperem com as normas tradicionais de propriedade e uso do espaço, tornam-se alvos de um sistema que busca normalizar e regular todos os aspectos da vida urbana. Medidas disciplinares, como as intervenções punitivas em São Paulo, exemplificam esse processo de controle, no qual a vigilância constante visa manter a ordem sobre o território e seus habitantes.
Diante da violência simbólica e física do despejo, o artivismo surge como uma forma poderosa de resistência. A combinação de arte e ativismo permite que as comunidades afetadas expressem suas histórias, denunciem injustiças e reivindiquem seus direitos. O artivismo desafia, assim, a invisibilidade imposta aos marginalizados, trazendo suas vozes para o centro do debate público. A arte, nesse contexto, não é apenas uma ferramenta de expressão, mas também de transformação. Documentando os processos de despejo e as lutas contra a gentrificação, artistas e ativistas criam uma memória coletiva que resiste ao apagamento. Murais, performances e intervenções urbanas tornam-se atos de denúncia e afirmação, reconfigurando o espaço público como um campo de batalha pelo direito à cidade. Além disso, o artivismo atua como um contraponto à narrativa hegemônica que justifica a gentrificação como “melhoria” urbana, reivindicando a cidade como um espaço plural onde todas as vozes têm direito de existir.
Em uma busca por compreender melhor essas dinâmicas, encontrei nos arquivos do Archive.org um valioso acervo de postagens de ativistas relacionadas a antigos e atuais squats, bem como materiais de zines e lambes que documentam a história dessas ocupações. Esses arquivos que preservam importantes relatos e perspectivas sobre as lutas e estratégias dos movimentos de ocupação contribuem para a salvaguarda da memória coletiva e das experiências de resistência. E deveria ser uma das abordagens da ocupação Ouvidor 63, frente à ameaça iminente, estabelecer esse acervo internacional que impacte outras ocupações, um conhecimento à disposição, e que desperte o surgimento de outras moradias coletivas alternativas.
Referências
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. 2. ed. Trad. Coletivo Syrorax. São Paulo: Elefante, 2023.
JESUS, Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. Cidade: Editora, ano.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Cidade: Editora, ano.
mais ensaios
Descubra Sobre Possíveis mundos Pós-Capitalistas

(
1 de out. de 2023
)
Des-pejo
depejo
Thaissa Machado Gonçalves
Quando recebi o convite para me juntar ao projeto de pesquisa, o trabalho já estava em curso, e para que eu pudesse acompanhar todas as dinâmicas de entender o texto acadêmico e debater sobre como desconstruir o academicismo exacerbado, pensar em linguagens acessíveis, definir por onde começar, era importante um exercício sobre o “Eu Pesquisador”. Qualquer um ali foi chamado porque existe um propósito, e, sobretudo, porque consegue trocar com o projeto. O que você pesquisa? Quem é você e como você dialoga com as ocupações? Como iniciou sua relação com a Ouvidor?
Depois que todos escreveram e compartilharam suas experiências, fui convidada pelo grupo a identificar um tema no texto que mais ressoava comigo, ou que mais aparecia, e percebi que, na dinâmica das palavras, o que eu mais trazia era sobre despejo. A constelação de palavras e frases que todos os pesquisadores escolheram se entrelaçam, mas nunca deixou de existir a possibilidade de nos desfazermos dela e trabalhar em outras questões.
O que era falar sobre despejo? Bem, definimos que, para além do que já era muito debatido no grupo de pesquisa, cada um deveria entender a origem, a relação com outras palavras, do termo de pesquisa escolhido, assim como suas referências na literatura. O termo “despejo” está intimamente conectado a uma série de sinônimos e antônimos, cada um invocando nuances específicas que ampliam sua riqueza semântica.
Sinônimos como “desapropriação”, “desapossamento”, “exclusão”, “deslocamento” e “expulsão” compartilham uma natureza de afastamento — de propriedades, posse ou espaços —, mas cada um carrega suas próprias conotações legais e sociais, e diferem de seu significado original etimológico. Esses sinônimos destacam diferentes aspectos do processo de despejo — pela retirada de propriedade, pela perda de posse ou pela exclusão de espaços sociais.
Por outro lado, antônimos como “posse”, “permanência”, “pejo”, “retenção”, “preservação” e “sustentar” delineiam formas de resistência, manutenção e cuidado contra a ideia de despejo. Enquanto a resistência e a posse refletem a luta contra a remoção, a permanência sugere a ideia de continuidade e estabilidade. “Pejo” aponta para a moderação e o constrangimento, normalmente atribuídos ao “animal” selvagem. Des-pejar, a ausência de pejo, pode representar a natureza combativa. ????? que não se ausentes no despejo, enquanto “retenção”, “preservação” e “sustentar” enfatizam a ideia de manter, proteger e sustentar, contrastando com a ideia de despejo como uma ação abrupta e forçada. Esses sinônimos e antônimos, quando comparados, destacam a complexidade do termo “despejo” e a diversidade de situações e emoções associadas a essa prática em diferentes contextos.
No grupo de pesquisa, fui questionada sobre como podemos escrever sobre um tema difícil, atual e delicado para a maior ocupação artística da América Latina, a Ouvidor 63, que enfrenta ameaça de despejo e uma batalha judicial. Como devo abordar com respeito essa ferida ainda aberta e inflamada? Como processar isso não sendo uma artista-moradora e vivendo em outra cidade?
Onde existe ocupação, existe despejo, ou a sua ameaça. O fenômeno dos despejos em ocupações urbanas é uma realidade dolorosa, de vários rostos, e recorrente nas grandes cidades. O ato de despejo é uma prática que, embora frequentemente associada a processos jurídicos, carrega em si profundas implicações sociais e políticas. A análise desse fenômeno torna-se ainda mais complexa quando se entrelaçam os conceitos de gentrificação, especulação imobiliária e artivismo. Para compreender essas dinâmicas, é essencial recorrer a uma lente crítica que aborde as relações de poder e as histórias invisibilizadas daqueles que são mais diretamente afetados.
Precisamos reconhecer narrativas das populações que são marginalizadas, e ainda são excluídas sistematicamente de registros históricos, como podemos observar no livro Os excluídos da História, escrito por Michelle Perrot (ano). E, na realidade dos despejos, muitas vezes, falamos de um evento que não é um evento isolado, mas sim o prosseguimento de uma longa herança de exclusão social, em que os mais vulneráveis são constantemente deslocados para as margens da sociedade, com pouquíssimas histórias chegando nas livrarias.
Geralmente, as ocupações representam não apenas a luta por um lugar para viver, mas também como resistir contra um sistema que perpetua desigualdades. A ideia de ocupar é um vocabulário novo das lutas do proletariado, nas quais havia greve, piquete, barricadas, como formas de manifestação de trabalhadores em fábricas, em 1960/1970, com a influência da crise do bem-estar social, ascensão do neoliberalismo, os jovens não tendo fábricas, ocupam prédios. As ocupações passam por fases, mas se torna inevitável ocupar, dentro do imaginário das lutas da juventude, um berço de contracultura e movimento punk: se eu luto, eu ocupo.
E analisando sob a ótica de Vigiar e Punir, de Michel Foucault (2014), podemos entender como as estratégias de controle e vigilância do Estado se manifestam nessas situações. No estado de São Paulo, assim como em outras grandes metrópoles, têm sido adotadas medidas de disciplina e repressão que visam não apenas a remoção física dos ocupantes, mas também a contenção e o controle de movimentos sociais que desafiam a ordem estabelecida.
Neste ensaio, exploro como os despejos se conectam com o coletivo, como, em especial a ocupação Ouvidor 63, tem lidado com isso, e como podemos garantir o registro de tudo isso e lutar pelo seu tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Estou usando como base teórica fundamental o documento de tombamento do IPHAN, rebeliões coletivas e o poder feminino, nas ideias apresentadas por Silvia Federici, em Calibã e a Bruxa (2023), e obras como os já citados Vigiar e Punir, de Michel Foucault (2014), e Os excluídos da História, de Michelle Perrot (ano), entre outros.
A proposta é provocar manualmente, entre o coletivo, a relação de cada fio dentro da tessitura que se forma e protege o corpo, no caso, o prédio.
Presente de Natal (pedidos de reintegração de posse do Estado em dezembro)
No estado de São Paulo, a movimentação é no mínimo estranhamente “coordenada”, e usam as mesmas ferramentas de poder para perseguir e suprimir ocupações vigentes.
Em dezembro de 2023, a Ocupação Ouvidor 63 foi aconselhada a preparar um documento frente à ameaça da desocupação do prédio, elaborando uma proposta oficializada de uso do prédio, o que apropriadamente causou muitas controvérsias e debates dentro da Ouvidor sobre um receio de a ocupação anarco-punk se tornar institucionalizada, tal como a Casa Amarela, que, após sua institucionalização, teve uma limitação das atividades promovidas e dos artistas residentes.
Na minha cidade, São José dos Campos, acompanhei o sorrateiro golpe em outra ocupação, a comunidade Esperança que fica localizada no “banhado”, uma região de proteção ambiental localizada próximo ao centro da cidade.
Em 2023, várias foram as desocupações provocadas, um interesse de diversos estados e países de reaver a posse de imóveis ocupados, com estratégias surpresas similares ao agirem contra a população ocupante. Navegando pelo Archive.org (uma grande base de arquivos na internet com o objetivo de preservar da perda), descubro um nicho, uma rede de usuários ocupantes, ex-ocupantes ou ativistas de todo o mundo que se unem para alimentar um bom material para servir de fonte de informação, pesquisa, inspiração, enfim!

Fonte: Archive
O material vai desde artigos acadêmicos, passando pela digitalização de diversos zines e posteres políticos de ocupações, até documentários como o How to Squash a Squat, de Franck Goldberg, que relata a ação violenta da polícia nova-iorquina no despejo, demolição e queima de uma ocupação que se chamava NYC East Village, em 1989, e o que me chamou a atenção, um podcast gravado em julho de 2023, durante a invasão e o despejo dos artistas da STOP, em Porto, Portugal.
[...] I Deserve to be Protected. [...] I dont have anyone now.
O podcast foi gravado pela Rádio Paralelo enquanto os artistas e as pessoas que não ocupavam protestavam no período da tarde. Segundo a legenda, 500 artistas do Centro Comercial STOP, com aproximadamente 104 lojas com salas de ensaio e centros culturais, foram despejados numa operação policial por ordem da câmara municipal da cidade de Porto. Uma das entrevistadas comenta que os policiais apareceram à paisana, de madrugada, e invadiram pela manhã, retirando todos os que não tivessem alvará para funcionamento, o que os artistas estranham é, segundo a legenda original, a câmara ignorar por tantos anos, e quando se propõe a enxergar a questão, é através de uma ação autoritária.

Ilustração Monopoly C.C. Stop por @esbocos_rabiscos, republicada no instagram da STOP


Centro Comercial STOP. Autor desconhecido. Publicadas no Site All About Portugal
Vigilância, disciplina e controle social
Os despejos não são apenas uma questão de retirada física de pessoas de um espaço; eles representam um mecanismo de controle social. Quando uma ocupação é colocada abaixo, o Estado e as forças econômicas estão, de certo modo, reafirmando seu poder sobre aqueles que desafiam e driblam o sistema. As ocupações, muitas vezes situadas em prédios ou terrenos abandonados, transformam-se em símbolos de resistência contra a especulação imobiliária e a gentrificação.
O ato de ocupar não é apenas uma necessidade de um teto que te protege e dá dignidade, mas também uma forma de contestação. As comunidades que constroem nesses espaços desenvolvem redes de solidariedade e criam novas manifestações de cunho político-social, frequentemente em oposição ao modelo capitalista tradicional. Quando um despejo acontece, essas redes são rompidas, o tecido de toda a comunidade é esgarçado e a tentativa é de desmobilizar a resistência coletiva, de acabar com “o sabá das bruxas”.
Em Vigiar e Punir, Foucault (2014) explora como o poder se exerce por meio de mecanismos de vigilância e disciplina, transformando a sociedade em uma “sociedade disciplinar” onde os corpos são constantemente observados e controlados. No contexto das ocupações urbanas, essa vigilância se manifesta através da presença constante das forças de segurança, do monitoramento das atividades dos ocupantes e das estratégias legais e administrativas que buscam regular e limitar essas iniciativas.
O Estado de São Paulo, por exemplo, utiliza uma combinação de vigilância física — com a presença de policiais e câmeras de segurança — e vigilância jurídica, mediante processos judiciais que buscam criminalizar as ocupações. É relevante percebermos as diferentes vigilâncias, pois estas não apenas são ferramentas de reação ao ato de ocupar, como também fazem parte da estratégia de promover um controle social mais amplo, no qual as pessoas seguem sendo disciplinadas e persuadidas a não desafiar a propriedade privada, apontar a falta de respaldo social e questionar a ordem urbana estabelecida.
As operações de despejo em São Paulo são, muitas vezes, executadas com uma precisão que lembra as práticas disciplinares descritas por Foucault, envolvendo uma série de procedimentos legais e administrativos que visam desmobilizar as ocupações e restaurar a “ordem” no espaço urbano. Essas medidas incluem desde a emissão de mandados de reintegração de posse até o uso da força policial para remover os ocupantes.
Foucault argumenta que a disciplina não é apenas uma forma de repressão, mas também de normatização, pois estabelece padrões de comportamento que devem ser seguidos. Nas ocupações, o Estado procura impor um modelo específico de cidadania e de uso do espaço urbano, e aqueles que não se enquadram na institucionalização são punidos e removidos. As ocupações, ao desafiarem essa normatividade, se tornam alvos das medidas disciplinares do Estado, que busca restabelecer o controle sobre o território. Na história, é tudo sobre poder.
Rebeliões coletivas e a resistência
A resposta aos despejos às vezes acontece através de manifestações coletivas, na quais a comunidade se une para resistir à remoção forçada. Essas rebeliões transcendem a defesa do espaço físico, englobando também a proteção de um modo de vida construído naquele espaço, e, no caso da Ouvidor, toda a amplitude de um centro cultural consolidado não apenas com os moradores, mas com a região do entorno e as comunidades afetadas pelos projetos que executam, ou então os espaços coletivos de auto-organização.
Essa forma de resistência é um eco das lutas históricas por direitos e reconhecimento, em que o povo se levanta contra as forças opressoras.
Silvia Federici (2023), em Calibã e a Bruxa, apresenta como a rebelião foi uma característica central nas lutas populares, especialmente durante períodos de grande transformação social e econômica. A autora observa que as revoltas camponesas e as insurgências urbanas durante a transição do feudalismo para o capitalismo foram respostas diretas à intensificação da exploração e ao controle sobre o corpo e a mente dos indivíduos.
De fato, há uma conexão direta entre a nova onda — que se traduz em um processo de acumulação baseado em despossessão, com a imposição de formas cada vez mais intensas de exploração da natureza e do corpo. Isso leva a um ataque direto contra os meios de reprodução da vida, sobretudo em comunidades camponesas, indígenas e tradicionais. E como sabemos, a guerra à reprodução é uma guerra às mulheres (Federici, 20232017, p. 16).
Assim, as rebeliões atuais contra despejos podem ser vistas como a continuidade dessas lutas históricas, respondendo à exploração e à marginalização contemporâneas, afinal “os antigos problemas continuam na agenda”.
“Nesse sentido, a história está a serviço da política, pois ela confirma que, nas regiões onde povos oprimidos mantêm suas estruturas comunais e algum controle sobre as condições de sua reprodução, há maior sucesso na resistência à exploração” (Federici, 20232017, p. 23).
Como as mulheres são afetadas
Quando você imagina os rostos de uma ocupação, de quem o seu cérebro evoca? Qual tipo de indivíduo? O meu, antes de entrar em contato com a Ouvidor, ao ouvir meu colega de faculdade falar sobre isso em aula pela primeira vez, imaginava jovens, mas principalmente homens anarquistas. Hoje eu não consigo desvincular a ideia de uma Ouvidor construída também pelas mães e mulheres que puxam e promovem várias das ações, assim como suas crianças. A Okupa transborda de talento e resistência feminina, nesses anos em diálogo, criei bons laços e carrego comigo imensa admiração pelos trabalhos de Vandal, Rose, Tamyres, Mica, (Citar mais mulheres). Todas orbitando o universo Ouvidor com projetos espetaculares que edificam a minha visão.
As mulheres frequentemente assumem papéis centrais na organização e na manutenção da comunidade, portanto, aqui não seria diferente. Essa força pode ser compreendida através das ideias de Federici sobre a importância das mulheres nas lutas populares. Ela argumenta que o controle sobre as mulheres e seus corpos foi crucial para a consolidação do capitalismo, e o empoderamento das mulheres em coletivos de ocupação desafia essas estruturas de controle. As mulheres lideram iniciativas de resistência, organizam redes de apoio mútuo e mantêm as dinâmicas sociais dentro desses espaços, transformando o espaço ocupado em um local de cuidado e resistência para todos, inclusive as crianças. Federici destaca que “A relação entre a caça às bruxas e a expropriação de terras está cada vez mais evidente” (Federici, 20232017, p. 17), e entender que existe sim uma relação vigente da expropriação de terras, e, nesse caso, uma expropriação de um prédio ocupado por muitas mulheres e mães ativistas que reivindicam o direito à moradia, e esse empoderamento é uma forma de subverter as lógicas patriarcais e capitalistas que governam o mundo.
Por que depois de quinhentos anos do domínio do capital, no início do terceiro milênio, os trabalhadores ainda são massivamente definidos como pobres, bruxas e bandoleiros? De que maneira a expropriação e a pauperização se relacionam com o permanente ataque contra as mulheres? (Federici, 20232017, p. 33).
Mães em ocupações
Quando a gente imagina os rostos da uma ocup Para compreender a profundidade das dificuldades enfrentadas, é útil considerar o relato de Carolina Maria de Jesus (ano), em Quarto de Despejo. Seu diário compartilha com o leitor as severas dificuldades enfrentadas por uma mãe favelada, incluindo a luta diária pela sobrevivência e as inseguranças associadas à falta de moradia e de recursos. Particularmente, como uma mãe solo, reaprendendo a colocar as coisas no lugar depois de ter que sair de um lugar de insegurança alimentar, e em contato com algumas mães da Ouvidor 63, ler Carolina não só ressoa com a minha luta, mas como a dessas mulheres que refletem para cuidar de seus filhos em um ambiente de extrema pobreza espelha as dificuldades enfrentadas por mães em ocupações urbanas, que também enfrentam o medo constante do despejo e da insegurança. Ambas as situações refletem uma batalha constante para assegurar não apenas um teto, mas um espaço digno e seguro para viver. As mães em ocupações, assim como Carolina, estão na linha de frente de uma luta que é tanto pela sobrevivência quanto pela dignidade, resistindo a um sistema que frequentemente ignora suas necessidades e seus direitos.

Estudo fotográfico (2022). Foto: Sol Emanuel Calderón.
Gentrificação e especulação imobiliária: despejo como ferramenta de exclusão
A partir de Foucault (2014), podemos entender os despejos como parte de um processo de normalização do espaço urbano. O Estado e as elites urbanas buscam transformar a cidade em um espaço ordenado e previsível, onde cada indivíduo tem lugar e função definidos. As ocupações, por sua natureza desafiadora e disruptiva, representam uma ameaça a essa ordem e, portanto, são alvo de uma vigilância constante e de intervenções disciplinares.
No estado de São Paulo, a normalização do espaço urbano passa pela remoção das ocupações e pela subsequente gentrificação desses espaços. O Estado não apenas remove os ocupantes, mas também apaga e redefine o uso desse território, frequentemente transformando-os em áreas de interesse para o mercado imobiliário. Esse processo é uma forma de disciplinar o espaço, garantindo que seja usado conforme as normas estabelecidas pela economia e pela política urbana.
Os mecanismos de controle descritos por Foucault podem ser observados nas práticas de despejo, em que o Estado e o capital atuam em coautoria para remover populações marginalizadas. O despejo não é apenas a retirada física de uma residência; é também a negação de direitos fundamentais e a imposição de uma ordem social excludente. A especulação imobiliária, nesse sentido, serve para reforçar e perpetuar a desigualdade, subordinando as necessidades humanas ao lucro.
A gentrificação é um processo pelo qual áreas urbanas degradadas são revitalizadas, muitas vezes resultando na expulsão de moradores antigos para dar lugar a uma população mais abastada. A especulação imobiliária atua como motor desse processo, no qual o valor da terra e das propriedades é artificialmente inflado, tornando o custo de vida insustentável para os antigos residentes. Essas dinâmicas, que aparentam ser meramente econômicas, são profundamente políticas e revelam as estruturas de poder que Foucault analisa em Vigiar e Punir (2014). A lógica de controle social, aplicada ao espaço urbano, busca disciplinar e normalizar quem tem direito à cidade e quem deve ser excluído dela.
Conclusão
Os despejos em ocupações urbanas são manifestações de violência estrutural que visam desmobilizar coletivos organizados e reafirmar o controle sobre a população. No entanto, a resistência a esses despejos, frequentemente liderada por mulheres, é uma continuidade das lutas históricas contra a exploração e o controle social. Essas resistências podem ser compreendidas como parte de um movimento maior que desafia as estruturas de poder existentes e busca criar novas formas de convivência comunitária. As ocupações, portanto, transcendem a simples disputa por moradia, uma vez que representam uma luta por espaços onde novas possibilidades de vida e organização social possam florescer, desafiando um sistema que marginaliza e exclui.
A história oficial, conforme aponta Perrot (ano), tende a ignorar aqueles que não têm poder ou voz dentro das estruturas dominantes. Contudo, são essas histórias de luta que revelam as verdadeiras consequências da gentrificação e da especulação imobiliária. Cada despejo é uma narrativa de perda e resistência, em que comunidades se organizam para lutar pelo direito à cidade e à moradia digna. Analisando os despejos sob a perspectiva de Vigiar e Punir (Foucault, 2014), observamos como o Estado utiliza vigilância e disciplina para controlar e remover aqueles que desafiam a ordem estabelecida. As ocupações, ao romperem com as normas tradicionais de propriedade e uso do espaço, tornam-se alvos de um sistema que busca normalizar e regular todos os aspectos da vida urbana. Medidas disciplinares, como as intervenções punitivas em São Paulo, exemplificam esse processo de controle, no qual a vigilância constante visa manter a ordem sobre o território e seus habitantes.
Diante da violência simbólica e física do despejo, o artivismo surge como uma forma poderosa de resistência. A combinação de arte e ativismo permite que as comunidades afetadas expressem suas histórias, denunciem injustiças e reivindiquem seus direitos. O artivismo desafia, assim, a invisibilidade imposta aos marginalizados, trazendo suas vozes para o centro do debate público. A arte, nesse contexto, não é apenas uma ferramenta de expressão, mas também de transformação. Documentando os processos de despejo e as lutas contra a gentrificação, artistas e ativistas criam uma memória coletiva que resiste ao apagamento. Murais, performances e intervenções urbanas tornam-se atos de denúncia e afirmação, reconfigurando o espaço público como um campo de batalha pelo direito à cidade. Além disso, o artivismo atua como um contraponto à narrativa hegemônica que justifica a gentrificação como “melhoria” urbana, reivindicando a cidade como um espaço plural onde todas as vozes têm direito de existir.
Em uma busca por compreender melhor essas dinâmicas, encontrei nos arquivos do Archive.org um valioso acervo de postagens de ativistas relacionadas a antigos e atuais squats, bem como materiais de zines e lambes que documentam a história dessas ocupações. Esses arquivos que preservam importantes relatos e perspectivas sobre as lutas e estratégias dos movimentos de ocupação contribuem para a salvaguarda da memória coletiva e das experiências de resistência. E deveria ser uma das abordagens da ocupação Ouvidor 63, frente à ameaça iminente, estabelecer esse acervo internacional que impacte outras ocupações, um conhecimento à disposição, e que desperte o surgimento de outras moradias coletivas alternativas.
Referências
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. 2. ed. Trad. Coletivo Syrorax. São Paulo: Elefante, 2023.
JESUS, Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. Cidade: Editora, ano.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Cidade: Editora, ano.
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