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1 de out. de 2023

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ESTABILIDADE NOMADE

Rocío Urbano

A próxima pergunta geralmente é: Por quê? Por que essas vidas escolhem ser nômades? O que as leva a percorrer as geografias e os anos dessa maneira? Por que elas continuam se movendo, indo ou voltando, sem data de término, sem certeza de qual será pela última vez, a chegada? Essas preocupações clamam pelo temporal, pelo projetado, pelo conquistado, pelos tempos dos processos, vendo o concretizado como um antes e um depois que aproxima o ser da estabilidade econômica/moral/geográfica que define e justifica seu lugar no mundo, sua finalidade funcional num sistema de servidão circular, porém, seu fim.

Para uma pessoa sedentária, a palavra “nômade” é um antagonista da “estabilidade”. O conceito de estabilidade oscila entre o propósito individual ideal (econômico/moral/geográfico) e o imposto estabelecido como o ápice da realização pessoal, sempre ligado à permanência de tudo em seu lugar. 

Os povos nômades chegaram a outros conceitos de estabilidade. Aqueles que cruzam fronteiras internacionais repetidas vezes, bem como aqueles que saem de casa e pulam entre distritos dentro das linhas do mapa de seu país, fazem desse movimento parte de sua estabilidade. Possivelmente, sua economia está diretamente ligada ao como e ao porquê desse domicílio “instável”, e a estabilidade foi, em sua melhor forma, genuinamente dada no afã de mudar seu lar para outra casa. Os vínculos materiais e a dependência intrafamiliar da maioria são um fato, e é tão circular esse contexto que apaga a história daqueles que começam sem um lar, daqueles que escapam do genocídio governamental, daqueles que se cansam de suportar a violência intrafamiliar, daqueles que se recusam a atender às expectativas do ambiente e decidem ousar sair de sua zona de conforto, tornar-se independentes e abandonar o estável. Considerando que esse ato nômade leva o ser a se afastar dos vínculos formados nas primeiras etapas da vida, das casas, dos empregos fixos, da freguesia trabalhada, dos palcos conquistados, das pessoas em quem se sabe que pode confiar, ainda assim opta por acreditar que tem mais coisas o aguardando, mais precisa chegar até lá. 

Há aqueles que viajam por negócios, funcionários, parceiros, partidas limitadas para fins pré-determinados. Independentemente do status econômico, político e social da pessoa, essa viagem sempre significará um esforço que será recompensado com o retorno à estabilidade de um estilo de vida sedentário.

Para uma pessoa nômade, essa viagem é uma constante diária que nutre experiências policulturais e renova ferramentas que são gerenciadas com eficiência, dando frutos férteis que são aproveitados como um motor que impulsiona com mais energia cada conquista que cria e mantém essa estabilidade nômade como algo palpável. A fome, a falta de espaço e a fuga da repressão dos outros levaram o ser humano a vagar pelo mundo, aquele pedacinho de terra que ele conhecia como seu, estava e sempre estará no mesmo lugar. Nós nos submetemos à ideia de outras terras, exilando-nos de lugares “alheios” os quais achamos difícil de alcançar.  As vidas nômades carregam as marcas de suas raízes, mas sabem que não são definidas por elas. Na busca pelo autoconhecimento e pela autorrealização, a pessoa nômade ouve e mantém a voz que diz o que é possível além, e, como em um transe de fé, continua a cruzar distâncias sem pressa para chegar ao fim. Persegue seu sonho do ideal sem deixar margem para dúvidas de que a melhoria constante da qualidade de vida, a alimentação do conhecimento, a expansão dos projetos e a multiplicação dos laços de confiança estão abertos, retroalimentando as trocas do recém-chegado com a pessoa local que apoia e reconhece as realidades nômades. 

 Todas essas conquistas indeterminadas na partida, mas projetadas, sem datas ou territórios, são um fato para aqueles que são sustentados por essa estabilidade nômade. Há redes e pessoas de todos os cantos do mundo, em todos os países do mundo. O mundo é nosso. Nessa itinerância, os direitos humanos são priorizados, defendendo a autonomia em detrimento das normas. É assim que as vidas nômades ocupam as ruas, as casas, as escolas, as lutas, habitando espaços e vínculos que desconstroem e redefinem palavras cotidianas como lar, família, educação, trabalho, amor. O propósito ideal é inconscientemente alcançado todos os dias na autonomia como algo estável que nasce, vive e depende apenas da autodeterminação de cada indivíduo, independentemente de onde ele esteja, mas ao mesmo tempo sendo crucial o uso do espaço habitado no aqui e agora. As pessoas sedentárias primeiro questionam aos nômades de onde eles vêm e, depois, se estão tentando a sorte, se são turistas ou se estão apenas passeando. E não é assim, o nômade, sem ter datas e locais fixos, sabe muito bem para onde está indo e aproveita ansiosamente seu tempo ao máximo, de acordo com um plano traçado por suas próprias mãos e baseado em seu próprio conhecimento, em seus desejos e em suas conquistas. Não depende da sorte de conseguir uma boa localização ou um bom emprego, muito menos da sorte de ter nascido na melhor família ou país. 

A maioria das pessoas que encontram estabilidade nômade são mestres de suas economias e criadores de seu trabalho, escultores de suas realidades. Se essa pessoa for um educador ou o cabeça da família, também acrescentará à sua sustentabilidade a devoção à expansão do conhecimento para aqueles que o cercam em cada etapa de sua jornada, dentro de si mesma ou para sua equipe, será responsável pela crítica construtiva do que é aprendido em cada lugar, do que é mostrado e do que é entregue. Há aqueles que conseguem entender que também existe um: Para quem? 

Em primeiro lugar, todo nômade leva a vida por si mesmo, é a constatação de que é possível viver à sua maneira em um mundo que parece ser feito apenas para aqueles que atingem aquela estabilidade ideal estabelecida. Possivelmente, eles também o fazem por suas famílias, para poder oferecer uma melhor qualidade de vida, seja ajudando de diferentes países, ou partindo com toda a família e superando as expectativas violentas de vida que o sistema deixa para aqueles que estão à margem do que já está estabelecido. Há pessoas que, por causa da violência familiar, se distanciaram de suas origens para criar novas realidades em que o amor próprio pode ser mais do que suficiente, cuidando de trazer informações de e para outros indivíduos e até mesmo para outras famílias. Mais paralelamente ao reforço direto de sua própria realidade e das realidades daqueles que alcança, inconscientemente, o nômade persiste em seu modo de vida, especialmente para seu público, as pessoas locais, demonstrando que há estabilidade sem sedentarismo. 

Essa demanda de pessoas itinerantes que chegam às grandes cidades ocorre paralelamente em muitos países do mundo e, coincidentemente ou causalmente, muitas delas encontrarão a possibilidade de resolver sua estadia em espaços recuperados. Edifícios estatais e mansões nos centros históricos das grandes cidades colonizadas da América do Sul e das cidades europeias, protagonistas da revolução industrial, foram abandonados por instituições e proprietários ricos, deixando casas gigantescas para os marginalizados que, livres de qualquer propriedade, transformam esses espaços esquecidos em lares, gerando pequenas sociedades e comunidades com empatia pela falta de moradia e força para seguir em frente no caminho de uma vida estável.

Galpão de Tolosa

Em La Plata, Argentina, existem os Galpones de Tolosa, um local ferroviário de manutenção que funcionou até 1990.

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Flyer Los Galpones de Tolosa. Acervo: Rocio Urbano.

Placa de letreiro afixada em parede de tijolo

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Frente do centro cultural El galpon de Tolosa dentro de Los Galpones de Tolosa. Acervo Rocio Urbano

video María Paula Etcheverry, Sofía Bustos, Virginia Cappelli y Tomás Grilli

 

Em 2008, os galpões foram ocupados por vários estudantes de diferentes organizações políticas, sociais, culturais e universitárias que abriram o espaço com a ideia de criar um local digno para estudar, ensinar e dar qualquer tipo de apoio social que estivesse ao alcance. Assim, durante a sua revitalização, eles administraram de forma autônoma e horizontal eventos e ações diretas, como ateliês artísticos, salas de apoio escolar, uma horta e um almoço popular solidário. 

De portas abertas para as necessidades comuns dos vizinhos e daqueles que chegavam aos Galpones de Tolosa, uniram-se a lutas e frentes que deram um uso produtivo à propriedade esquecida pelo Estado. Como a A.D.D.H.E.S., uma organização de pessoas auto-organizadas em defesa dos direitos humanos dos portadores de aids, encontraram um lugar onde podiam se reunir para se organizar em sua luta pela vida diante das condições negligentes que o Estado e a sociedade os deixavam. 

Naquela época, em La Plata, não havia serviços de atendimento para portadores de HIV, não havia medicamentos disponíveis e a maioria desses portadores estava desempregada devido à discriminação contra sua condição. Eles tinham que viajar horas para Buenos Aires para receber tratamento e medicamentos. Ter um lugar para se reunir era fundamental e, por meio de eventos e reivindicações públicas, eles conseguiram que o tratamento e os medicamentos chegassem aos hospitais de La Plata, junto com uma pensão monetária, um cartão de alimentação e recursos com os quais modificaram a infraestrutura dos Galpones de Tolosa, criando uma fábrica têxtil com empregos para pacientes com aids. Hoje, três famílias ocupam e habitam parte do local, resolvendo assim seu direito à moradia digna. Cerca de cem cooperativas de trabalho periféricas utilizam os galpões para fabricação. 


Los Galpones de Tolosa Acervo Rocio Urbano

Vemos em comum o fato de que todas essas pessoas conseguiram encontrar o caminho para uma vida mais estável ao ousar sair de seu território familiar e confiar na voz que lhes dizia que outras soluções eram possíveis nesse lugar que costumava ser abandonado. A arte e a educação andam de mãos dadas com as lutas populares diante dos desequilíbrios gerados por essa estabilidade estabelecida e, juntas, abrem caminho, em meio a escombros e leis, para os direitos básicos que todo ser humano merece, como moradia, saúde, educação e trabalho. Uma ocupação, seja qual for a sua posição geográfica, está sempre pronta para se tornar o lar desses espíritos lutadores, que se recusam a se submeter à escassez. Ocupar é resistir, e a existência de ocupações é, em conjunto, um lar estável para os povos nômades. 

 

O político e o pessoal

Conheci os Galpones de Tolosa por meio do coletivo A.D.D.H.E.S., que ia em busca de alimentos que eram distribuídos aos portadores do HIV e suas famílias, e minha mãe era um membro autoconvocado, na época desempregada devido à discriminação contra sua condição. Lá conheci outros membros da família como eu que, apesar de não terem a doença, participavam das reuniões, marchavam nas manifestações e sofriam com a negligência médica e a falta de atendimento médico sempre que iam como companhia aos hospitais. Saímos de diferentes periferias da cidade para nos reunirmos em uma ocupação e enfrentarmos a negligência governamental e social que permitiu que uma capital de estado não tivesse acesso a cuidados, medicamentos ou empregos para pessoas que vivem com HIV. Em La Plata, todo dia 1º de dezembro a A.D.D.H.E.S. realiza um evento de conscientização com bandas de música locais em uma praça no centro histórico, distribuindo material informativo, contraceptivos e camisetas com serigrafia artesanal ao vivo. Foi dessa forma que entrei no mundo das artes e, de mãos dadas com um coletivo marginal que, com autogestão, estava fazendo política social. Emiliano Lombardo, membro do coletivo como músico ativista, incentivou o reforço dos eventos com apresentações musicais de classe, dando mais vida à sua luta pela vida, conseguindo, assim, em cada manifestação, capturar a atenção da cidade, primeiro com seu poder como artista, depois com o poder de todo o coletivo em seu nível de autogestão, e, finalmente, quando se trata da reivindicação das carências, deixar em evidência que a fragilidade não está nos pobres, mas sim na precária capacidade de atenção dos governos diante da diversidade de realidades existentes na população. Foram esses eventos que me inspiraram a fazer música usando a arte como um portal de comunicação intersocial, acompanhando aqueles que sofrem injustiças e questionando os privilegiados que os ignoram e suas lutas.

Ocupar com ações diretas espaços públicos e estatais, além de tornar visível o sucesso da autonomia em tudo o que um evento público precisa (gestão, recursos, difusão, atividades artísticas, logística, técnica, segurança, conteúdo social), por estar focado na luta pela solução de um bem comum para a sociedade contemporânea (trabalho, saúde, educação, inclusão social), deixa em seus executores experiências que fortalecem sua estabilidade emocional na glória da liberdade de expressão e gestão, mesmo em meio a uma realidade excludente. É nesses eventos que se reúnem coletivos e indivíduos que não são exatamente da mesma cidade, mas que encontram deficiências comuns e se unem pela luta, encontrando nela um lugar seguro e inclusivo que atende às suas demandas mesmo quando estão fora de sua jurisdição. Esse seria mais um exemplo em que o indivíduo afetado pelo declínio do capitalismo, aplicando uma ação nômade e autônoma, consegue se aproximar de seu ideal de vida estável a partir da prática, criando alternativas para evitar se submeter às esperas propostas pelo sedentarismo e falta de organização jurisdicional, evidenciando a estabilidade como algo que não depende da permanência fixa em um lugar e associando o sedentarismo à inanidade como fator que adoece a qualidade de vida de indivíduos e grupos familiares das classes mais baixas.

 

“O pessoal é político” — Carol Hanisch

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Flyer A.D.D.H.E.S Acervo Rocio Urbano

video de ADDHES Prensa

Centro por los Derechos Humanos Hermanos Zaragoza

A casa Zaragoza é um espaço de memória e ação situado no centro de La Plata, cidade universitária, capital de Buenos Aires, carregada de histórias de resistência estudantil durante a ditadura na Argentina. No ano de 1975, dois irmãos estudantes da Faculdade de Ciências Exatas (Chilo Zaragoza e Neto Zaragoza)  foram sequestrados e assassinados pelo estado por serem membros ativos do centro estudantil e porque falavam em assembleias demandando melhorias básicas para aprendizagem e acessibilidades dos estudantes. A mãe deles integrou-se ao movimento de “Mães da Praça de Maio” conformado por mães de todo o país que tinham sofrido a perda de seus filhos e netos nas mãos do governo nacional. Luisa Cecchini teve a vontade de fazer uma placa em memória dos irmãos Zaragoza num casarão onde seus filhos tinham trabalhado. O antigo dono, um médico, tinha doado a propriedade ao estado com a condição de que fosse usada para o bem da comunidade, mas a casa estava abandonada. Um coletivo de educação popular nas periferias da cidade fazia suporte do movimento das Mães e decidiu ocupar a casa para abri-la como ateliê e espaço de memória, denominando-o Centro de Direitos Humanos Irmãos Zaragoza. Até hoje, a casa acompanha e divulga juízos a genocidas militares, casos de violência de gênero, lutas LGBTQIAPN+, e leva à cidade as lutas indígenas contemporâneas em que o governo, através de movimentos legais, expropria terras dos povos originários para fins comerciais. Mais uma casa esquecida pelo estado, mais uma casa que lembra ao povo que a ação pelos direitos humanos é responsabilidade e direito de todos, sempre em companhia dos artistas nômades que, no seu passo pela casa a tem re-habitado, preenchido o silêncio com músicas, saraus, desenhado a memória em murais coloridos, e trabalhado com as mãos em oficinas de artes plásticas criando obras que falam mais que mil palabras. Participei de um evento solidário tocando baixo na minha primeira banda e expondo meu primeiro quadro.

Centro DDHH Hermanos Zaragoza Acervo Rocio Urbano

video “Tres okupaciones diferentes” da editora independente “VomitArte” sobre okupas da cidade de La Plata ao final do vídeo declamam “é mais que permitido copiar e difundir este vídeo: é preciso!”

El Bosquecito de Hernandez

A tradução do nome seria “A pequena floresta de Hernandez”  ocupada durante 8 anos. Um espaço verde que sobrevivia na periferia da cidade ante a mega construção de bairros privados para classe média e alta. Uma fábrica de materiais de construção abandonada junto a uma grande área verde. Ali um grupo de mulheres viu a oportunidade de escapar das reformas que o governo estava tentando impor na agronomia argentina, privatizando as sementes orgânicas e forçando os pequenos agricultores a aderirem aos monocultivos transgênicos e ao negócio dos agrotóxicos, tão daninhos para a saúde de quem se expõe a tais químicos como para a terra que começa a ficar estéril para as sementes naturais. 

Na “floresta”, quem tiver consciência sobre seu direito a uma boa alimentação e preservação da memória ambiental, chegava com sementes e vontade de meter as mãos na terra. tanto para expandir a horta comunitária como para aprender alternativas ancestrais para moradia levantando cômodos com bioconstrução. Como toda área que vira privada nas periferias, ainda tinha o contraste de pessoas de baixa renda com pouquíssimo acesso à arte e à cultura. Por causalidade da vida, essas agricultoras, essas construtoras eram também artistas! Para manutenção do espaço e instalação de água e eletricidade, foram feitos muitos eventos com bandas convidadas, apresentações artísticas e buffets veganos, doação de sementes orgânicas, conexões com etnias indígenas que eram constantemente atacadas pelo estado nos interiores do país, e rituais de espiritualidade feminina com ervas medicinais.

Placa com dizeres

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaGrupo de pessoas sentadas ao redor de uma árvore

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El Bosquecito de Hernandez Acervo Rocio Urbano

El Embarcadero

Em 1947 o filho do fundador do povoado Álvares, interior de Buenos Aires, começou a construir o que seria um hotel, pela sua localização do lado da rodovia que conecta com a capital do país. Embora fosse um bom projeto, foi abandonado no ano de 1950. Muito tempo depois, em 2015, assisti, voluntariamente, um encontro de artes circenses no local. Lá encontrei uma organização horizontal de artistas, a maioria nômades, que trabalhavam em conjunto com artistas, professores e agricultores locais. A demanda por moradia desses viajantes e a demanda de espaços de criação da comunidade local se encontrou na união ocupando o espaço com pessoas que queriam algo mais do que o fluxo da capital e acharam no embarcadero uma folha em branco para combinar imaginários. 

Assim, revitalizaram o espaço tanto para quem ficasse morando como para tê-lo pronto para as visitas que procurassem um espaço alternativo onde aprender, compartilhar e criar. Foi estabelecido um estatuto de normas de convivência, um dia semanal para assembleia geral, completaram as paredes que faltavam num canto da torre com bioconstrução e foi aí que se inaugurou um teatro aberto à livre expressão. 

No encontro que me fez conhecer essa ocupação artística, tomei oficinas de técnicas e numerologia do malabar com artistas jugglers que hoje são referências e trabalhadoras ativas na pesquisa do circo contemporâneo, participei de uma variété com bolas de sabão gigantes envolvendo uma pessoa do público, acompanhada de música ao vivo, da mão de uma orquestra palhaça composta por cinco pessoas que viajavam de Kombi, e comemorei o encerramento dos três dias de encontro com um cortejo até a praça principal que fechou a fanfarria plantando uma árvore de abacate com o sonho de o município não interferir e no futuro comer da terra que um dia foi trabalhada por artistas, comer a memória. Nele se mantinha um bom convívio com os vizinhos através da horta comunitária, o bicicletário popular, o ponto de reciclagem e a produção de ecotijolos.

El Embarcadero Acervo Rocio Urbano

https://desalambrar.com.ar/el-embarcadero-a-este-espacio-no-hay-que-recuperarlo-porque-esta-vivo-y-es-libre/ video entrevista do site journal Desalambrar

El Crematório

Também conhecido como Espacio Pluricultural Hijes del pueblo pintado a mão no vitral do lado da entrada principal, junto com uma Wippala evidenciando que “O Crematório” era mais que uma fábrica ocupada com a cultura local. A palavra pluricultural, confirmando a resistência de outras culturas nesse canto de Hurlingham, localidade periférica de Buenos Aires — sabida como um dos tantos esconderijos de famílias nazis que fugiram para Argentina ao final da segunda guerra mundial, onde é possível identificar símbolos da SS gravados nos portões de ferro de alguns dos grandes casarões da época que ainda existem nos centros das cidades ferroviárias. Nesse contexto, dar uma identidade cultural híbrida ao espaço era uma forma de se posicionar contra ideologias violentas e fascistas, além de propagar o fato de os povos originários terem uma grande sabedoria ancestral sobre terra, céu, corpo e espírito, muito antes da chegada “alfabetizadora”,, ou melhor dito, doutrinal dos europeus colonizadores, embranquecedora das culturas.

 Foi uma família andina que morava do lado da fábrica que decidiu abrir o espaço como um ponto de leilões, seguido de eventos com bandas do bairro, skate point, e aulas de quíchua e aimará, línguas andinas que até hoje resistem entre camponeses e centros urbanos da Bolívia e do Peru. Nessa época, o espaço se mantinha fechado e abria somente para essas atividades esporádicas. Numa praça perto do local resistia um encontro semanal de treinamento de circo e malabares, e, numa tarde de chuva, os artistas imaginaram fazer o encontro dentro do “crematório”, que, apesar de ter algumas atividades, ainda tinha muito a fazer no porão ao final do local que era o mais indicado para o encontro, devido ao seu teto alto e amplitude. Essa foi a primeira troca, reformar e limpar como contrapartida do uso do espaço. A família aceitou o trato, e o que era um encontro semanal, com a chegada de artistas nômades de outros países, transformou-se em um centro cultural e moradia artística. Os artistas nômades traziam novas propostas em troca da moradia itinerante, começaram as oficinas de acrobacia, treino físico, aéreos, equilíbrios, música e malabarismos. De segunda a segunda, o espaço abria às 10:00, com novos murais nas paredes, ludoteca para as crianças, almoços coletivos e uma “gratifeira” na porta, que consistia em doar roupas e calçados para quem precisasse. As decisões eram por consenso de maneira horizontal, todas as quartas-feiras, numa assembleia aberta a propostas para o espaço. Iniciamos uma parceria com um refeitório solidário de rua que dava chá e lanches para 40 crianças de entre 2 e 12 anos, abrimos o espaço para eles fazendo ciclos de cinema infantil com debate no final, estimulando o pensamento crítico e a boa comunicação. Eram crianças muito difíceis, vinham de realidades muito violentas, sujos, magros, agressivos e tristes, sempre tinha brigas e choros, o que nos fez enxergar as dificuldades que atravessavam sua infância e a nos questionar, o lanche e o filme eram realmente suficientes? 

Marcamos uma nova atividade: íamos a brincar de super-heróis, nos inspirando a imaginar superversões de nós mesmos; nos sentávamos em roda com as crianças identificando o que é um super-heroi e inventando os poderes que teríamos; e encerramos a atividade customizando 40 capas para nossos novos personagens — naquele dia não teve brigas nem choros, ninguém se lembrou da violência, os mais agressivos esqueceram da hostilidade e compartilhavam e ajudavam com as tesouras aos mais pequenos. Os pais dessas crianças eram indiferentes a nós, nunca se aproximaram nem para acompanhar as crianças, nem para trazê-las nem para levá-las para casa; nós tínhamos um sistema de ir a buscá-las com uma corda de 10 metros, porta a porta de cada barracão, e as transportávamos pelas ruas em fila com a condição de irem se segurando na corda. 

Nesse espaço aprendi que a ação social de alimentar e lidar somente com conversas os desabafos das classes baixas não era suficiente. É preciso preencher os vácuos, além da fome e da falta de espaço, a transmissão da cultura não é só entretenimento, por isso assistir um filme não era suficiente, a ludoteca e o tempo livre não eram suficientes para a criança esquecer ou entender como lidar com a violência de casa e da sociedade. Mas atividades que desafiassem o pensamento cognitivo e os fizessem por as mãos à obra estimulando a imaginação, uma atividade artística participativa do início ao fim foi o que ultrapassou a expectativa da capacidade dessas crianças e de nós mesmos, artistas nômades sem formação pedagógica, para saber como ensinar ou lidar com a psique infantil. 

Na verdade, a ideia da atividade chegou por parte de mães e pais que integravam a organização na hora que os artistas sem filhos começaram a desistir de participar das atividades por ser tão delicada a situação dessas crianças revoltadas pela hostilidade das suas realidades. Os materiais da atividade saíram do caixa da casa, no qual colocávamos o dinheiro arrecadado das vendas e rifas dos nossos eventos, cujas tarefas eram rotativas, com horários organizados, mas sem fins lucrativos individuais. Ninguém ganhou dinheiro nem reconhecimentos por todo o trabalho feito na ocupação do crematório, mas sim experiência, afinal, ocupar artisticamente é resistir a um sistema que dita que tudo tem um preço, ou ainda, que o que se dá de graça costuma ser as sobras. Tínhamos outro caixa para comidas coletivas, comprando nas cerealistas todo tipo de produtos orgânicos para uma alimentação saudável — embora a maioria não se restringisse de produtos animais, fazíamos somente comidas veganas e vegetarianas trazendo à casa, ao corpo e à mesa o aporte de não contribuir para a indústria das carnes, tendo consciência dos pontos negativos e cruéis para os animais, para o meio ambiente e para nós mesmos. Nós, hijes do povo, tendo entre nós pessoas trans não binárias impondo uma ideologia que, a partir da dis-generalidade, se contrapõe ao sistema patriarcal que se reforça não no masculino, mas sim na figura autoritária do homem, o senhor, o dono. Os ocupantes artísticos têm um accionar incompreensível pelo capital, tornaram-se material de pesquisa. 

Fecharam o crematório na pandemia, as crianças voltaram a preencher as ruas, a vizinhança local e a rotina nas casas, e os artistas nômades continuam nas estradas. Uma outra ocupação, que misturava toques punk, moradia e economias criativas para mulheres ex-presidiárias com uma escola de panificação e aulas de kickboxing, e foi despejada, traz a ação direita de um casal anarquista, ocupantes do “Aquelarre”, que botou uma bomba caseira no túmulo do Ramon Falcon, chefe da Polícia Federal na época de La Liga Patriotica, grupo nacionalista de extrema direita  que torturarava trabalhadores indígenas e imigrantes em 1909. A bomba explodiu nas mãos da anarquista, que foi encarcerada sem atenção médica.  A falta de informação criadora nas zonas vulnerabilizadas é perigosa, permitindo que a dor responda à violência com mais violência.

 

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Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo no interior, quarto, vivendo, bicicleta

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo no interior, mesa, vidro, quarto

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo pessoa, estrada, criança, jovem

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Fonte Acervo El Crematorio, Jose Lash Colega da okupação

video Jose Lash

La Toma

Em Lomas de Zamora, sul de Buenos Aires, tem uma ocupação artística do lado do trem de Lomas chamada La Toma, que conheci através de um festival de cinema anarquista nômade que, naquela edição, combinava uma série de documentários brasileiros sobre okupas queers e anarquistas, de São Paulo e outros estados, com uma feira de livros anarquistas composta por várias editoras independentes. Havia uma rifa que, com minha filha, ganhamos um livro infantil sobre mulheres anarquistas na Argentina, da editorial Sudestada, sobre Virginia Bolten e Juana Rouco Buela, mulheres que alçaram a voz pelo direito das trabalhadoras que em 1907 sofriam ainda mais do que os homens pelas condições laborais e pelos salários mais baixos. 

La Minga

Saindo de La Toma um dia fui convidada a conhecer e me apresentar numa outra ocupação artística que estava tomando forma num bairro de Alejandro Korn, interior de Buenos Aires. O evento era uma variété de circo com bandas ao vivo, venda de cerveja artesanal, feita por um colega da ocupação, e comidas veganas, ao benefício de um refeitório solidário para as crianças carenciadas que moravam nessas terras ocupadas por casas precárias onde famílias de cinco pessoas habitavam um barracão de quatro muros de madeira e chapa, um lar dentro de um espaço de 25 m².

Apesar dos diversos compromissos que tinha nesse dia, consegui atravessar a cidade e apresentei meu número de palhaça para essas crianças que, por sua vez, nessa mesma noite, fizeram uma amostra das destrezas circenses ensinadas pelos ocupantes anarquistas. Minha visita evidenciou nossa afinidade de ideias, enquanto compartilhamos comidas, músicas e conversas. Depois de algumas visitas fui convidada a morar lá. La Minga era feita de barro e material reciclado na estrutura dos muros, eram como galerias de arte trash eco industrial. Um espaço comunitário com biblioteca e mesas para desenhar e cozinhar, e quartos com formas oblíquas diferentes de todas as paredes de quadros lineares perfeitos que tenho habitado em toda a minha vida. O quintal era imenso e tinha uma horta que fazia as nossas saladas ainda mais especiais. A cozinha era do lado de fora, com fogão a lenha. O banheiro era seco, com um sistema que apoiava o desuso dos esgotos evitando ser parte das inumeráveis águas negras. 

O quintal contava com uma estrutura de trapézio feita a mão por um artista nômade do Chile que chegou com conhecimentos de infraestrutura de circo, acrobacia, malabares e luthieria. As primeiras ocupantes da casa eram mães, artistas nômades, palhaças e artesãs. Seu instinto maternal mantém aberto o espaço para todes, defendendo que as crianças ficassem o dia todo no espaço se quisessem, lidando com a violência reproduzida às vezes pelas crianças. Me despedi como a uma guerreira tocando tambores e soprando trutrucas, instrumento ancestral mapuche, decretando em cantos que voltaria.

Uma imagem contendo jovem, mesa, coberto, homem

Descrição gerada automaticamenteHomem com criança na calçada

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaUma imagem contendo Texto

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Fonte Acervo público La Minga

Homem em pé na frente de um prédio

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaPlaca vermelha com letras brancas

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte Acervo público La Minga

La Redonda

No “Crematório” consegui fazer conexões intercontinentais. Uma delas foi com uma família que chegou propondo oficinas de fitoterapia e doação de mudas de plantas comestíveis, com mutirões na terra, aprendendo sobre cultivo e ciclos solares. A proposta foi feita pela mãe da criança, como contrapartida pelo pedido de apoio em prestar moradia para o pai da criança que vinha de Madrid para cuidar do filho por alguns meses. 

Um ano mais tarde tive que fazer uma viagem a Espanha aceitando a proposta da minha família paterna de me oferecer uma moradia digna depois de ter se ausentado da minha vida desde os meus dois anos de idade. Vinte anos de ausência me fizeram duvidar da qualidade de vida que podia ter ali, longe dos imaginários românticos dos encontros intrafamiliares, uma vida sem liberdade. Assim me passaram o contato de uma ocupação que já tinha 20 anos perto do centro de Granada, cidade onde seria recebida por minha “família” de sangue. Globalizada na cena contracultural da Espanha rebelde, anárquica, organizada e ativista, preparei um acervo de todo o material anarquista que tinha na biblioteca pessoal, juntando fanzines e o livro infantil de história anarquista. O único que tinha era o nome: “A redonda”, pesquisei e encontrei no mapa junto com um site contendo todas as informações atualizadas das atividades, xeroquei o acervo e assisti ao treino livre de trapézio esperando a pessoa responsável pelo espaço. 

Carmen chegou junto com a noite e ao ver as frases dos parches na minha roupa perguntou se eram do Chile, demonstrando estar informada sobre a forte contracultura anarquista da juventude chilena. Dei risada porque tinha passado pelo Chile e a maioria dos meus parches vinham de lá. A senhora era uma anarquista que tinha visto todas as transições do espaço, fazendo parte de bandas de mulheres punks, baterista antissindicalista, filha do nomadismo; seu pai, um cubano que a liberou de frequentar a escola na época da ditadura fascista de Franco, lá pelos anos 1970. Expliquei minha situação, uma artista autônoma, mãe nômade que vinha à casa da família que não conhecia, mas que nesses poucos dias se revelaram com confiança nas suas falas e pensamentos de extrema direita racistas e machistas. Carmen, sem me conhecer, me brindou a certeza de que podia contar com ela para o que precisasse, incluindo moradia e assistência jurídica. Passou uma semana e fui violentada verbal e fisicamente pelo meu “pai”. A família falou que eu tinha que aceitar por ele ser meu pai... Uma família conservadora violentando uma vida abandonada por décadas, impondo que a estabilidade lhe brindaria, sujeita à submissão dos ideais se privando de parâmetros de respeito pessoal. 

La Redonda me recebeu na biblioteca durante 20 dias até meu voo de regresso. Nesses dia conheci de perto o espaço e participei do evento de encerramento do ano, cantando minhas músicas e gravando uma entrevista para uma rádio local, num programa apresentado por um locutor chileno com o qual, numa conversa, achamos afinidade por termos habitado outra ocupação no interior de Valparaíso, no Chile. Na Redonda funcionava um teatro, um ateliê de xilogravura, uma horta, um bicicletário, oficinas de aéreos, incluindo tecidos e trapézios fixos para treinos livres, uma cozinha que abria um buffet vegano para abastecimento do caixa da casa, a biblioteca e o quarto de marcenaria. O foco do evento de final de ano foi uma grande feira de autoprodução com camisetas serigrafadas, artes gráficas e edições independentes e traduções. No quarto de marcenaria, Carmen estava ajudando um colega senegalês a fazer sua resistência burocrática no país, que depois de sobreviver 3 anos de residência como imigrante irregular podia começar a tramitar documentos legais. O espaço foi despejado na pandemia. 

Calendário

Descrição gerada automaticamente

Fonte Acervo público La Redonda

El 22

El 22 foi a ocupação artística que me recebeu no primeiro dia, assim que cheguei em Santiago, em troca de uns dias de trabalho voluntário na construção coletiva de um segundo piso de madeira, feito a mão, com ferramentas profissionais que a organização tinha comprado com o caixa dos eventos artísticos, pelas vendas independentes, um esquema idêntico de organização entre os autônomos do mundo, uma globalização dada além dos meios de comunicação, uma globalização contracultural dada pelo nomadismo artístico. Casa nômade com pessoas de sete países naquela ocasião. No último dia desfrutamos das apresentações e compreendemos através da cena musical local os ideais que se contrapõem desde a boemia chilena até o poder da repressão que perdura nas figuras de poder desde as suas ditaduras. El 22 foi despejado na pandemia.

La Cazuela

 A poucas ruas do El 22, tinha o casarão da okupa La Cazuela, também sobre a  Av. Vicuña Mackenna, de frente ao metrô Los Quillayes. Impondo presença artística com a sua estrutura de aéreos com trapézio, lira e tecido que cabia certinho no quintal da frente da casa, se destacando na avenida cinza pelo frio da cordilheira. 

El 23

El 23, menor que as outras okupas artísticas, fazia uma resistência de comida vegana e orgânica convidando aos artistas itinerantes que estavam de passagem e que resolviam cozinhar sem carne, conforme os parâmetros da proposta da casa, alimentando assim muito mais que o vácuo da fome.

Casa TIAO

 Nessa okupa fui recebida pelo consentimento de um colega músico de circo, também nômade, ocupante da El 22, de Santiago, e da Casa TIAO, de Valparaiso. Durante as noites habitamos o quarto do tatame, feito a mão, com lonas e pregos para treinos e alongamentos. Nossa contrapartida foi revitalizar o espaço do quarto, assim como outros setores de uso comum desse primeiro andar. Nas tardes havia oficinas de globoflexia, aéreos, sanfona, eletrônica, tendo à disposição também aulas de música, salão de tatuagem, cozinhas coletivas, e o uso constante de um ateliê de bonecos gigantes para teatro de rua. Valparaíso, cidade portuária e boêmia, durante as noites desatava nessa ocupação a liberdade de uma cena da arte under caótica e visceral, com toques de música punk, hardcore, grindcore, post punk e noise, e freak shows com exposição de tatuagens, modificações corporais, pirofagias, fakirismos e suspensões corporais performáticas, juntamente com performances queer e soft BDSM. Era a libertação dos dogmas da geração que nasceu da ditadura militar e todo um sistema opressor do prazer da natureza humana e o seu livre arbítrio. A casa foi despejada em 2024.

Casa 4:20

Solía ser um colégio de padres católicos na época da ditadura, nos salões de aula tinha pequenas janelas para espiar o comportamento dos alunos. Foi ressignificado com uma ocupação artística que misturava culturas com oficinas de dança afro e capoeira, e brindava residência artística a músicos nômades com instrumentos de orquestra. Também era regido por uma assembleia horizontal e comidas veganas coletivas.

Traziano

 Essa ocupação artística situada no interior de Valparaíso se destacava por ter sido feita do zero num terreno adaptado ao treinamento de parkour, com casas de madeira, bioconstrução, banheiro seco coletivo e cozinha a lenha comunitária. O espaço era frequentado desde cedo por esportistas selvagens que voavam pulando entre as árvores, ultrapassando os limites dos corpos sedentários. Estava aberto a residências artísticas itinerantes e músicos que trabalhavam a madeira das mesmas árvores do terreno fazendo djembes e didjeridoos artesanais, combatendo a partir do mato a contaminação acústica das cidades com batidas e frequências ancestrais.

Desenho de uma árvore

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte Rocio do Coletivo Parkour AFC.

Aldeia Maracanã

 Atualmente, ao lado do estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, a Aldeia Maracanã mantém uma resistência de território indígena de mais de 500 anos. Ocupando o espaço com a cultura tupi-guarani e guajajara, aberto com o objetivo de fazer uma faculdade indígena regida por suas próprias lideranças e sabedorias ancestrais, mantém sua estética com pinturas naturais feitas com jenipapo marcando na pele símbolos de proteção e força nos contextos que estiverem atravessando. 

A Tropa de Choque invade o prédio ocupado, SEM MANDATO, expulsa parte dos ocupantes e mantêm três lideranças indígenas em situação de detenção coercitiva, vigiados por dezenas de militares. Às 6h da manhã do dia seguinte, a PM, novamente SEM MANDATO JUDICIAL, invade o território ocupado pelos indígenas e o interior do prédio, e retira seus ocupantes à força, arrastados pelas escadarias em ruínas, com uso de gás de pimenta, imobilizados, sob socos e pontapés e golpes de cassetetes, alguns são detidos, de forma exemplar... 

Tudo conforme o script da truculência e do poder ditatorial... mas eles não contavam com a coragem e resistência de um último indígena que atraiu pra si todo o aparato do Estado e da mídia fascista da época... O nome dessa pedra no sapato do Status Quo? URUTAU GUAJAJARA... Aldeia Rexiste!!

CESAC

O Centro de Etno-conhecimento Socioambiental Caiuré (CESAC), uma extensão da resistência da Aldeia Maracanã situada na periferia do Rio de Janeiro, em frente ao metrô Tomás Coelho, na rua Maracá, aos pés do morro Juramentinho, na beira do limite entre o bairro e o crime organizado. Alvo de balas perdidas dos tiroteios entre as facções em guerra e os policiais. Uma área de extrema violência, com uma grande população de crianças sem acesso a arte e cultura. Em 2014 criou-se uma parceria com uma artista do sul do brasil enxergando o potencial do espaço como galpão de circo devido aos seus altíssimos tetos. Se fez um acordo de dar moradia a artistas itinerantes em troca de manter as atividades culturais e a manutenção do espaço. Morei durante três meses nesse espaço, aportando com oficinas de bambolês para todos os corpos e apresentações artísticas dentro da comunidade como ação social para as famílias do bairro. No espaço funciona uma escola de kickboxing fomentando a saúde física e a disciplina como terapia de escape perante a hostilidade do entorno e da sociedade. 

Ouvidor 63

A experiência na maior ocupação da América Latina se destaca das outras por questões além das estatísticas, uma verdadeira Torre de Babel, a peripécia censurada de Dante Alighieri, a resistência do quilombo, a alfabetização dos ciganos, o reparo das doutrinas, uma quarentena artística, centos de artistas procurando a cura, para continuarmos resistindo eternizados em obras e na memória de quem compreendia e sentia, mas não sabia como expressar seu amor, como expressar sua raiva.

Entrei na Ouvidor 63 por Amor, minha filha, que estava se hospedando junto com o seu pai e me convidaram para comemorar seu aniversário no prédio junto com as outras crianças da ocupação. Nessa visita passei por todos os andares conhecendo os coletivos e de imediato comecei a fazer amizade com artistas membros do 6/12 Circus, me somando a apresentar no projeto de circo social, que leva cultura a comunidades periféricas, fazendo intervenções artísticas com circo, música, brincadeiras, balões e maquiagem artística para as crianças, todas atividades que, como multiartista de rua, faço com muita dedicação. Notando minha disponibilidade com o circo social, uma colega me ofereceu moradia artística no décimo segundo andar, para formar parte da frente que mantém ativo o teatro da ocupação. O teatro era denominado de La Mimo, em homenagem a uma artista de rua assassinada pela força militar chilena. A globalização da luta foi evidente desde o começo. Cada dia compartilhava tarefas e ideais com pessoas de toda a América Latina, o intercâmbio cultural foi irreversível, desde o ouvido até o paladar, o convívio além da moradia em cada andar, pois o prédio leva uma interconexão entre andares, coletivos, identidades e linguagens artísticas, conexões que as pessoas vão gerando por afinidade misturando referências artísticas, pensamento político e a ação social de compartilhar essa experiência imersiva que é entrar no Centro Cultural Ocupacional Ouvidor 63.

O décimo segundo andar mantém um estatuto que passa uma ideia firme propondo um espaço reservado para dissidências e mulheres artistas itinerantes ativas no coletivo de circo dispostas a manter o espaço aberto com atividades e a cozinha livre de carnes, promovendo o antiespecismo e a criatividade nas comidas feitas para as cafeterias do andar, do circo e de eventos gerais do prédio, produtos livres de sofrimento animal. Pensando no que mais eu tinha para oferecer no décimo segundo andar, fiz oficinas de criação de contos para crianças e uma performance da minha pesquisa em projeções analógicas com água, acrílicos, luzes e sombras. No teatro descobri meu interesse na parte técnica, trabalhando na iluminação de outras artistas usando os conhecimentos que uma colega do coletivo havia me passado. Logo foi a divulgação dos eventos, criação de conteúdo para as plataformas digitais, flyers, textos. Ser parte da organização do 4 FICAR — Festival Internacional de Circo e Artes de Rua — abriu mais caminhos explorando a serigrafia artesanal na produção de camisetas do festival. Ocupei o palco da Noite de Minas com “Romântika” meu número que aborda o amor nômade, as ilusões, o compromiso, os vínculos, o amor incondicional e o amor próprio no meio da bufoneria e utilizando a destreza como metáfora abstrata das coisas incríveis que se fazem por amor até de olhos fechados.

Na okupa tinha também amigos que conhecia de outras partes de nossa viagem. Foi um amigo modificador corporal e artista performático que me convidou a participar de uma performance neon-freak no teatro, o encerramento da “Galeria Marginalia”. O roteiro da dramatização ficou nas nossas mãos, artistas itinerantes migrantes convidados ao encerramento marginal da destruição de uma galeria neon, e o elenco composto por pessoas do Equador, do Peru, da Colômbia, da Argentina, da Suíça e do Norte do Brasil. A ideia era uma comunidade pós-apocalíptica se impondo sobre uma minoria do imaginário neon, representando os seres puros quase fantásticos nos tempos da modernidade. Escolhi representar uma mulher do Oriente Médio, sendo sequestrada e submetida, mas no final libertada. Os cenários imaginários fantásticos nos dão a oportunidade de visibilizar problemáticas reais enriquecendo as obras com o pensamento político, mas nos mantendo à margem de qualquer bandeira partidária. 

As roupas da garota sequestrada me fizeram ir parar num desfile de moda sustentável pós-apocalíptica, denominado “Periespiritu”, um projeto que veste a ideia de um mundo que já está destruído, brincando com customização de velhas prendas e acessórios que dão identidade a cada obra trazendo conceitos cyborg futuristas e sustentáveis. 

A ideia de profissionalização empírica foi por completo e palpável, com a experiência de trabalho multiartístico no Festival Imaginação 23 (Unifesp/SESC Carmo). A okupa já tinha em diálogo uma proposta há alguns anos e finalmente, depois da pandemia, conseguia fechar a parceria, com um último chamamento para consolidação da proposta final. Essas semanas de reuniões entre as frentes artísticas da okupa foram enriquecedoras em nível burocrático e gerencial, já que tinha que se passar por vários acordos de organização e compromissos coletivos para construir uma proposta escrita que tivesse coerência gerando harmonia entre as atividades e relevância pública. Decidiu-se por fazer o experimento social de dividir o total da verba de maneira equitativa entre a quantidade de pessoas envolvidas, passando por alto a quantidade de tarefas que caberia a cada um. Fiquei perto das pessoas que ficaram responsáveis pela escrita geral, dos documentos e das fichas orçamentárias. Escrevi a apresentação e a proposta do desfile Periespiritu, cuidando de dar a representatividade que o coletivo estava buscando interiorizar em palavras. Logo participei do show de circo criando um número em conjunto com outra palhaça. Participei do dia de Sarau tocando meus sons autorais em companhia de outro músico que conecto em minhas músicas e reversionamos algumas. Desfilei uma nova obra com o Periespiritu. Entrei pela primeira vez no coletivo do “Motor Humano” acompanhando monster bikes artesanais com meu monociclo e uma performance tocando violão e cantando em equilíbrio. Ser remunerada de maneira legal pela minha arte e o meu trabalho de produção era antes um pensamento difícil de concretizar. Fazer parte do Festival Imaginação 23 me fez perceber a importância de se envolver em projetos que valem políticas públicas, tanto para meu crescimento como artista como para fazer apresentações de qualidade através dos recursos disponibilizados pelas áreas de cultura dos governos e de outras organizações e empresas privadas que respaldam leis que amparam a descentralização da cultura. 

Voltando às atividades do 6/12 Circus, pedi licença ao coletivo para fazer uma exposição de fotos da história do teatro, acreditando que era necessário ter uma explicação mais crua de como foi feito o teatro, de quantas mãos passaram pelo 6/12 e quanta diversidade de artistas ocupam o palco do teatro La Mimo. Com o apoio de fotógrafos da ocupação fiz uma curadoria de 8 anos de material fotográfico, fazendo uma seleção que evidencia etapas da infraestrutura, parcerias com outro coletivos, diversidade de corpos, identidades, linguagens artísticas e finalizando com um texto curatorial resultado de toda a minha pesquisa para uma boa representatividade da exposição. A montagem foi feita em colaboração com a “Galeria Marginalia” na visão de simetria e enquadramento das obras. A ideia de fazer uma exposição fotográfica era uma forma de apoiar a causa judicial da ocupação em seu processo de resistência a uma reintegração de posse. A primeira defesa que a gente tem para não sair de casa são as melhorias feitas no imóvel antes abandonado. Montar uma exposição da história do teatro foi meu aporte artístico para uma possível estratégia legal, um escudo histórico, uma burocracia poética e segura, além de uma motivação para próximos artistas itinerantes que chegassem a se questionar por que estão dedicando tanto tempo e energia a esse coletivo, esse teatro, essa ocupação. É curioso como tem tanta gente que sabe que a Ouvidor 63 é a maior Okupa Artística de toda a América Latina, mas dentro da Ouvidor tem muitas pessoas que desconhecem a existência de outras okupas artísticas, porém, desconhecem seus sistemas, o que leva a uma exotização e a questionamentos das formas e normativas do prédio. Tomar consciência da exotização do movimento okupa artístico me inspirou a escrever este relatório que menciona 18 okupas que, paralelamente, têm funcionado como semelhantes, além dos contextos sociais e políticos de cada país, cada cidade. 

O centro de São Paulo é um imenso e sofisticado polo cultural, onde se obtém os conceitos do underground e os devolve polidos e prontos para a venda comercial de arte contemporânea. E, assim, como se explica que a arte vandal seja punida social e legalmente, mas que a fotografia de um grafite seja exposta numa sala de museu, e sem reconhecimento do artista, mas sim do fotógrafo pesquisador de arte contemporânea? Acho indispensável ocupar nossos espaços de fala e contar nossas próprias histórias. 

Nessa afinidade em misturar arte e realidade com pensamentos político-poéticos, fui convidada a formar parte das Varieté Sem Memória, uma proposta do coletivo “Lab 4º andar”, que estava indagando sobre incluir conteúdo histórico em espectáculos de circo-performance. A ideia era contar a história, sempre tão trágica, de mortes injustas e ao mesmo tempo cheia de vida e esperança. Experimentamos novamente elencos multiculturais contando as histórias das ditaduras, a criminalização da arte, o genocídio, os manicômios, os despejos, trazendo a memória com experiências imersivas de arte de alto impacto, dramatizações de diferentes arquétipos de terapia de choque e a força do ser humano em vencer isso tudo e no final ser livre, estando juntos. Os recursos visuais que compõem as cenografias das Sem Memória juntamente com oficinas de videomapping me brindaram a autonomia para mais na frente ter minhas próprias composições visuais criando cenografias digitais para nossos projetos e reforçar tecnologicamente números de outras artistas. Ter tanto o que dizer me impulsionou a aprender a falar direito o português para conduzir palcos abertos na porta da ocupação nos tempos de tentativas de reintegração de posse. Viver em Ouvidor 63 me deu a oportunidade de chegar até aqui.

Flyer feito por Rocio Urbano para grupo de estudos presencial na Ouvidor 63 comparando 18 ocupações artísticas 

Este grupo de estudos nasce da necessidade de des-exotizar a existência de ocupações artísticas e decolonizar comparações eurocêntricas sobre o movimento okupa ligado às artes como ferramenta de impacto social, com a intenção de globalizar realidades contraculturais onde a autonomia artivista ocupacional surge como solução natural a distintos contextos de negligência governamental, desmitificando o conceito que hierarquiza em linha temporal uma estrutura violenta em que a Europa cria o movimento squat e a América Latina o reproduz.

Como atual ocupante do Centro Cultural Ocupacional Ouvidor 63, Rocio Urbano traz as memórias de outras 17 ocupações artísticas que abriram as portas para ela ao longo da sua caminhada como artista nômade na Argentina, no Chile, na Espanha e no Brasil, muitas delas já despejadas e algumas ainda em resistência ativa, mas todas igualmente importantes e reais. Nesses encontros mergulharemos nas semelhanças desses espaços de luta, que paralelamente e sem conexão têm nascido, se organizado e resistido aos ataques estaduais que privatizam o direito à cidade, à cultura e à moradia digna.

Indagaremos nos contextos geo-sociais que têm em comum a negligência governamental de cada país e a autonomia como resposta imediata a novas vidas dignas: estratégias legais, métodos de organização horizontais, artivismo como ação social local, multiplicidades e nomadismo lutando por moradias dignas. Evidenciando artistas e empreendedores autônomos indispensáveis nesses organismos vivos que são as ocupações culturais. Juntxs somos mais fortes. Ocupemos a História, 

nossas memórias=nossos espaços de fala .

A multiplicidade é a capacidade que a diferença tem de (se) multiplicar.

(Texto convocatório para abertura do grupo de estudos, por Rocío Urbano).

Referências que reforçam esta pesquisa:

"Do sedentarismo ao nomadismo: intervenções para se pensar e agir de outros modos na educação" by Alexandre Filordi de Carvalho

"“Não sei estudar parada: inclusão escolar e nomadismo" by Betina Hillesheim

"Nomadismo, Currículos e Cotidianos Escolares: Ou Sobre Uma Política Nômade Para O Corpo" by Carlos Eduardo Ferraço

"[E]etnomatemáticaS: uma discussão acerca do nomadismo" by ERIC MACHADO PAULUCCI

“NOMADISMO E EDUCAÇÃO”by Dhemersson Warly Santos Costa and Maria dos Remédios de Brito

“NOMADISMO E SUBVERSÕES EM EDUCAÇÃO” by Claudia Horn Fabiane Olegário

“POR QUE AINDA É IMPORTANTE PENSAR COMO UM NÔMADE EM NOSSO TEMPO?” by Hélio Rebello Cardoso Júnior

“DOCÊNCIAS-NÔMADE NA EDUCAÇÃO: O QUE NOS FORÇA A PENSAR? NOMADIC-TEACHING AND EDUCATION: WHAT FORCES OUR THINKING?” by Letícia Regina Silva Souza, Ana Carolina Justiniano and Tamili Mardegan da Silva

El bosquecito de Hernández: ensayo antropojurídico sobre la memoria y el territorio

 Henao Tapasco, Julián Eduardo

video María Paula Etcheverry, Sofía Bustos, Virginia Cappelli y Tomás Grilli



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Descubra Sobre Possíveis mundos Pós-Capitalistas

(

1 de out. de 2023

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ESTABILIDADE NOMADE

Rocío Urbano

A próxima pergunta geralmente é: Por quê? Por que essas vidas escolhem ser nômades? O que as leva a percorrer as geografias e os anos dessa maneira? Por que elas continuam se movendo, indo ou voltando, sem data de término, sem certeza de qual será pela última vez, a chegada? Essas preocupações clamam pelo temporal, pelo projetado, pelo conquistado, pelos tempos dos processos, vendo o concretizado como um antes e um depois que aproxima o ser da estabilidade econômica/moral/geográfica que define e justifica seu lugar no mundo, sua finalidade funcional num sistema de servidão circular, porém, seu fim.

Para uma pessoa sedentária, a palavra “nômade” é um antagonista da “estabilidade”. O conceito de estabilidade oscila entre o propósito individual ideal (econômico/moral/geográfico) e o imposto estabelecido como o ápice da realização pessoal, sempre ligado à permanência de tudo em seu lugar. 

Os povos nômades chegaram a outros conceitos de estabilidade. Aqueles que cruzam fronteiras internacionais repetidas vezes, bem como aqueles que saem de casa e pulam entre distritos dentro das linhas do mapa de seu país, fazem desse movimento parte de sua estabilidade. Possivelmente, sua economia está diretamente ligada ao como e ao porquê desse domicílio “instável”, e a estabilidade foi, em sua melhor forma, genuinamente dada no afã de mudar seu lar para outra casa. Os vínculos materiais e a dependência intrafamiliar da maioria são um fato, e é tão circular esse contexto que apaga a história daqueles que começam sem um lar, daqueles que escapam do genocídio governamental, daqueles que se cansam de suportar a violência intrafamiliar, daqueles que se recusam a atender às expectativas do ambiente e decidem ousar sair de sua zona de conforto, tornar-se independentes e abandonar o estável. Considerando que esse ato nômade leva o ser a se afastar dos vínculos formados nas primeiras etapas da vida, das casas, dos empregos fixos, da freguesia trabalhada, dos palcos conquistados, das pessoas em quem se sabe que pode confiar, ainda assim opta por acreditar que tem mais coisas o aguardando, mais precisa chegar até lá. 

Há aqueles que viajam por negócios, funcionários, parceiros, partidas limitadas para fins pré-determinados. Independentemente do status econômico, político e social da pessoa, essa viagem sempre significará um esforço que será recompensado com o retorno à estabilidade de um estilo de vida sedentário.

Para uma pessoa nômade, essa viagem é uma constante diária que nutre experiências policulturais e renova ferramentas que são gerenciadas com eficiência, dando frutos férteis que são aproveitados como um motor que impulsiona com mais energia cada conquista que cria e mantém essa estabilidade nômade como algo palpável. A fome, a falta de espaço e a fuga da repressão dos outros levaram o ser humano a vagar pelo mundo, aquele pedacinho de terra que ele conhecia como seu, estava e sempre estará no mesmo lugar. Nós nos submetemos à ideia de outras terras, exilando-nos de lugares “alheios” os quais achamos difícil de alcançar.  As vidas nômades carregam as marcas de suas raízes, mas sabem que não são definidas por elas. Na busca pelo autoconhecimento e pela autorrealização, a pessoa nômade ouve e mantém a voz que diz o que é possível além, e, como em um transe de fé, continua a cruzar distâncias sem pressa para chegar ao fim. Persegue seu sonho do ideal sem deixar margem para dúvidas de que a melhoria constante da qualidade de vida, a alimentação do conhecimento, a expansão dos projetos e a multiplicação dos laços de confiança estão abertos, retroalimentando as trocas do recém-chegado com a pessoa local que apoia e reconhece as realidades nômades. 

 Todas essas conquistas indeterminadas na partida, mas projetadas, sem datas ou territórios, são um fato para aqueles que são sustentados por essa estabilidade nômade. Há redes e pessoas de todos os cantos do mundo, em todos os países do mundo. O mundo é nosso. Nessa itinerância, os direitos humanos são priorizados, defendendo a autonomia em detrimento das normas. É assim que as vidas nômades ocupam as ruas, as casas, as escolas, as lutas, habitando espaços e vínculos que desconstroem e redefinem palavras cotidianas como lar, família, educação, trabalho, amor. O propósito ideal é inconscientemente alcançado todos os dias na autonomia como algo estável que nasce, vive e depende apenas da autodeterminação de cada indivíduo, independentemente de onde ele esteja, mas ao mesmo tempo sendo crucial o uso do espaço habitado no aqui e agora. As pessoas sedentárias primeiro questionam aos nômades de onde eles vêm e, depois, se estão tentando a sorte, se são turistas ou se estão apenas passeando. E não é assim, o nômade, sem ter datas e locais fixos, sabe muito bem para onde está indo e aproveita ansiosamente seu tempo ao máximo, de acordo com um plano traçado por suas próprias mãos e baseado em seu próprio conhecimento, em seus desejos e em suas conquistas. Não depende da sorte de conseguir uma boa localização ou um bom emprego, muito menos da sorte de ter nascido na melhor família ou país. 

A maioria das pessoas que encontram estabilidade nômade são mestres de suas economias e criadores de seu trabalho, escultores de suas realidades. Se essa pessoa for um educador ou o cabeça da família, também acrescentará à sua sustentabilidade a devoção à expansão do conhecimento para aqueles que o cercam em cada etapa de sua jornada, dentro de si mesma ou para sua equipe, será responsável pela crítica construtiva do que é aprendido em cada lugar, do que é mostrado e do que é entregue. Há aqueles que conseguem entender que também existe um: Para quem? 

Em primeiro lugar, todo nômade leva a vida por si mesmo, é a constatação de que é possível viver à sua maneira em um mundo que parece ser feito apenas para aqueles que atingem aquela estabilidade ideal estabelecida. Possivelmente, eles também o fazem por suas famílias, para poder oferecer uma melhor qualidade de vida, seja ajudando de diferentes países, ou partindo com toda a família e superando as expectativas violentas de vida que o sistema deixa para aqueles que estão à margem do que já está estabelecido. Há pessoas que, por causa da violência familiar, se distanciaram de suas origens para criar novas realidades em que o amor próprio pode ser mais do que suficiente, cuidando de trazer informações de e para outros indivíduos e até mesmo para outras famílias. Mais paralelamente ao reforço direto de sua própria realidade e das realidades daqueles que alcança, inconscientemente, o nômade persiste em seu modo de vida, especialmente para seu público, as pessoas locais, demonstrando que há estabilidade sem sedentarismo. 

Essa demanda de pessoas itinerantes que chegam às grandes cidades ocorre paralelamente em muitos países do mundo e, coincidentemente ou causalmente, muitas delas encontrarão a possibilidade de resolver sua estadia em espaços recuperados. Edifícios estatais e mansões nos centros históricos das grandes cidades colonizadas da América do Sul e das cidades europeias, protagonistas da revolução industrial, foram abandonados por instituições e proprietários ricos, deixando casas gigantescas para os marginalizados que, livres de qualquer propriedade, transformam esses espaços esquecidos em lares, gerando pequenas sociedades e comunidades com empatia pela falta de moradia e força para seguir em frente no caminho de uma vida estável.

Galpão de Tolosa

Em La Plata, Argentina, existem os Galpones de Tolosa, um local ferroviário de manutenção que funcionou até 1990.

Texto

Descrição gerada automaticamente

Flyer Los Galpones de Tolosa. Acervo: Rocio Urbano.

Placa de letreiro afixada em parede de tijolo

Descrição gerada automaticamente

Frente do centro cultural El galpon de Tolosa dentro de Los Galpones de Tolosa. Acervo Rocio Urbano

video María Paula Etcheverry, Sofía Bustos, Virginia Cappelli y Tomás Grilli

 

Em 2008, os galpões foram ocupados por vários estudantes de diferentes organizações políticas, sociais, culturais e universitárias que abriram o espaço com a ideia de criar um local digno para estudar, ensinar e dar qualquer tipo de apoio social que estivesse ao alcance. Assim, durante a sua revitalização, eles administraram de forma autônoma e horizontal eventos e ações diretas, como ateliês artísticos, salas de apoio escolar, uma horta e um almoço popular solidário. 

De portas abertas para as necessidades comuns dos vizinhos e daqueles que chegavam aos Galpones de Tolosa, uniram-se a lutas e frentes que deram um uso produtivo à propriedade esquecida pelo Estado. Como a A.D.D.H.E.S., uma organização de pessoas auto-organizadas em defesa dos direitos humanos dos portadores de aids, encontraram um lugar onde podiam se reunir para se organizar em sua luta pela vida diante das condições negligentes que o Estado e a sociedade os deixavam. 

Naquela época, em La Plata, não havia serviços de atendimento para portadores de HIV, não havia medicamentos disponíveis e a maioria desses portadores estava desempregada devido à discriminação contra sua condição. Eles tinham que viajar horas para Buenos Aires para receber tratamento e medicamentos. Ter um lugar para se reunir era fundamental e, por meio de eventos e reivindicações públicas, eles conseguiram que o tratamento e os medicamentos chegassem aos hospitais de La Plata, junto com uma pensão monetária, um cartão de alimentação e recursos com os quais modificaram a infraestrutura dos Galpones de Tolosa, criando uma fábrica têxtil com empregos para pacientes com aids. Hoje, três famílias ocupam e habitam parte do local, resolvendo assim seu direito à moradia digna. Cerca de cem cooperativas de trabalho periféricas utilizam os galpões para fabricação. 


Los Galpones de Tolosa Acervo Rocio Urbano

Vemos em comum o fato de que todas essas pessoas conseguiram encontrar o caminho para uma vida mais estável ao ousar sair de seu território familiar e confiar na voz que lhes dizia que outras soluções eram possíveis nesse lugar que costumava ser abandonado. A arte e a educação andam de mãos dadas com as lutas populares diante dos desequilíbrios gerados por essa estabilidade estabelecida e, juntas, abrem caminho, em meio a escombros e leis, para os direitos básicos que todo ser humano merece, como moradia, saúde, educação e trabalho. Uma ocupação, seja qual for a sua posição geográfica, está sempre pronta para se tornar o lar desses espíritos lutadores, que se recusam a se submeter à escassez. Ocupar é resistir, e a existência de ocupações é, em conjunto, um lar estável para os povos nômades. 

 

O político e o pessoal

Conheci os Galpones de Tolosa por meio do coletivo A.D.D.H.E.S., que ia em busca de alimentos que eram distribuídos aos portadores do HIV e suas famílias, e minha mãe era um membro autoconvocado, na época desempregada devido à discriminação contra sua condição. Lá conheci outros membros da família como eu que, apesar de não terem a doença, participavam das reuniões, marchavam nas manifestações e sofriam com a negligência médica e a falta de atendimento médico sempre que iam como companhia aos hospitais. Saímos de diferentes periferias da cidade para nos reunirmos em uma ocupação e enfrentarmos a negligência governamental e social que permitiu que uma capital de estado não tivesse acesso a cuidados, medicamentos ou empregos para pessoas que vivem com HIV. Em La Plata, todo dia 1º de dezembro a A.D.D.H.E.S. realiza um evento de conscientização com bandas de música locais em uma praça no centro histórico, distribuindo material informativo, contraceptivos e camisetas com serigrafia artesanal ao vivo. Foi dessa forma que entrei no mundo das artes e, de mãos dadas com um coletivo marginal que, com autogestão, estava fazendo política social. Emiliano Lombardo, membro do coletivo como músico ativista, incentivou o reforço dos eventos com apresentações musicais de classe, dando mais vida à sua luta pela vida, conseguindo, assim, em cada manifestação, capturar a atenção da cidade, primeiro com seu poder como artista, depois com o poder de todo o coletivo em seu nível de autogestão, e, finalmente, quando se trata da reivindicação das carências, deixar em evidência que a fragilidade não está nos pobres, mas sim na precária capacidade de atenção dos governos diante da diversidade de realidades existentes na população. Foram esses eventos que me inspiraram a fazer música usando a arte como um portal de comunicação intersocial, acompanhando aqueles que sofrem injustiças e questionando os privilegiados que os ignoram e suas lutas.

Ocupar com ações diretas espaços públicos e estatais, além de tornar visível o sucesso da autonomia em tudo o que um evento público precisa (gestão, recursos, difusão, atividades artísticas, logística, técnica, segurança, conteúdo social), por estar focado na luta pela solução de um bem comum para a sociedade contemporânea (trabalho, saúde, educação, inclusão social), deixa em seus executores experiências que fortalecem sua estabilidade emocional na glória da liberdade de expressão e gestão, mesmo em meio a uma realidade excludente. É nesses eventos que se reúnem coletivos e indivíduos que não são exatamente da mesma cidade, mas que encontram deficiências comuns e se unem pela luta, encontrando nela um lugar seguro e inclusivo que atende às suas demandas mesmo quando estão fora de sua jurisdição. Esse seria mais um exemplo em que o indivíduo afetado pelo declínio do capitalismo, aplicando uma ação nômade e autônoma, consegue se aproximar de seu ideal de vida estável a partir da prática, criando alternativas para evitar se submeter às esperas propostas pelo sedentarismo e falta de organização jurisdicional, evidenciando a estabilidade como algo que não depende da permanência fixa em um lugar e associando o sedentarismo à inanidade como fator que adoece a qualidade de vida de indivíduos e grupos familiares das classes mais baixas.

 

“O pessoal é político” — Carol Hanisch

Texto

Descrição gerada automaticamente

Flyer A.D.D.H.E.S Acervo Rocio Urbano

video de ADDHES Prensa

Centro por los Derechos Humanos Hermanos Zaragoza

A casa Zaragoza é um espaço de memória e ação situado no centro de La Plata, cidade universitária, capital de Buenos Aires, carregada de histórias de resistência estudantil durante a ditadura na Argentina. No ano de 1975, dois irmãos estudantes da Faculdade de Ciências Exatas (Chilo Zaragoza e Neto Zaragoza)  foram sequestrados e assassinados pelo estado por serem membros ativos do centro estudantil e porque falavam em assembleias demandando melhorias básicas para aprendizagem e acessibilidades dos estudantes. A mãe deles integrou-se ao movimento de “Mães da Praça de Maio” conformado por mães de todo o país que tinham sofrido a perda de seus filhos e netos nas mãos do governo nacional. Luisa Cecchini teve a vontade de fazer uma placa em memória dos irmãos Zaragoza num casarão onde seus filhos tinham trabalhado. O antigo dono, um médico, tinha doado a propriedade ao estado com a condição de que fosse usada para o bem da comunidade, mas a casa estava abandonada. Um coletivo de educação popular nas periferias da cidade fazia suporte do movimento das Mães e decidiu ocupar a casa para abri-la como ateliê e espaço de memória, denominando-o Centro de Direitos Humanos Irmãos Zaragoza. Até hoje, a casa acompanha e divulga juízos a genocidas militares, casos de violência de gênero, lutas LGBTQIAPN+, e leva à cidade as lutas indígenas contemporâneas em que o governo, através de movimentos legais, expropria terras dos povos originários para fins comerciais. Mais uma casa esquecida pelo estado, mais uma casa que lembra ao povo que a ação pelos direitos humanos é responsabilidade e direito de todos, sempre em companhia dos artistas nômades que, no seu passo pela casa a tem re-habitado, preenchido o silêncio com músicas, saraus, desenhado a memória em murais coloridos, e trabalhado com as mãos em oficinas de artes plásticas criando obras que falam mais que mil palabras. Participei de um evento solidário tocando baixo na minha primeira banda e expondo meu primeiro quadro.

Centro DDHH Hermanos Zaragoza Acervo Rocio Urbano

video “Tres okupaciones diferentes” da editora independente “VomitArte” sobre okupas da cidade de La Plata ao final do vídeo declamam “é mais que permitido copiar e difundir este vídeo: é preciso!”

El Bosquecito de Hernandez

A tradução do nome seria “A pequena floresta de Hernandez”  ocupada durante 8 anos. Um espaço verde que sobrevivia na periferia da cidade ante a mega construção de bairros privados para classe média e alta. Uma fábrica de materiais de construção abandonada junto a uma grande área verde. Ali um grupo de mulheres viu a oportunidade de escapar das reformas que o governo estava tentando impor na agronomia argentina, privatizando as sementes orgânicas e forçando os pequenos agricultores a aderirem aos monocultivos transgênicos e ao negócio dos agrotóxicos, tão daninhos para a saúde de quem se expõe a tais químicos como para a terra que começa a ficar estéril para as sementes naturais. 

Na “floresta”, quem tiver consciência sobre seu direito a uma boa alimentação e preservação da memória ambiental, chegava com sementes e vontade de meter as mãos na terra. tanto para expandir a horta comunitária como para aprender alternativas ancestrais para moradia levantando cômodos com bioconstrução. Como toda área que vira privada nas periferias, ainda tinha o contraste de pessoas de baixa renda com pouquíssimo acesso à arte e à cultura. Por causalidade da vida, essas agricultoras, essas construtoras eram também artistas! Para manutenção do espaço e instalação de água e eletricidade, foram feitos muitos eventos com bandas convidadas, apresentações artísticas e buffets veganos, doação de sementes orgânicas, conexões com etnias indígenas que eram constantemente atacadas pelo estado nos interiores do país, e rituais de espiritualidade feminina com ervas medicinais.

Placa com dizeres

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaGrupo de pessoas sentadas ao redor de uma árvore

Descrição gerada automaticamente

El Bosquecito de Hernandez Acervo Rocio Urbano

El Embarcadero

Em 1947 o filho do fundador do povoado Álvares, interior de Buenos Aires, começou a construir o que seria um hotel, pela sua localização do lado da rodovia que conecta com a capital do país. Embora fosse um bom projeto, foi abandonado no ano de 1950. Muito tempo depois, em 2015, assisti, voluntariamente, um encontro de artes circenses no local. Lá encontrei uma organização horizontal de artistas, a maioria nômades, que trabalhavam em conjunto com artistas, professores e agricultores locais. A demanda por moradia desses viajantes e a demanda de espaços de criação da comunidade local se encontrou na união ocupando o espaço com pessoas que queriam algo mais do que o fluxo da capital e acharam no embarcadero uma folha em branco para combinar imaginários. 

Assim, revitalizaram o espaço tanto para quem ficasse morando como para tê-lo pronto para as visitas que procurassem um espaço alternativo onde aprender, compartilhar e criar. Foi estabelecido um estatuto de normas de convivência, um dia semanal para assembleia geral, completaram as paredes que faltavam num canto da torre com bioconstrução e foi aí que se inaugurou um teatro aberto à livre expressão. 

No encontro que me fez conhecer essa ocupação artística, tomei oficinas de técnicas e numerologia do malabar com artistas jugglers que hoje são referências e trabalhadoras ativas na pesquisa do circo contemporâneo, participei de uma variété com bolas de sabão gigantes envolvendo uma pessoa do público, acompanhada de música ao vivo, da mão de uma orquestra palhaça composta por cinco pessoas que viajavam de Kombi, e comemorei o encerramento dos três dias de encontro com um cortejo até a praça principal que fechou a fanfarria plantando uma árvore de abacate com o sonho de o município não interferir e no futuro comer da terra que um dia foi trabalhada por artistas, comer a memória. Nele se mantinha um bom convívio com os vizinhos através da horta comunitária, o bicicletário popular, o ponto de reciclagem e a produção de ecotijolos.

El Embarcadero Acervo Rocio Urbano

https://desalambrar.com.ar/el-embarcadero-a-este-espacio-no-hay-que-recuperarlo-porque-esta-vivo-y-es-libre/ video entrevista do site journal Desalambrar

El Crematório

Também conhecido como Espacio Pluricultural Hijes del pueblo pintado a mão no vitral do lado da entrada principal, junto com uma Wippala evidenciando que “O Crematório” era mais que uma fábrica ocupada com a cultura local. A palavra pluricultural, confirmando a resistência de outras culturas nesse canto de Hurlingham, localidade periférica de Buenos Aires — sabida como um dos tantos esconderijos de famílias nazis que fugiram para Argentina ao final da segunda guerra mundial, onde é possível identificar símbolos da SS gravados nos portões de ferro de alguns dos grandes casarões da época que ainda existem nos centros das cidades ferroviárias. Nesse contexto, dar uma identidade cultural híbrida ao espaço era uma forma de se posicionar contra ideologias violentas e fascistas, além de propagar o fato de os povos originários terem uma grande sabedoria ancestral sobre terra, céu, corpo e espírito, muito antes da chegada “alfabetizadora”,, ou melhor dito, doutrinal dos europeus colonizadores, embranquecedora das culturas.

 Foi uma família andina que morava do lado da fábrica que decidiu abrir o espaço como um ponto de leilões, seguido de eventos com bandas do bairro, skate point, e aulas de quíchua e aimará, línguas andinas que até hoje resistem entre camponeses e centros urbanos da Bolívia e do Peru. Nessa época, o espaço se mantinha fechado e abria somente para essas atividades esporádicas. Numa praça perto do local resistia um encontro semanal de treinamento de circo e malabares, e, numa tarde de chuva, os artistas imaginaram fazer o encontro dentro do “crematório”, que, apesar de ter algumas atividades, ainda tinha muito a fazer no porão ao final do local que era o mais indicado para o encontro, devido ao seu teto alto e amplitude. Essa foi a primeira troca, reformar e limpar como contrapartida do uso do espaço. A família aceitou o trato, e o que era um encontro semanal, com a chegada de artistas nômades de outros países, transformou-se em um centro cultural e moradia artística. Os artistas nômades traziam novas propostas em troca da moradia itinerante, começaram as oficinas de acrobacia, treino físico, aéreos, equilíbrios, música e malabarismos. De segunda a segunda, o espaço abria às 10:00, com novos murais nas paredes, ludoteca para as crianças, almoços coletivos e uma “gratifeira” na porta, que consistia em doar roupas e calçados para quem precisasse. As decisões eram por consenso de maneira horizontal, todas as quartas-feiras, numa assembleia aberta a propostas para o espaço. Iniciamos uma parceria com um refeitório solidário de rua que dava chá e lanches para 40 crianças de entre 2 e 12 anos, abrimos o espaço para eles fazendo ciclos de cinema infantil com debate no final, estimulando o pensamento crítico e a boa comunicação. Eram crianças muito difíceis, vinham de realidades muito violentas, sujos, magros, agressivos e tristes, sempre tinha brigas e choros, o que nos fez enxergar as dificuldades que atravessavam sua infância e a nos questionar, o lanche e o filme eram realmente suficientes? 

Marcamos uma nova atividade: íamos a brincar de super-heróis, nos inspirando a imaginar superversões de nós mesmos; nos sentávamos em roda com as crianças identificando o que é um super-heroi e inventando os poderes que teríamos; e encerramos a atividade customizando 40 capas para nossos novos personagens — naquele dia não teve brigas nem choros, ninguém se lembrou da violência, os mais agressivos esqueceram da hostilidade e compartilhavam e ajudavam com as tesouras aos mais pequenos. Os pais dessas crianças eram indiferentes a nós, nunca se aproximaram nem para acompanhar as crianças, nem para trazê-las nem para levá-las para casa; nós tínhamos um sistema de ir a buscá-las com uma corda de 10 metros, porta a porta de cada barracão, e as transportávamos pelas ruas em fila com a condição de irem se segurando na corda. 

Nesse espaço aprendi que a ação social de alimentar e lidar somente com conversas os desabafos das classes baixas não era suficiente. É preciso preencher os vácuos, além da fome e da falta de espaço, a transmissão da cultura não é só entretenimento, por isso assistir um filme não era suficiente, a ludoteca e o tempo livre não eram suficientes para a criança esquecer ou entender como lidar com a violência de casa e da sociedade. Mas atividades que desafiassem o pensamento cognitivo e os fizessem por as mãos à obra estimulando a imaginação, uma atividade artística participativa do início ao fim foi o que ultrapassou a expectativa da capacidade dessas crianças e de nós mesmos, artistas nômades sem formação pedagógica, para saber como ensinar ou lidar com a psique infantil. 

Na verdade, a ideia da atividade chegou por parte de mães e pais que integravam a organização na hora que os artistas sem filhos começaram a desistir de participar das atividades por ser tão delicada a situação dessas crianças revoltadas pela hostilidade das suas realidades. Os materiais da atividade saíram do caixa da casa, no qual colocávamos o dinheiro arrecadado das vendas e rifas dos nossos eventos, cujas tarefas eram rotativas, com horários organizados, mas sem fins lucrativos individuais. Ninguém ganhou dinheiro nem reconhecimentos por todo o trabalho feito na ocupação do crematório, mas sim experiência, afinal, ocupar artisticamente é resistir a um sistema que dita que tudo tem um preço, ou ainda, que o que se dá de graça costuma ser as sobras. Tínhamos outro caixa para comidas coletivas, comprando nas cerealistas todo tipo de produtos orgânicos para uma alimentação saudável — embora a maioria não se restringisse de produtos animais, fazíamos somente comidas veganas e vegetarianas trazendo à casa, ao corpo e à mesa o aporte de não contribuir para a indústria das carnes, tendo consciência dos pontos negativos e cruéis para os animais, para o meio ambiente e para nós mesmos. Nós, hijes do povo, tendo entre nós pessoas trans não binárias impondo uma ideologia que, a partir da dis-generalidade, se contrapõe ao sistema patriarcal que se reforça não no masculino, mas sim na figura autoritária do homem, o senhor, o dono. Os ocupantes artísticos têm um accionar incompreensível pelo capital, tornaram-se material de pesquisa. 

Fecharam o crematório na pandemia, as crianças voltaram a preencher as ruas, a vizinhança local e a rotina nas casas, e os artistas nômades continuam nas estradas. Uma outra ocupação, que misturava toques punk, moradia e economias criativas para mulheres ex-presidiárias com uma escola de panificação e aulas de kickboxing, e foi despejada, traz a ação direita de um casal anarquista, ocupantes do “Aquelarre”, que botou uma bomba caseira no túmulo do Ramon Falcon, chefe da Polícia Federal na época de La Liga Patriotica, grupo nacionalista de extrema direita  que torturarava trabalhadores indígenas e imigrantes em 1909. A bomba explodiu nas mãos da anarquista, que foi encarcerada sem atenção médica.  A falta de informação criadora nas zonas vulnerabilizadas é perigosa, permitindo que a dor responda à violência com mais violência.

 

Texto

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo no interior, quarto, vivendo, bicicleta

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo no interior, mesa, vidro, quarto

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo pessoa, estrada, criança, jovem

Descrição gerada automaticamente

Fonte Acervo El Crematorio, Jose Lash Colega da okupação

video Jose Lash

La Toma

Em Lomas de Zamora, sul de Buenos Aires, tem uma ocupação artística do lado do trem de Lomas chamada La Toma, que conheci através de um festival de cinema anarquista nômade que, naquela edição, combinava uma série de documentários brasileiros sobre okupas queers e anarquistas, de São Paulo e outros estados, com uma feira de livros anarquistas composta por várias editoras independentes. Havia uma rifa que, com minha filha, ganhamos um livro infantil sobre mulheres anarquistas na Argentina, da editorial Sudestada, sobre Virginia Bolten e Juana Rouco Buela, mulheres que alçaram a voz pelo direito das trabalhadoras que em 1907 sofriam ainda mais do que os homens pelas condições laborais e pelos salários mais baixos. 

La Minga

Saindo de La Toma um dia fui convidada a conhecer e me apresentar numa outra ocupação artística que estava tomando forma num bairro de Alejandro Korn, interior de Buenos Aires. O evento era uma variété de circo com bandas ao vivo, venda de cerveja artesanal, feita por um colega da ocupação, e comidas veganas, ao benefício de um refeitório solidário para as crianças carenciadas que moravam nessas terras ocupadas por casas precárias onde famílias de cinco pessoas habitavam um barracão de quatro muros de madeira e chapa, um lar dentro de um espaço de 25 m².

Apesar dos diversos compromissos que tinha nesse dia, consegui atravessar a cidade e apresentei meu número de palhaça para essas crianças que, por sua vez, nessa mesma noite, fizeram uma amostra das destrezas circenses ensinadas pelos ocupantes anarquistas. Minha visita evidenciou nossa afinidade de ideias, enquanto compartilhamos comidas, músicas e conversas. Depois de algumas visitas fui convidada a morar lá. La Minga era feita de barro e material reciclado na estrutura dos muros, eram como galerias de arte trash eco industrial. Um espaço comunitário com biblioteca e mesas para desenhar e cozinhar, e quartos com formas oblíquas diferentes de todas as paredes de quadros lineares perfeitos que tenho habitado em toda a minha vida. O quintal era imenso e tinha uma horta que fazia as nossas saladas ainda mais especiais. A cozinha era do lado de fora, com fogão a lenha. O banheiro era seco, com um sistema que apoiava o desuso dos esgotos evitando ser parte das inumeráveis águas negras. 

O quintal contava com uma estrutura de trapézio feita a mão por um artista nômade do Chile que chegou com conhecimentos de infraestrutura de circo, acrobacia, malabares e luthieria. As primeiras ocupantes da casa eram mães, artistas nômades, palhaças e artesãs. Seu instinto maternal mantém aberto o espaço para todes, defendendo que as crianças ficassem o dia todo no espaço se quisessem, lidando com a violência reproduzida às vezes pelas crianças. Me despedi como a uma guerreira tocando tambores e soprando trutrucas, instrumento ancestral mapuche, decretando em cantos que voltaria.

Uma imagem contendo jovem, mesa, coberto, homem

Descrição gerada automaticamenteHomem com criança na calçada

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaUma imagem contendo Texto

Descrição gerada automaticamente

Fonte Acervo público La Minga

Homem em pé na frente de um prédio

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaPlaca vermelha com letras brancas

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte Acervo público La Minga

La Redonda

No “Crematório” consegui fazer conexões intercontinentais. Uma delas foi com uma família que chegou propondo oficinas de fitoterapia e doação de mudas de plantas comestíveis, com mutirões na terra, aprendendo sobre cultivo e ciclos solares. A proposta foi feita pela mãe da criança, como contrapartida pelo pedido de apoio em prestar moradia para o pai da criança que vinha de Madrid para cuidar do filho por alguns meses. 

Um ano mais tarde tive que fazer uma viagem a Espanha aceitando a proposta da minha família paterna de me oferecer uma moradia digna depois de ter se ausentado da minha vida desde os meus dois anos de idade. Vinte anos de ausência me fizeram duvidar da qualidade de vida que podia ter ali, longe dos imaginários românticos dos encontros intrafamiliares, uma vida sem liberdade. Assim me passaram o contato de uma ocupação que já tinha 20 anos perto do centro de Granada, cidade onde seria recebida por minha “família” de sangue. Globalizada na cena contracultural da Espanha rebelde, anárquica, organizada e ativista, preparei um acervo de todo o material anarquista que tinha na biblioteca pessoal, juntando fanzines e o livro infantil de história anarquista. O único que tinha era o nome: “A redonda”, pesquisei e encontrei no mapa junto com um site contendo todas as informações atualizadas das atividades, xeroquei o acervo e assisti ao treino livre de trapézio esperando a pessoa responsável pelo espaço. 

Carmen chegou junto com a noite e ao ver as frases dos parches na minha roupa perguntou se eram do Chile, demonstrando estar informada sobre a forte contracultura anarquista da juventude chilena. Dei risada porque tinha passado pelo Chile e a maioria dos meus parches vinham de lá. A senhora era uma anarquista que tinha visto todas as transições do espaço, fazendo parte de bandas de mulheres punks, baterista antissindicalista, filha do nomadismo; seu pai, um cubano que a liberou de frequentar a escola na época da ditadura fascista de Franco, lá pelos anos 1970. Expliquei minha situação, uma artista autônoma, mãe nômade que vinha à casa da família que não conhecia, mas que nesses poucos dias se revelaram com confiança nas suas falas e pensamentos de extrema direita racistas e machistas. Carmen, sem me conhecer, me brindou a certeza de que podia contar com ela para o que precisasse, incluindo moradia e assistência jurídica. Passou uma semana e fui violentada verbal e fisicamente pelo meu “pai”. A família falou que eu tinha que aceitar por ele ser meu pai... Uma família conservadora violentando uma vida abandonada por décadas, impondo que a estabilidade lhe brindaria, sujeita à submissão dos ideais se privando de parâmetros de respeito pessoal. 

La Redonda me recebeu na biblioteca durante 20 dias até meu voo de regresso. Nesses dia conheci de perto o espaço e participei do evento de encerramento do ano, cantando minhas músicas e gravando uma entrevista para uma rádio local, num programa apresentado por um locutor chileno com o qual, numa conversa, achamos afinidade por termos habitado outra ocupação no interior de Valparaíso, no Chile. Na Redonda funcionava um teatro, um ateliê de xilogravura, uma horta, um bicicletário, oficinas de aéreos, incluindo tecidos e trapézios fixos para treinos livres, uma cozinha que abria um buffet vegano para abastecimento do caixa da casa, a biblioteca e o quarto de marcenaria. O foco do evento de final de ano foi uma grande feira de autoprodução com camisetas serigrafadas, artes gráficas e edições independentes e traduções. No quarto de marcenaria, Carmen estava ajudando um colega senegalês a fazer sua resistência burocrática no país, que depois de sobreviver 3 anos de residência como imigrante irregular podia começar a tramitar documentos legais. O espaço foi despejado na pandemia. 

Calendário

Descrição gerada automaticamente

Fonte Acervo público La Redonda

El 22

El 22 foi a ocupação artística que me recebeu no primeiro dia, assim que cheguei em Santiago, em troca de uns dias de trabalho voluntário na construção coletiva de um segundo piso de madeira, feito a mão, com ferramentas profissionais que a organização tinha comprado com o caixa dos eventos artísticos, pelas vendas independentes, um esquema idêntico de organização entre os autônomos do mundo, uma globalização dada além dos meios de comunicação, uma globalização contracultural dada pelo nomadismo artístico. Casa nômade com pessoas de sete países naquela ocasião. No último dia desfrutamos das apresentações e compreendemos através da cena musical local os ideais que se contrapõem desde a boemia chilena até o poder da repressão que perdura nas figuras de poder desde as suas ditaduras. El 22 foi despejado na pandemia.

La Cazuela

 A poucas ruas do El 22, tinha o casarão da okupa La Cazuela, também sobre a  Av. Vicuña Mackenna, de frente ao metrô Los Quillayes. Impondo presença artística com a sua estrutura de aéreos com trapézio, lira e tecido que cabia certinho no quintal da frente da casa, se destacando na avenida cinza pelo frio da cordilheira. 

El 23

El 23, menor que as outras okupas artísticas, fazia uma resistência de comida vegana e orgânica convidando aos artistas itinerantes que estavam de passagem e que resolviam cozinhar sem carne, conforme os parâmetros da proposta da casa, alimentando assim muito mais que o vácuo da fome.

Casa TIAO

 Nessa okupa fui recebida pelo consentimento de um colega músico de circo, também nômade, ocupante da El 22, de Santiago, e da Casa TIAO, de Valparaiso. Durante as noites habitamos o quarto do tatame, feito a mão, com lonas e pregos para treinos e alongamentos. Nossa contrapartida foi revitalizar o espaço do quarto, assim como outros setores de uso comum desse primeiro andar. Nas tardes havia oficinas de globoflexia, aéreos, sanfona, eletrônica, tendo à disposição também aulas de música, salão de tatuagem, cozinhas coletivas, e o uso constante de um ateliê de bonecos gigantes para teatro de rua. Valparaíso, cidade portuária e boêmia, durante as noites desatava nessa ocupação a liberdade de uma cena da arte under caótica e visceral, com toques de música punk, hardcore, grindcore, post punk e noise, e freak shows com exposição de tatuagens, modificações corporais, pirofagias, fakirismos e suspensões corporais performáticas, juntamente com performances queer e soft BDSM. Era a libertação dos dogmas da geração que nasceu da ditadura militar e todo um sistema opressor do prazer da natureza humana e o seu livre arbítrio. A casa foi despejada em 2024.

Casa 4:20

Solía ser um colégio de padres católicos na época da ditadura, nos salões de aula tinha pequenas janelas para espiar o comportamento dos alunos. Foi ressignificado com uma ocupação artística que misturava culturas com oficinas de dança afro e capoeira, e brindava residência artística a músicos nômades com instrumentos de orquestra. Também era regido por uma assembleia horizontal e comidas veganas coletivas.

Traziano

 Essa ocupação artística situada no interior de Valparaíso se destacava por ter sido feita do zero num terreno adaptado ao treinamento de parkour, com casas de madeira, bioconstrução, banheiro seco coletivo e cozinha a lenha comunitária. O espaço era frequentado desde cedo por esportistas selvagens que voavam pulando entre as árvores, ultrapassando os limites dos corpos sedentários. Estava aberto a residências artísticas itinerantes e músicos que trabalhavam a madeira das mesmas árvores do terreno fazendo djembes e didjeridoos artesanais, combatendo a partir do mato a contaminação acústica das cidades com batidas e frequências ancestrais.

Desenho de uma árvore

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte Rocio do Coletivo Parkour AFC.

Aldeia Maracanã

 Atualmente, ao lado do estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, a Aldeia Maracanã mantém uma resistência de território indígena de mais de 500 anos. Ocupando o espaço com a cultura tupi-guarani e guajajara, aberto com o objetivo de fazer uma faculdade indígena regida por suas próprias lideranças e sabedorias ancestrais, mantém sua estética com pinturas naturais feitas com jenipapo marcando na pele símbolos de proteção e força nos contextos que estiverem atravessando. 

A Tropa de Choque invade o prédio ocupado, SEM MANDATO, expulsa parte dos ocupantes e mantêm três lideranças indígenas em situação de detenção coercitiva, vigiados por dezenas de militares. Às 6h da manhã do dia seguinte, a PM, novamente SEM MANDATO JUDICIAL, invade o território ocupado pelos indígenas e o interior do prédio, e retira seus ocupantes à força, arrastados pelas escadarias em ruínas, com uso de gás de pimenta, imobilizados, sob socos e pontapés e golpes de cassetetes, alguns são detidos, de forma exemplar... 

Tudo conforme o script da truculência e do poder ditatorial... mas eles não contavam com a coragem e resistência de um último indígena que atraiu pra si todo o aparato do Estado e da mídia fascista da época... O nome dessa pedra no sapato do Status Quo? URUTAU GUAJAJARA... Aldeia Rexiste!!

CESAC

O Centro de Etno-conhecimento Socioambiental Caiuré (CESAC), uma extensão da resistência da Aldeia Maracanã situada na periferia do Rio de Janeiro, em frente ao metrô Tomás Coelho, na rua Maracá, aos pés do morro Juramentinho, na beira do limite entre o bairro e o crime organizado. Alvo de balas perdidas dos tiroteios entre as facções em guerra e os policiais. Uma área de extrema violência, com uma grande população de crianças sem acesso a arte e cultura. Em 2014 criou-se uma parceria com uma artista do sul do brasil enxergando o potencial do espaço como galpão de circo devido aos seus altíssimos tetos. Se fez um acordo de dar moradia a artistas itinerantes em troca de manter as atividades culturais e a manutenção do espaço. Morei durante três meses nesse espaço, aportando com oficinas de bambolês para todos os corpos e apresentações artísticas dentro da comunidade como ação social para as famílias do bairro. No espaço funciona uma escola de kickboxing fomentando a saúde física e a disciplina como terapia de escape perante a hostilidade do entorno e da sociedade. 

Ouvidor 63

A experiência na maior ocupação da América Latina se destaca das outras por questões além das estatísticas, uma verdadeira Torre de Babel, a peripécia censurada de Dante Alighieri, a resistência do quilombo, a alfabetização dos ciganos, o reparo das doutrinas, uma quarentena artística, centos de artistas procurando a cura, para continuarmos resistindo eternizados em obras e na memória de quem compreendia e sentia, mas não sabia como expressar seu amor, como expressar sua raiva.

Entrei na Ouvidor 63 por Amor, minha filha, que estava se hospedando junto com o seu pai e me convidaram para comemorar seu aniversário no prédio junto com as outras crianças da ocupação. Nessa visita passei por todos os andares conhecendo os coletivos e de imediato comecei a fazer amizade com artistas membros do 6/12 Circus, me somando a apresentar no projeto de circo social, que leva cultura a comunidades periféricas, fazendo intervenções artísticas com circo, música, brincadeiras, balões e maquiagem artística para as crianças, todas atividades que, como multiartista de rua, faço com muita dedicação. Notando minha disponibilidade com o circo social, uma colega me ofereceu moradia artística no décimo segundo andar, para formar parte da frente que mantém ativo o teatro da ocupação. O teatro era denominado de La Mimo, em homenagem a uma artista de rua assassinada pela força militar chilena. A globalização da luta foi evidente desde o começo. Cada dia compartilhava tarefas e ideais com pessoas de toda a América Latina, o intercâmbio cultural foi irreversível, desde o ouvido até o paladar, o convívio além da moradia em cada andar, pois o prédio leva uma interconexão entre andares, coletivos, identidades e linguagens artísticas, conexões que as pessoas vão gerando por afinidade misturando referências artísticas, pensamento político e a ação social de compartilhar essa experiência imersiva que é entrar no Centro Cultural Ocupacional Ouvidor 63.

O décimo segundo andar mantém um estatuto que passa uma ideia firme propondo um espaço reservado para dissidências e mulheres artistas itinerantes ativas no coletivo de circo dispostas a manter o espaço aberto com atividades e a cozinha livre de carnes, promovendo o antiespecismo e a criatividade nas comidas feitas para as cafeterias do andar, do circo e de eventos gerais do prédio, produtos livres de sofrimento animal. Pensando no que mais eu tinha para oferecer no décimo segundo andar, fiz oficinas de criação de contos para crianças e uma performance da minha pesquisa em projeções analógicas com água, acrílicos, luzes e sombras. No teatro descobri meu interesse na parte técnica, trabalhando na iluminação de outras artistas usando os conhecimentos que uma colega do coletivo havia me passado. Logo foi a divulgação dos eventos, criação de conteúdo para as plataformas digitais, flyers, textos. Ser parte da organização do 4 FICAR — Festival Internacional de Circo e Artes de Rua — abriu mais caminhos explorando a serigrafia artesanal na produção de camisetas do festival. Ocupei o palco da Noite de Minas com “Romântika” meu número que aborda o amor nômade, as ilusões, o compromiso, os vínculos, o amor incondicional e o amor próprio no meio da bufoneria e utilizando a destreza como metáfora abstrata das coisas incríveis que se fazem por amor até de olhos fechados.

Na okupa tinha também amigos que conhecia de outras partes de nossa viagem. Foi um amigo modificador corporal e artista performático que me convidou a participar de uma performance neon-freak no teatro, o encerramento da “Galeria Marginalia”. O roteiro da dramatização ficou nas nossas mãos, artistas itinerantes migrantes convidados ao encerramento marginal da destruição de uma galeria neon, e o elenco composto por pessoas do Equador, do Peru, da Colômbia, da Argentina, da Suíça e do Norte do Brasil. A ideia era uma comunidade pós-apocalíptica se impondo sobre uma minoria do imaginário neon, representando os seres puros quase fantásticos nos tempos da modernidade. Escolhi representar uma mulher do Oriente Médio, sendo sequestrada e submetida, mas no final libertada. Os cenários imaginários fantásticos nos dão a oportunidade de visibilizar problemáticas reais enriquecendo as obras com o pensamento político, mas nos mantendo à margem de qualquer bandeira partidária. 

As roupas da garota sequestrada me fizeram ir parar num desfile de moda sustentável pós-apocalíptica, denominado “Periespiritu”, um projeto que veste a ideia de um mundo que já está destruído, brincando com customização de velhas prendas e acessórios que dão identidade a cada obra trazendo conceitos cyborg futuristas e sustentáveis. 

A ideia de profissionalização empírica foi por completo e palpável, com a experiência de trabalho multiartístico no Festival Imaginação 23 (Unifesp/SESC Carmo). A okupa já tinha em diálogo uma proposta há alguns anos e finalmente, depois da pandemia, conseguia fechar a parceria, com um último chamamento para consolidação da proposta final. Essas semanas de reuniões entre as frentes artísticas da okupa foram enriquecedoras em nível burocrático e gerencial, já que tinha que se passar por vários acordos de organização e compromissos coletivos para construir uma proposta escrita que tivesse coerência gerando harmonia entre as atividades e relevância pública. Decidiu-se por fazer o experimento social de dividir o total da verba de maneira equitativa entre a quantidade de pessoas envolvidas, passando por alto a quantidade de tarefas que caberia a cada um. Fiquei perto das pessoas que ficaram responsáveis pela escrita geral, dos documentos e das fichas orçamentárias. Escrevi a apresentação e a proposta do desfile Periespiritu, cuidando de dar a representatividade que o coletivo estava buscando interiorizar em palavras. Logo participei do show de circo criando um número em conjunto com outra palhaça. Participei do dia de Sarau tocando meus sons autorais em companhia de outro músico que conecto em minhas músicas e reversionamos algumas. Desfilei uma nova obra com o Periespiritu. Entrei pela primeira vez no coletivo do “Motor Humano” acompanhando monster bikes artesanais com meu monociclo e uma performance tocando violão e cantando em equilíbrio. Ser remunerada de maneira legal pela minha arte e o meu trabalho de produção era antes um pensamento difícil de concretizar. Fazer parte do Festival Imaginação 23 me fez perceber a importância de se envolver em projetos que valem políticas públicas, tanto para meu crescimento como artista como para fazer apresentações de qualidade através dos recursos disponibilizados pelas áreas de cultura dos governos e de outras organizações e empresas privadas que respaldam leis que amparam a descentralização da cultura. 

Voltando às atividades do 6/12 Circus, pedi licença ao coletivo para fazer uma exposição de fotos da história do teatro, acreditando que era necessário ter uma explicação mais crua de como foi feito o teatro, de quantas mãos passaram pelo 6/12 e quanta diversidade de artistas ocupam o palco do teatro La Mimo. Com o apoio de fotógrafos da ocupação fiz uma curadoria de 8 anos de material fotográfico, fazendo uma seleção que evidencia etapas da infraestrutura, parcerias com outro coletivos, diversidade de corpos, identidades, linguagens artísticas e finalizando com um texto curatorial resultado de toda a minha pesquisa para uma boa representatividade da exposição. A montagem foi feita em colaboração com a “Galeria Marginalia” na visão de simetria e enquadramento das obras. A ideia de fazer uma exposição fotográfica era uma forma de apoiar a causa judicial da ocupação em seu processo de resistência a uma reintegração de posse. A primeira defesa que a gente tem para não sair de casa são as melhorias feitas no imóvel antes abandonado. Montar uma exposição da história do teatro foi meu aporte artístico para uma possível estratégia legal, um escudo histórico, uma burocracia poética e segura, além de uma motivação para próximos artistas itinerantes que chegassem a se questionar por que estão dedicando tanto tempo e energia a esse coletivo, esse teatro, essa ocupação. É curioso como tem tanta gente que sabe que a Ouvidor 63 é a maior Okupa Artística de toda a América Latina, mas dentro da Ouvidor tem muitas pessoas que desconhecem a existência de outras okupas artísticas, porém, desconhecem seus sistemas, o que leva a uma exotização e a questionamentos das formas e normativas do prédio. Tomar consciência da exotização do movimento okupa artístico me inspirou a escrever este relatório que menciona 18 okupas que, paralelamente, têm funcionado como semelhantes, além dos contextos sociais e políticos de cada país, cada cidade. 

O centro de São Paulo é um imenso e sofisticado polo cultural, onde se obtém os conceitos do underground e os devolve polidos e prontos para a venda comercial de arte contemporânea. E, assim, como se explica que a arte vandal seja punida social e legalmente, mas que a fotografia de um grafite seja exposta numa sala de museu, e sem reconhecimento do artista, mas sim do fotógrafo pesquisador de arte contemporânea? Acho indispensável ocupar nossos espaços de fala e contar nossas próprias histórias. 

Nessa afinidade em misturar arte e realidade com pensamentos político-poéticos, fui convidada a formar parte das Varieté Sem Memória, uma proposta do coletivo “Lab 4º andar”, que estava indagando sobre incluir conteúdo histórico em espectáculos de circo-performance. A ideia era contar a história, sempre tão trágica, de mortes injustas e ao mesmo tempo cheia de vida e esperança. Experimentamos novamente elencos multiculturais contando as histórias das ditaduras, a criminalização da arte, o genocídio, os manicômios, os despejos, trazendo a memória com experiências imersivas de arte de alto impacto, dramatizações de diferentes arquétipos de terapia de choque e a força do ser humano em vencer isso tudo e no final ser livre, estando juntos. Os recursos visuais que compõem as cenografias das Sem Memória juntamente com oficinas de videomapping me brindaram a autonomia para mais na frente ter minhas próprias composições visuais criando cenografias digitais para nossos projetos e reforçar tecnologicamente números de outras artistas. Ter tanto o que dizer me impulsionou a aprender a falar direito o português para conduzir palcos abertos na porta da ocupação nos tempos de tentativas de reintegração de posse. Viver em Ouvidor 63 me deu a oportunidade de chegar até aqui.

Flyer feito por Rocio Urbano para grupo de estudos presencial na Ouvidor 63 comparando 18 ocupações artísticas 

Este grupo de estudos nasce da necessidade de des-exotizar a existência de ocupações artísticas e decolonizar comparações eurocêntricas sobre o movimento okupa ligado às artes como ferramenta de impacto social, com a intenção de globalizar realidades contraculturais onde a autonomia artivista ocupacional surge como solução natural a distintos contextos de negligência governamental, desmitificando o conceito que hierarquiza em linha temporal uma estrutura violenta em que a Europa cria o movimento squat e a América Latina o reproduz.

Como atual ocupante do Centro Cultural Ocupacional Ouvidor 63, Rocio Urbano traz as memórias de outras 17 ocupações artísticas que abriram as portas para ela ao longo da sua caminhada como artista nômade na Argentina, no Chile, na Espanha e no Brasil, muitas delas já despejadas e algumas ainda em resistência ativa, mas todas igualmente importantes e reais. Nesses encontros mergulharemos nas semelhanças desses espaços de luta, que paralelamente e sem conexão têm nascido, se organizado e resistido aos ataques estaduais que privatizam o direito à cidade, à cultura e à moradia digna.

Indagaremos nos contextos geo-sociais que têm em comum a negligência governamental de cada país e a autonomia como resposta imediata a novas vidas dignas: estratégias legais, métodos de organização horizontais, artivismo como ação social local, multiplicidades e nomadismo lutando por moradias dignas. Evidenciando artistas e empreendedores autônomos indispensáveis nesses organismos vivos que são as ocupações culturais. Juntxs somos mais fortes. Ocupemos a História, 

nossas memórias=nossos espaços de fala .

A multiplicidade é a capacidade que a diferença tem de (se) multiplicar.

(Texto convocatório para abertura do grupo de estudos, por Rocío Urbano).

Referências que reforçam esta pesquisa:

"Do sedentarismo ao nomadismo: intervenções para se pensar e agir de outros modos na educação" by Alexandre Filordi de Carvalho

"“Não sei estudar parada: inclusão escolar e nomadismo" by Betina Hillesheim

"Nomadismo, Currículos e Cotidianos Escolares: Ou Sobre Uma Política Nômade Para O Corpo" by Carlos Eduardo Ferraço

"[E]etnomatemáticaS: uma discussão acerca do nomadismo" by ERIC MACHADO PAULUCCI

“NOMADISMO E EDUCAÇÃO”by Dhemersson Warly Santos Costa and Maria dos Remédios de Brito

“NOMADISMO E SUBVERSÕES EM EDUCAÇÃO” by Claudia Horn Fabiane Olegário

“POR QUE AINDA É IMPORTANTE PENSAR COMO UM NÔMADE EM NOSSO TEMPO?” by Hélio Rebello Cardoso Júnior

“DOCÊNCIAS-NÔMADE NA EDUCAÇÃO: O QUE NOS FORÇA A PENSAR? NOMADIC-TEACHING AND EDUCATION: WHAT FORCES OUR THINKING?” by Letícia Regina Silva Souza, Ana Carolina Justiniano and Tamili Mardegan da Silva

El bosquecito de Hernández: ensayo antropojurídico sobre la memoria y el territorio

 Henao Tapasco, Julián Eduardo

video María Paula Etcheverry, Sofía Bustos, Virginia Cappelli y Tomás Grilli



mais ensaios

Descubra Sobre Possíveis mundos Pós-Capitalistas

(

1 de out. de 2023

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ESTABILIDADE NOMADE

Rocío Urbano

A próxima pergunta geralmente é: Por quê? Por que essas vidas escolhem ser nômades? O que as leva a percorrer as geografias e os anos dessa maneira? Por que elas continuam se movendo, indo ou voltando, sem data de término, sem certeza de qual será pela última vez, a chegada? Essas preocupações clamam pelo temporal, pelo projetado, pelo conquistado, pelos tempos dos processos, vendo o concretizado como um antes e um depois que aproxima o ser da estabilidade econômica/moral/geográfica que define e justifica seu lugar no mundo, sua finalidade funcional num sistema de servidão circular, porém, seu fim.

Para uma pessoa sedentária, a palavra “nômade” é um antagonista da “estabilidade”. O conceito de estabilidade oscila entre o propósito individual ideal (econômico/moral/geográfico) e o imposto estabelecido como o ápice da realização pessoal, sempre ligado à permanência de tudo em seu lugar. 

Os povos nômades chegaram a outros conceitos de estabilidade. Aqueles que cruzam fronteiras internacionais repetidas vezes, bem como aqueles que saem de casa e pulam entre distritos dentro das linhas do mapa de seu país, fazem desse movimento parte de sua estabilidade. Possivelmente, sua economia está diretamente ligada ao como e ao porquê desse domicílio “instável”, e a estabilidade foi, em sua melhor forma, genuinamente dada no afã de mudar seu lar para outra casa. Os vínculos materiais e a dependência intrafamiliar da maioria são um fato, e é tão circular esse contexto que apaga a história daqueles que começam sem um lar, daqueles que escapam do genocídio governamental, daqueles que se cansam de suportar a violência intrafamiliar, daqueles que se recusam a atender às expectativas do ambiente e decidem ousar sair de sua zona de conforto, tornar-se independentes e abandonar o estável. Considerando que esse ato nômade leva o ser a se afastar dos vínculos formados nas primeiras etapas da vida, das casas, dos empregos fixos, da freguesia trabalhada, dos palcos conquistados, das pessoas em quem se sabe que pode confiar, ainda assim opta por acreditar que tem mais coisas o aguardando, mais precisa chegar até lá. 

Há aqueles que viajam por negócios, funcionários, parceiros, partidas limitadas para fins pré-determinados. Independentemente do status econômico, político e social da pessoa, essa viagem sempre significará um esforço que será recompensado com o retorno à estabilidade de um estilo de vida sedentário.

Para uma pessoa nômade, essa viagem é uma constante diária que nutre experiências policulturais e renova ferramentas que são gerenciadas com eficiência, dando frutos férteis que são aproveitados como um motor que impulsiona com mais energia cada conquista que cria e mantém essa estabilidade nômade como algo palpável. A fome, a falta de espaço e a fuga da repressão dos outros levaram o ser humano a vagar pelo mundo, aquele pedacinho de terra que ele conhecia como seu, estava e sempre estará no mesmo lugar. Nós nos submetemos à ideia de outras terras, exilando-nos de lugares “alheios” os quais achamos difícil de alcançar.  As vidas nômades carregam as marcas de suas raízes, mas sabem que não são definidas por elas. Na busca pelo autoconhecimento e pela autorrealização, a pessoa nômade ouve e mantém a voz que diz o que é possível além, e, como em um transe de fé, continua a cruzar distâncias sem pressa para chegar ao fim. Persegue seu sonho do ideal sem deixar margem para dúvidas de que a melhoria constante da qualidade de vida, a alimentação do conhecimento, a expansão dos projetos e a multiplicação dos laços de confiança estão abertos, retroalimentando as trocas do recém-chegado com a pessoa local que apoia e reconhece as realidades nômades. 

 Todas essas conquistas indeterminadas na partida, mas projetadas, sem datas ou territórios, são um fato para aqueles que são sustentados por essa estabilidade nômade. Há redes e pessoas de todos os cantos do mundo, em todos os países do mundo. O mundo é nosso. Nessa itinerância, os direitos humanos são priorizados, defendendo a autonomia em detrimento das normas. É assim que as vidas nômades ocupam as ruas, as casas, as escolas, as lutas, habitando espaços e vínculos que desconstroem e redefinem palavras cotidianas como lar, família, educação, trabalho, amor. O propósito ideal é inconscientemente alcançado todos os dias na autonomia como algo estável que nasce, vive e depende apenas da autodeterminação de cada indivíduo, independentemente de onde ele esteja, mas ao mesmo tempo sendo crucial o uso do espaço habitado no aqui e agora. As pessoas sedentárias primeiro questionam aos nômades de onde eles vêm e, depois, se estão tentando a sorte, se são turistas ou se estão apenas passeando. E não é assim, o nômade, sem ter datas e locais fixos, sabe muito bem para onde está indo e aproveita ansiosamente seu tempo ao máximo, de acordo com um plano traçado por suas próprias mãos e baseado em seu próprio conhecimento, em seus desejos e em suas conquistas. Não depende da sorte de conseguir uma boa localização ou um bom emprego, muito menos da sorte de ter nascido na melhor família ou país. 

A maioria das pessoas que encontram estabilidade nômade são mestres de suas economias e criadores de seu trabalho, escultores de suas realidades. Se essa pessoa for um educador ou o cabeça da família, também acrescentará à sua sustentabilidade a devoção à expansão do conhecimento para aqueles que o cercam em cada etapa de sua jornada, dentro de si mesma ou para sua equipe, será responsável pela crítica construtiva do que é aprendido em cada lugar, do que é mostrado e do que é entregue. Há aqueles que conseguem entender que também existe um: Para quem? 

Em primeiro lugar, todo nômade leva a vida por si mesmo, é a constatação de que é possível viver à sua maneira em um mundo que parece ser feito apenas para aqueles que atingem aquela estabilidade ideal estabelecida. Possivelmente, eles também o fazem por suas famílias, para poder oferecer uma melhor qualidade de vida, seja ajudando de diferentes países, ou partindo com toda a família e superando as expectativas violentas de vida que o sistema deixa para aqueles que estão à margem do que já está estabelecido. Há pessoas que, por causa da violência familiar, se distanciaram de suas origens para criar novas realidades em que o amor próprio pode ser mais do que suficiente, cuidando de trazer informações de e para outros indivíduos e até mesmo para outras famílias. Mais paralelamente ao reforço direto de sua própria realidade e das realidades daqueles que alcança, inconscientemente, o nômade persiste em seu modo de vida, especialmente para seu público, as pessoas locais, demonstrando que há estabilidade sem sedentarismo. 

Essa demanda de pessoas itinerantes que chegam às grandes cidades ocorre paralelamente em muitos países do mundo e, coincidentemente ou causalmente, muitas delas encontrarão a possibilidade de resolver sua estadia em espaços recuperados. Edifícios estatais e mansões nos centros históricos das grandes cidades colonizadas da América do Sul e das cidades europeias, protagonistas da revolução industrial, foram abandonados por instituições e proprietários ricos, deixando casas gigantescas para os marginalizados que, livres de qualquer propriedade, transformam esses espaços esquecidos em lares, gerando pequenas sociedades e comunidades com empatia pela falta de moradia e força para seguir em frente no caminho de uma vida estável.

Galpão de Tolosa

Em La Plata, Argentina, existem os Galpones de Tolosa, um local ferroviário de manutenção que funcionou até 1990.

Texto

Descrição gerada automaticamente

Flyer Los Galpones de Tolosa. Acervo: Rocio Urbano.

Placa de letreiro afixada em parede de tijolo

Descrição gerada automaticamente

Frente do centro cultural El galpon de Tolosa dentro de Los Galpones de Tolosa. Acervo Rocio Urbano

video María Paula Etcheverry, Sofía Bustos, Virginia Cappelli y Tomás Grilli

 

Em 2008, os galpões foram ocupados por vários estudantes de diferentes organizações políticas, sociais, culturais e universitárias que abriram o espaço com a ideia de criar um local digno para estudar, ensinar e dar qualquer tipo de apoio social que estivesse ao alcance. Assim, durante a sua revitalização, eles administraram de forma autônoma e horizontal eventos e ações diretas, como ateliês artísticos, salas de apoio escolar, uma horta e um almoço popular solidário. 

De portas abertas para as necessidades comuns dos vizinhos e daqueles que chegavam aos Galpones de Tolosa, uniram-se a lutas e frentes que deram um uso produtivo à propriedade esquecida pelo Estado. Como a A.D.D.H.E.S., uma organização de pessoas auto-organizadas em defesa dos direitos humanos dos portadores de aids, encontraram um lugar onde podiam se reunir para se organizar em sua luta pela vida diante das condições negligentes que o Estado e a sociedade os deixavam. 

Naquela época, em La Plata, não havia serviços de atendimento para portadores de HIV, não havia medicamentos disponíveis e a maioria desses portadores estava desempregada devido à discriminação contra sua condição. Eles tinham que viajar horas para Buenos Aires para receber tratamento e medicamentos. Ter um lugar para se reunir era fundamental e, por meio de eventos e reivindicações públicas, eles conseguiram que o tratamento e os medicamentos chegassem aos hospitais de La Plata, junto com uma pensão monetária, um cartão de alimentação e recursos com os quais modificaram a infraestrutura dos Galpones de Tolosa, criando uma fábrica têxtil com empregos para pacientes com aids. Hoje, três famílias ocupam e habitam parte do local, resolvendo assim seu direito à moradia digna. Cerca de cem cooperativas de trabalho periféricas utilizam os galpões para fabricação. 


Los Galpones de Tolosa Acervo Rocio Urbano

Vemos em comum o fato de que todas essas pessoas conseguiram encontrar o caminho para uma vida mais estável ao ousar sair de seu território familiar e confiar na voz que lhes dizia que outras soluções eram possíveis nesse lugar que costumava ser abandonado. A arte e a educação andam de mãos dadas com as lutas populares diante dos desequilíbrios gerados por essa estabilidade estabelecida e, juntas, abrem caminho, em meio a escombros e leis, para os direitos básicos que todo ser humano merece, como moradia, saúde, educação e trabalho. Uma ocupação, seja qual for a sua posição geográfica, está sempre pronta para se tornar o lar desses espíritos lutadores, que se recusam a se submeter à escassez. Ocupar é resistir, e a existência de ocupações é, em conjunto, um lar estável para os povos nômades. 

 

O político e o pessoal

Conheci os Galpones de Tolosa por meio do coletivo A.D.D.H.E.S., que ia em busca de alimentos que eram distribuídos aos portadores do HIV e suas famílias, e minha mãe era um membro autoconvocado, na época desempregada devido à discriminação contra sua condição. Lá conheci outros membros da família como eu que, apesar de não terem a doença, participavam das reuniões, marchavam nas manifestações e sofriam com a negligência médica e a falta de atendimento médico sempre que iam como companhia aos hospitais. Saímos de diferentes periferias da cidade para nos reunirmos em uma ocupação e enfrentarmos a negligência governamental e social que permitiu que uma capital de estado não tivesse acesso a cuidados, medicamentos ou empregos para pessoas que vivem com HIV. Em La Plata, todo dia 1º de dezembro a A.D.D.H.E.S. realiza um evento de conscientização com bandas de música locais em uma praça no centro histórico, distribuindo material informativo, contraceptivos e camisetas com serigrafia artesanal ao vivo. Foi dessa forma que entrei no mundo das artes e, de mãos dadas com um coletivo marginal que, com autogestão, estava fazendo política social. Emiliano Lombardo, membro do coletivo como músico ativista, incentivou o reforço dos eventos com apresentações musicais de classe, dando mais vida à sua luta pela vida, conseguindo, assim, em cada manifestação, capturar a atenção da cidade, primeiro com seu poder como artista, depois com o poder de todo o coletivo em seu nível de autogestão, e, finalmente, quando se trata da reivindicação das carências, deixar em evidência que a fragilidade não está nos pobres, mas sim na precária capacidade de atenção dos governos diante da diversidade de realidades existentes na população. Foram esses eventos que me inspiraram a fazer música usando a arte como um portal de comunicação intersocial, acompanhando aqueles que sofrem injustiças e questionando os privilegiados que os ignoram e suas lutas.

Ocupar com ações diretas espaços públicos e estatais, além de tornar visível o sucesso da autonomia em tudo o que um evento público precisa (gestão, recursos, difusão, atividades artísticas, logística, técnica, segurança, conteúdo social), por estar focado na luta pela solução de um bem comum para a sociedade contemporânea (trabalho, saúde, educação, inclusão social), deixa em seus executores experiências que fortalecem sua estabilidade emocional na glória da liberdade de expressão e gestão, mesmo em meio a uma realidade excludente. É nesses eventos que se reúnem coletivos e indivíduos que não são exatamente da mesma cidade, mas que encontram deficiências comuns e se unem pela luta, encontrando nela um lugar seguro e inclusivo que atende às suas demandas mesmo quando estão fora de sua jurisdição. Esse seria mais um exemplo em que o indivíduo afetado pelo declínio do capitalismo, aplicando uma ação nômade e autônoma, consegue se aproximar de seu ideal de vida estável a partir da prática, criando alternativas para evitar se submeter às esperas propostas pelo sedentarismo e falta de organização jurisdicional, evidenciando a estabilidade como algo que não depende da permanência fixa em um lugar e associando o sedentarismo à inanidade como fator que adoece a qualidade de vida de indivíduos e grupos familiares das classes mais baixas.

 

“O pessoal é político” — Carol Hanisch

Texto

Descrição gerada automaticamente

Flyer A.D.D.H.E.S Acervo Rocio Urbano

video de ADDHES Prensa

Centro por los Derechos Humanos Hermanos Zaragoza

A casa Zaragoza é um espaço de memória e ação situado no centro de La Plata, cidade universitária, capital de Buenos Aires, carregada de histórias de resistência estudantil durante a ditadura na Argentina. No ano de 1975, dois irmãos estudantes da Faculdade de Ciências Exatas (Chilo Zaragoza e Neto Zaragoza)  foram sequestrados e assassinados pelo estado por serem membros ativos do centro estudantil e porque falavam em assembleias demandando melhorias básicas para aprendizagem e acessibilidades dos estudantes. A mãe deles integrou-se ao movimento de “Mães da Praça de Maio” conformado por mães de todo o país que tinham sofrido a perda de seus filhos e netos nas mãos do governo nacional. Luisa Cecchini teve a vontade de fazer uma placa em memória dos irmãos Zaragoza num casarão onde seus filhos tinham trabalhado. O antigo dono, um médico, tinha doado a propriedade ao estado com a condição de que fosse usada para o bem da comunidade, mas a casa estava abandonada. Um coletivo de educação popular nas periferias da cidade fazia suporte do movimento das Mães e decidiu ocupar a casa para abri-la como ateliê e espaço de memória, denominando-o Centro de Direitos Humanos Irmãos Zaragoza. Até hoje, a casa acompanha e divulga juízos a genocidas militares, casos de violência de gênero, lutas LGBTQIAPN+, e leva à cidade as lutas indígenas contemporâneas em que o governo, através de movimentos legais, expropria terras dos povos originários para fins comerciais. Mais uma casa esquecida pelo estado, mais uma casa que lembra ao povo que a ação pelos direitos humanos é responsabilidade e direito de todos, sempre em companhia dos artistas nômades que, no seu passo pela casa a tem re-habitado, preenchido o silêncio com músicas, saraus, desenhado a memória em murais coloridos, e trabalhado com as mãos em oficinas de artes plásticas criando obras que falam mais que mil palabras. Participei de um evento solidário tocando baixo na minha primeira banda e expondo meu primeiro quadro.

Centro DDHH Hermanos Zaragoza Acervo Rocio Urbano

video “Tres okupaciones diferentes” da editora independente “VomitArte” sobre okupas da cidade de La Plata ao final do vídeo declamam “é mais que permitido copiar e difundir este vídeo: é preciso!”

El Bosquecito de Hernandez

A tradução do nome seria “A pequena floresta de Hernandez”  ocupada durante 8 anos. Um espaço verde que sobrevivia na periferia da cidade ante a mega construção de bairros privados para classe média e alta. Uma fábrica de materiais de construção abandonada junto a uma grande área verde. Ali um grupo de mulheres viu a oportunidade de escapar das reformas que o governo estava tentando impor na agronomia argentina, privatizando as sementes orgânicas e forçando os pequenos agricultores a aderirem aos monocultivos transgênicos e ao negócio dos agrotóxicos, tão daninhos para a saúde de quem se expõe a tais químicos como para a terra que começa a ficar estéril para as sementes naturais. 

Na “floresta”, quem tiver consciência sobre seu direito a uma boa alimentação e preservação da memória ambiental, chegava com sementes e vontade de meter as mãos na terra. tanto para expandir a horta comunitária como para aprender alternativas ancestrais para moradia levantando cômodos com bioconstrução. Como toda área que vira privada nas periferias, ainda tinha o contraste de pessoas de baixa renda com pouquíssimo acesso à arte e à cultura. Por causalidade da vida, essas agricultoras, essas construtoras eram também artistas! Para manutenção do espaço e instalação de água e eletricidade, foram feitos muitos eventos com bandas convidadas, apresentações artísticas e buffets veganos, doação de sementes orgânicas, conexões com etnias indígenas que eram constantemente atacadas pelo estado nos interiores do país, e rituais de espiritualidade feminina com ervas medicinais.

Placa com dizeres

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaGrupo de pessoas sentadas ao redor de uma árvore

Descrição gerada automaticamente

El Bosquecito de Hernandez Acervo Rocio Urbano

El Embarcadero

Em 1947 o filho do fundador do povoado Álvares, interior de Buenos Aires, começou a construir o que seria um hotel, pela sua localização do lado da rodovia que conecta com a capital do país. Embora fosse um bom projeto, foi abandonado no ano de 1950. Muito tempo depois, em 2015, assisti, voluntariamente, um encontro de artes circenses no local. Lá encontrei uma organização horizontal de artistas, a maioria nômades, que trabalhavam em conjunto com artistas, professores e agricultores locais. A demanda por moradia desses viajantes e a demanda de espaços de criação da comunidade local se encontrou na união ocupando o espaço com pessoas que queriam algo mais do que o fluxo da capital e acharam no embarcadero uma folha em branco para combinar imaginários. 

Assim, revitalizaram o espaço tanto para quem ficasse morando como para tê-lo pronto para as visitas que procurassem um espaço alternativo onde aprender, compartilhar e criar. Foi estabelecido um estatuto de normas de convivência, um dia semanal para assembleia geral, completaram as paredes que faltavam num canto da torre com bioconstrução e foi aí que se inaugurou um teatro aberto à livre expressão. 

No encontro que me fez conhecer essa ocupação artística, tomei oficinas de técnicas e numerologia do malabar com artistas jugglers que hoje são referências e trabalhadoras ativas na pesquisa do circo contemporâneo, participei de uma variété com bolas de sabão gigantes envolvendo uma pessoa do público, acompanhada de música ao vivo, da mão de uma orquestra palhaça composta por cinco pessoas que viajavam de Kombi, e comemorei o encerramento dos três dias de encontro com um cortejo até a praça principal que fechou a fanfarria plantando uma árvore de abacate com o sonho de o município não interferir e no futuro comer da terra que um dia foi trabalhada por artistas, comer a memória. Nele se mantinha um bom convívio com os vizinhos através da horta comunitária, o bicicletário popular, o ponto de reciclagem e a produção de ecotijolos.

El Embarcadero Acervo Rocio Urbano

https://desalambrar.com.ar/el-embarcadero-a-este-espacio-no-hay-que-recuperarlo-porque-esta-vivo-y-es-libre/ video entrevista do site journal Desalambrar

El Crematório

Também conhecido como Espacio Pluricultural Hijes del pueblo pintado a mão no vitral do lado da entrada principal, junto com uma Wippala evidenciando que “O Crematório” era mais que uma fábrica ocupada com a cultura local. A palavra pluricultural, confirmando a resistência de outras culturas nesse canto de Hurlingham, localidade periférica de Buenos Aires — sabida como um dos tantos esconderijos de famílias nazis que fugiram para Argentina ao final da segunda guerra mundial, onde é possível identificar símbolos da SS gravados nos portões de ferro de alguns dos grandes casarões da época que ainda existem nos centros das cidades ferroviárias. Nesse contexto, dar uma identidade cultural híbrida ao espaço era uma forma de se posicionar contra ideologias violentas e fascistas, além de propagar o fato de os povos originários terem uma grande sabedoria ancestral sobre terra, céu, corpo e espírito, muito antes da chegada “alfabetizadora”,, ou melhor dito, doutrinal dos europeus colonizadores, embranquecedora das culturas.

 Foi uma família andina que morava do lado da fábrica que decidiu abrir o espaço como um ponto de leilões, seguido de eventos com bandas do bairro, skate point, e aulas de quíchua e aimará, línguas andinas que até hoje resistem entre camponeses e centros urbanos da Bolívia e do Peru. Nessa época, o espaço se mantinha fechado e abria somente para essas atividades esporádicas. Numa praça perto do local resistia um encontro semanal de treinamento de circo e malabares, e, numa tarde de chuva, os artistas imaginaram fazer o encontro dentro do “crematório”, que, apesar de ter algumas atividades, ainda tinha muito a fazer no porão ao final do local que era o mais indicado para o encontro, devido ao seu teto alto e amplitude. Essa foi a primeira troca, reformar e limpar como contrapartida do uso do espaço. A família aceitou o trato, e o que era um encontro semanal, com a chegada de artistas nômades de outros países, transformou-se em um centro cultural e moradia artística. Os artistas nômades traziam novas propostas em troca da moradia itinerante, começaram as oficinas de acrobacia, treino físico, aéreos, equilíbrios, música e malabarismos. De segunda a segunda, o espaço abria às 10:00, com novos murais nas paredes, ludoteca para as crianças, almoços coletivos e uma “gratifeira” na porta, que consistia em doar roupas e calçados para quem precisasse. As decisões eram por consenso de maneira horizontal, todas as quartas-feiras, numa assembleia aberta a propostas para o espaço. Iniciamos uma parceria com um refeitório solidário de rua que dava chá e lanches para 40 crianças de entre 2 e 12 anos, abrimos o espaço para eles fazendo ciclos de cinema infantil com debate no final, estimulando o pensamento crítico e a boa comunicação. Eram crianças muito difíceis, vinham de realidades muito violentas, sujos, magros, agressivos e tristes, sempre tinha brigas e choros, o que nos fez enxergar as dificuldades que atravessavam sua infância e a nos questionar, o lanche e o filme eram realmente suficientes? 

Marcamos uma nova atividade: íamos a brincar de super-heróis, nos inspirando a imaginar superversões de nós mesmos; nos sentávamos em roda com as crianças identificando o que é um super-heroi e inventando os poderes que teríamos; e encerramos a atividade customizando 40 capas para nossos novos personagens — naquele dia não teve brigas nem choros, ninguém se lembrou da violência, os mais agressivos esqueceram da hostilidade e compartilhavam e ajudavam com as tesouras aos mais pequenos. Os pais dessas crianças eram indiferentes a nós, nunca se aproximaram nem para acompanhar as crianças, nem para trazê-las nem para levá-las para casa; nós tínhamos um sistema de ir a buscá-las com uma corda de 10 metros, porta a porta de cada barracão, e as transportávamos pelas ruas em fila com a condição de irem se segurando na corda. 

Nesse espaço aprendi que a ação social de alimentar e lidar somente com conversas os desabafos das classes baixas não era suficiente. É preciso preencher os vácuos, além da fome e da falta de espaço, a transmissão da cultura não é só entretenimento, por isso assistir um filme não era suficiente, a ludoteca e o tempo livre não eram suficientes para a criança esquecer ou entender como lidar com a violência de casa e da sociedade. Mas atividades que desafiassem o pensamento cognitivo e os fizessem por as mãos à obra estimulando a imaginação, uma atividade artística participativa do início ao fim foi o que ultrapassou a expectativa da capacidade dessas crianças e de nós mesmos, artistas nômades sem formação pedagógica, para saber como ensinar ou lidar com a psique infantil. 

Na verdade, a ideia da atividade chegou por parte de mães e pais que integravam a organização na hora que os artistas sem filhos começaram a desistir de participar das atividades por ser tão delicada a situação dessas crianças revoltadas pela hostilidade das suas realidades. Os materiais da atividade saíram do caixa da casa, no qual colocávamos o dinheiro arrecadado das vendas e rifas dos nossos eventos, cujas tarefas eram rotativas, com horários organizados, mas sem fins lucrativos individuais. Ninguém ganhou dinheiro nem reconhecimentos por todo o trabalho feito na ocupação do crematório, mas sim experiência, afinal, ocupar artisticamente é resistir a um sistema que dita que tudo tem um preço, ou ainda, que o que se dá de graça costuma ser as sobras. Tínhamos outro caixa para comidas coletivas, comprando nas cerealistas todo tipo de produtos orgânicos para uma alimentação saudável — embora a maioria não se restringisse de produtos animais, fazíamos somente comidas veganas e vegetarianas trazendo à casa, ao corpo e à mesa o aporte de não contribuir para a indústria das carnes, tendo consciência dos pontos negativos e cruéis para os animais, para o meio ambiente e para nós mesmos. Nós, hijes do povo, tendo entre nós pessoas trans não binárias impondo uma ideologia que, a partir da dis-generalidade, se contrapõe ao sistema patriarcal que se reforça não no masculino, mas sim na figura autoritária do homem, o senhor, o dono. Os ocupantes artísticos têm um accionar incompreensível pelo capital, tornaram-se material de pesquisa. 

Fecharam o crematório na pandemia, as crianças voltaram a preencher as ruas, a vizinhança local e a rotina nas casas, e os artistas nômades continuam nas estradas. Uma outra ocupação, que misturava toques punk, moradia e economias criativas para mulheres ex-presidiárias com uma escola de panificação e aulas de kickboxing, e foi despejada, traz a ação direita de um casal anarquista, ocupantes do “Aquelarre”, que botou uma bomba caseira no túmulo do Ramon Falcon, chefe da Polícia Federal na época de La Liga Patriotica, grupo nacionalista de extrema direita  que torturarava trabalhadores indígenas e imigrantes em 1909. A bomba explodiu nas mãos da anarquista, que foi encarcerada sem atenção médica.  A falta de informação criadora nas zonas vulnerabilizadas é perigosa, permitindo que a dor responda à violência com mais violência.

 

Texto

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Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo no interior, mesa, vidro, quarto

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Fonte Acervo El Crematorio, Jose Lash Colega da okupação

video Jose Lash

La Toma

Em Lomas de Zamora, sul de Buenos Aires, tem uma ocupação artística do lado do trem de Lomas chamada La Toma, que conheci através de um festival de cinema anarquista nômade que, naquela edição, combinava uma série de documentários brasileiros sobre okupas queers e anarquistas, de São Paulo e outros estados, com uma feira de livros anarquistas composta por várias editoras independentes. Havia uma rifa que, com minha filha, ganhamos um livro infantil sobre mulheres anarquistas na Argentina, da editorial Sudestada, sobre Virginia Bolten e Juana Rouco Buela, mulheres que alçaram a voz pelo direito das trabalhadoras que em 1907 sofriam ainda mais do que os homens pelas condições laborais e pelos salários mais baixos. 

La Minga

Saindo de La Toma um dia fui convidada a conhecer e me apresentar numa outra ocupação artística que estava tomando forma num bairro de Alejandro Korn, interior de Buenos Aires. O evento era uma variété de circo com bandas ao vivo, venda de cerveja artesanal, feita por um colega da ocupação, e comidas veganas, ao benefício de um refeitório solidário para as crianças carenciadas que moravam nessas terras ocupadas por casas precárias onde famílias de cinco pessoas habitavam um barracão de quatro muros de madeira e chapa, um lar dentro de um espaço de 25 m².

Apesar dos diversos compromissos que tinha nesse dia, consegui atravessar a cidade e apresentei meu número de palhaça para essas crianças que, por sua vez, nessa mesma noite, fizeram uma amostra das destrezas circenses ensinadas pelos ocupantes anarquistas. Minha visita evidenciou nossa afinidade de ideias, enquanto compartilhamos comidas, músicas e conversas. Depois de algumas visitas fui convidada a morar lá. La Minga era feita de barro e material reciclado na estrutura dos muros, eram como galerias de arte trash eco industrial. Um espaço comunitário com biblioteca e mesas para desenhar e cozinhar, e quartos com formas oblíquas diferentes de todas as paredes de quadros lineares perfeitos que tenho habitado em toda a minha vida. O quintal era imenso e tinha uma horta que fazia as nossas saladas ainda mais especiais. A cozinha era do lado de fora, com fogão a lenha. O banheiro era seco, com um sistema que apoiava o desuso dos esgotos evitando ser parte das inumeráveis águas negras. 

O quintal contava com uma estrutura de trapézio feita a mão por um artista nômade do Chile que chegou com conhecimentos de infraestrutura de circo, acrobacia, malabares e luthieria. As primeiras ocupantes da casa eram mães, artistas nômades, palhaças e artesãs. Seu instinto maternal mantém aberto o espaço para todes, defendendo que as crianças ficassem o dia todo no espaço se quisessem, lidando com a violência reproduzida às vezes pelas crianças. Me despedi como a uma guerreira tocando tambores e soprando trutrucas, instrumento ancestral mapuche, decretando em cantos que voltaria.

Uma imagem contendo jovem, mesa, coberto, homem

Descrição gerada automaticamenteHomem com criança na calçada

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaUma imagem contendo Texto

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Fonte Acervo público La Minga

Homem em pé na frente de um prédio

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaPlaca vermelha com letras brancas

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte Acervo público La Minga

La Redonda

No “Crematório” consegui fazer conexões intercontinentais. Uma delas foi com uma família que chegou propondo oficinas de fitoterapia e doação de mudas de plantas comestíveis, com mutirões na terra, aprendendo sobre cultivo e ciclos solares. A proposta foi feita pela mãe da criança, como contrapartida pelo pedido de apoio em prestar moradia para o pai da criança que vinha de Madrid para cuidar do filho por alguns meses. 

Um ano mais tarde tive que fazer uma viagem a Espanha aceitando a proposta da minha família paterna de me oferecer uma moradia digna depois de ter se ausentado da minha vida desde os meus dois anos de idade. Vinte anos de ausência me fizeram duvidar da qualidade de vida que podia ter ali, longe dos imaginários românticos dos encontros intrafamiliares, uma vida sem liberdade. Assim me passaram o contato de uma ocupação que já tinha 20 anos perto do centro de Granada, cidade onde seria recebida por minha “família” de sangue. Globalizada na cena contracultural da Espanha rebelde, anárquica, organizada e ativista, preparei um acervo de todo o material anarquista que tinha na biblioteca pessoal, juntando fanzines e o livro infantil de história anarquista. O único que tinha era o nome: “A redonda”, pesquisei e encontrei no mapa junto com um site contendo todas as informações atualizadas das atividades, xeroquei o acervo e assisti ao treino livre de trapézio esperando a pessoa responsável pelo espaço. 

Carmen chegou junto com a noite e ao ver as frases dos parches na minha roupa perguntou se eram do Chile, demonstrando estar informada sobre a forte contracultura anarquista da juventude chilena. Dei risada porque tinha passado pelo Chile e a maioria dos meus parches vinham de lá. A senhora era uma anarquista que tinha visto todas as transições do espaço, fazendo parte de bandas de mulheres punks, baterista antissindicalista, filha do nomadismo; seu pai, um cubano que a liberou de frequentar a escola na época da ditadura fascista de Franco, lá pelos anos 1970. Expliquei minha situação, uma artista autônoma, mãe nômade que vinha à casa da família que não conhecia, mas que nesses poucos dias se revelaram com confiança nas suas falas e pensamentos de extrema direita racistas e machistas. Carmen, sem me conhecer, me brindou a certeza de que podia contar com ela para o que precisasse, incluindo moradia e assistência jurídica. Passou uma semana e fui violentada verbal e fisicamente pelo meu “pai”. A família falou que eu tinha que aceitar por ele ser meu pai... Uma família conservadora violentando uma vida abandonada por décadas, impondo que a estabilidade lhe brindaria, sujeita à submissão dos ideais se privando de parâmetros de respeito pessoal. 

La Redonda me recebeu na biblioteca durante 20 dias até meu voo de regresso. Nesses dia conheci de perto o espaço e participei do evento de encerramento do ano, cantando minhas músicas e gravando uma entrevista para uma rádio local, num programa apresentado por um locutor chileno com o qual, numa conversa, achamos afinidade por termos habitado outra ocupação no interior de Valparaíso, no Chile. Na Redonda funcionava um teatro, um ateliê de xilogravura, uma horta, um bicicletário, oficinas de aéreos, incluindo tecidos e trapézios fixos para treinos livres, uma cozinha que abria um buffet vegano para abastecimento do caixa da casa, a biblioteca e o quarto de marcenaria. O foco do evento de final de ano foi uma grande feira de autoprodução com camisetas serigrafadas, artes gráficas e edições independentes e traduções. No quarto de marcenaria, Carmen estava ajudando um colega senegalês a fazer sua resistência burocrática no país, que depois de sobreviver 3 anos de residência como imigrante irregular podia começar a tramitar documentos legais. O espaço foi despejado na pandemia. 

Calendário

Descrição gerada automaticamente

Fonte Acervo público La Redonda

El 22

El 22 foi a ocupação artística que me recebeu no primeiro dia, assim que cheguei em Santiago, em troca de uns dias de trabalho voluntário na construção coletiva de um segundo piso de madeira, feito a mão, com ferramentas profissionais que a organização tinha comprado com o caixa dos eventos artísticos, pelas vendas independentes, um esquema idêntico de organização entre os autônomos do mundo, uma globalização dada além dos meios de comunicação, uma globalização contracultural dada pelo nomadismo artístico. Casa nômade com pessoas de sete países naquela ocasião. No último dia desfrutamos das apresentações e compreendemos através da cena musical local os ideais que se contrapõem desde a boemia chilena até o poder da repressão que perdura nas figuras de poder desde as suas ditaduras. El 22 foi despejado na pandemia.

La Cazuela

 A poucas ruas do El 22, tinha o casarão da okupa La Cazuela, também sobre a  Av. Vicuña Mackenna, de frente ao metrô Los Quillayes. Impondo presença artística com a sua estrutura de aéreos com trapézio, lira e tecido que cabia certinho no quintal da frente da casa, se destacando na avenida cinza pelo frio da cordilheira. 

El 23

El 23, menor que as outras okupas artísticas, fazia uma resistência de comida vegana e orgânica convidando aos artistas itinerantes que estavam de passagem e que resolviam cozinhar sem carne, conforme os parâmetros da proposta da casa, alimentando assim muito mais que o vácuo da fome.

Casa TIAO

 Nessa okupa fui recebida pelo consentimento de um colega músico de circo, também nômade, ocupante da El 22, de Santiago, e da Casa TIAO, de Valparaiso. Durante as noites habitamos o quarto do tatame, feito a mão, com lonas e pregos para treinos e alongamentos. Nossa contrapartida foi revitalizar o espaço do quarto, assim como outros setores de uso comum desse primeiro andar. Nas tardes havia oficinas de globoflexia, aéreos, sanfona, eletrônica, tendo à disposição também aulas de música, salão de tatuagem, cozinhas coletivas, e o uso constante de um ateliê de bonecos gigantes para teatro de rua. Valparaíso, cidade portuária e boêmia, durante as noites desatava nessa ocupação a liberdade de uma cena da arte under caótica e visceral, com toques de música punk, hardcore, grindcore, post punk e noise, e freak shows com exposição de tatuagens, modificações corporais, pirofagias, fakirismos e suspensões corporais performáticas, juntamente com performances queer e soft BDSM. Era a libertação dos dogmas da geração que nasceu da ditadura militar e todo um sistema opressor do prazer da natureza humana e o seu livre arbítrio. A casa foi despejada em 2024.

Casa 4:20

Solía ser um colégio de padres católicos na época da ditadura, nos salões de aula tinha pequenas janelas para espiar o comportamento dos alunos. Foi ressignificado com uma ocupação artística que misturava culturas com oficinas de dança afro e capoeira, e brindava residência artística a músicos nômades com instrumentos de orquestra. Também era regido por uma assembleia horizontal e comidas veganas coletivas.

Traziano

 Essa ocupação artística situada no interior de Valparaíso se destacava por ter sido feita do zero num terreno adaptado ao treinamento de parkour, com casas de madeira, bioconstrução, banheiro seco coletivo e cozinha a lenha comunitária. O espaço era frequentado desde cedo por esportistas selvagens que voavam pulando entre as árvores, ultrapassando os limites dos corpos sedentários. Estava aberto a residências artísticas itinerantes e músicos que trabalhavam a madeira das mesmas árvores do terreno fazendo djembes e didjeridoos artesanais, combatendo a partir do mato a contaminação acústica das cidades com batidas e frequências ancestrais.

Desenho de uma árvore

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte Rocio do Coletivo Parkour AFC.

Aldeia Maracanã

 Atualmente, ao lado do estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, a Aldeia Maracanã mantém uma resistência de território indígena de mais de 500 anos. Ocupando o espaço com a cultura tupi-guarani e guajajara, aberto com o objetivo de fazer uma faculdade indígena regida por suas próprias lideranças e sabedorias ancestrais, mantém sua estética com pinturas naturais feitas com jenipapo marcando na pele símbolos de proteção e força nos contextos que estiverem atravessando. 

A Tropa de Choque invade o prédio ocupado, SEM MANDATO, expulsa parte dos ocupantes e mantêm três lideranças indígenas em situação de detenção coercitiva, vigiados por dezenas de militares. Às 6h da manhã do dia seguinte, a PM, novamente SEM MANDATO JUDICIAL, invade o território ocupado pelos indígenas e o interior do prédio, e retira seus ocupantes à força, arrastados pelas escadarias em ruínas, com uso de gás de pimenta, imobilizados, sob socos e pontapés e golpes de cassetetes, alguns são detidos, de forma exemplar... 

Tudo conforme o script da truculência e do poder ditatorial... mas eles não contavam com a coragem e resistência de um último indígena que atraiu pra si todo o aparato do Estado e da mídia fascista da época... O nome dessa pedra no sapato do Status Quo? URUTAU GUAJAJARA... Aldeia Rexiste!!

CESAC

O Centro de Etno-conhecimento Socioambiental Caiuré (CESAC), uma extensão da resistência da Aldeia Maracanã situada na periferia do Rio de Janeiro, em frente ao metrô Tomás Coelho, na rua Maracá, aos pés do morro Juramentinho, na beira do limite entre o bairro e o crime organizado. Alvo de balas perdidas dos tiroteios entre as facções em guerra e os policiais. Uma área de extrema violência, com uma grande população de crianças sem acesso a arte e cultura. Em 2014 criou-se uma parceria com uma artista do sul do brasil enxergando o potencial do espaço como galpão de circo devido aos seus altíssimos tetos. Se fez um acordo de dar moradia a artistas itinerantes em troca de manter as atividades culturais e a manutenção do espaço. Morei durante três meses nesse espaço, aportando com oficinas de bambolês para todos os corpos e apresentações artísticas dentro da comunidade como ação social para as famílias do bairro. No espaço funciona uma escola de kickboxing fomentando a saúde física e a disciplina como terapia de escape perante a hostilidade do entorno e da sociedade. 

Ouvidor 63

A experiência na maior ocupação da América Latina se destaca das outras por questões além das estatísticas, uma verdadeira Torre de Babel, a peripécia censurada de Dante Alighieri, a resistência do quilombo, a alfabetização dos ciganos, o reparo das doutrinas, uma quarentena artística, centos de artistas procurando a cura, para continuarmos resistindo eternizados em obras e na memória de quem compreendia e sentia, mas não sabia como expressar seu amor, como expressar sua raiva.

Entrei na Ouvidor 63 por Amor, minha filha, que estava se hospedando junto com o seu pai e me convidaram para comemorar seu aniversário no prédio junto com as outras crianças da ocupação. Nessa visita passei por todos os andares conhecendo os coletivos e de imediato comecei a fazer amizade com artistas membros do 6/12 Circus, me somando a apresentar no projeto de circo social, que leva cultura a comunidades periféricas, fazendo intervenções artísticas com circo, música, brincadeiras, balões e maquiagem artística para as crianças, todas atividades que, como multiartista de rua, faço com muita dedicação. Notando minha disponibilidade com o circo social, uma colega me ofereceu moradia artística no décimo segundo andar, para formar parte da frente que mantém ativo o teatro da ocupação. O teatro era denominado de La Mimo, em homenagem a uma artista de rua assassinada pela força militar chilena. A globalização da luta foi evidente desde o começo. Cada dia compartilhava tarefas e ideais com pessoas de toda a América Latina, o intercâmbio cultural foi irreversível, desde o ouvido até o paladar, o convívio além da moradia em cada andar, pois o prédio leva uma interconexão entre andares, coletivos, identidades e linguagens artísticas, conexões que as pessoas vão gerando por afinidade misturando referências artísticas, pensamento político e a ação social de compartilhar essa experiência imersiva que é entrar no Centro Cultural Ocupacional Ouvidor 63.

O décimo segundo andar mantém um estatuto que passa uma ideia firme propondo um espaço reservado para dissidências e mulheres artistas itinerantes ativas no coletivo de circo dispostas a manter o espaço aberto com atividades e a cozinha livre de carnes, promovendo o antiespecismo e a criatividade nas comidas feitas para as cafeterias do andar, do circo e de eventos gerais do prédio, produtos livres de sofrimento animal. Pensando no que mais eu tinha para oferecer no décimo segundo andar, fiz oficinas de criação de contos para crianças e uma performance da minha pesquisa em projeções analógicas com água, acrílicos, luzes e sombras. No teatro descobri meu interesse na parte técnica, trabalhando na iluminação de outras artistas usando os conhecimentos que uma colega do coletivo havia me passado. Logo foi a divulgação dos eventos, criação de conteúdo para as plataformas digitais, flyers, textos. Ser parte da organização do 4 FICAR — Festival Internacional de Circo e Artes de Rua — abriu mais caminhos explorando a serigrafia artesanal na produção de camisetas do festival. Ocupei o palco da Noite de Minas com “Romântika” meu número que aborda o amor nômade, as ilusões, o compromiso, os vínculos, o amor incondicional e o amor próprio no meio da bufoneria e utilizando a destreza como metáfora abstrata das coisas incríveis que se fazem por amor até de olhos fechados.

Na okupa tinha também amigos que conhecia de outras partes de nossa viagem. Foi um amigo modificador corporal e artista performático que me convidou a participar de uma performance neon-freak no teatro, o encerramento da “Galeria Marginalia”. O roteiro da dramatização ficou nas nossas mãos, artistas itinerantes migrantes convidados ao encerramento marginal da destruição de uma galeria neon, e o elenco composto por pessoas do Equador, do Peru, da Colômbia, da Argentina, da Suíça e do Norte do Brasil. A ideia era uma comunidade pós-apocalíptica se impondo sobre uma minoria do imaginário neon, representando os seres puros quase fantásticos nos tempos da modernidade. Escolhi representar uma mulher do Oriente Médio, sendo sequestrada e submetida, mas no final libertada. Os cenários imaginários fantásticos nos dão a oportunidade de visibilizar problemáticas reais enriquecendo as obras com o pensamento político, mas nos mantendo à margem de qualquer bandeira partidária. 

As roupas da garota sequestrada me fizeram ir parar num desfile de moda sustentável pós-apocalíptica, denominado “Periespiritu”, um projeto que veste a ideia de um mundo que já está destruído, brincando com customização de velhas prendas e acessórios que dão identidade a cada obra trazendo conceitos cyborg futuristas e sustentáveis. 

A ideia de profissionalização empírica foi por completo e palpável, com a experiência de trabalho multiartístico no Festival Imaginação 23 (Unifesp/SESC Carmo). A okupa já tinha em diálogo uma proposta há alguns anos e finalmente, depois da pandemia, conseguia fechar a parceria, com um último chamamento para consolidação da proposta final. Essas semanas de reuniões entre as frentes artísticas da okupa foram enriquecedoras em nível burocrático e gerencial, já que tinha que se passar por vários acordos de organização e compromissos coletivos para construir uma proposta escrita que tivesse coerência gerando harmonia entre as atividades e relevância pública. Decidiu-se por fazer o experimento social de dividir o total da verba de maneira equitativa entre a quantidade de pessoas envolvidas, passando por alto a quantidade de tarefas que caberia a cada um. Fiquei perto das pessoas que ficaram responsáveis pela escrita geral, dos documentos e das fichas orçamentárias. Escrevi a apresentação e a proposta do desfile Periespiritu, cuidando de dar a representatividade que o coletivo estava buscando interiorizar em palavras. Logo participei do show de circo criando um número em conjunto com outra palhaça. Participei do dia de Sarau tocando meus sons autorais em companhia de outro músico que conecto em minhas músicas e reversionamos algumas. Desfilei uma nova obra com o Periespiritu. Entrei pela primeira vez no coletivo do “Motor Humano” acompanhando monster bikes artesanais com meu monociclo e uma performance tocando violão e cantando em equilíbrio. Ser remunerada de maneira legal pela minha arte e o meu trabalho de produção era antes um pensamento difícil de concretizar. Fazer parte do Festival Imaginação 23 me fez perceber a importância de se envolver em projetos que valem políticas públicas, tanto para meu crescimento como artista como para fazer apresentações de qualidade através dos recursos disponibilizados pelas áreas de cultura dos governos e de outras organizações e empresas privadas que respaldam leis que amparam a descentralização da cultura. 

Voltando às atividades do 6/12 Circus, pedi licença ao coletivo para fazer uma exposição de fotos da história do teatro, acreditando que era necessário ter uma explicação mais crua de como foi feito o teatro, de quantas mãos passaram pelo 6/12 e quanta diversidade de artistas ocupam o palco do teatro La Mimo. Com o apoio de fotógrafos da ocupação fiz uma curadoria de 8 anos de material fotográfico, fazendo uma seleção que evidencia etapas da infraestrutura, parcerias com outro coletivos, diversidade de corpos, identidades, linguagens artísticas e finalizando com um texto curatorial resultado de toda a minha pesquisa para uma boa representatividade da exposição. A montagem foi feita em colaboração com a “Galeria Marginalia” na visão de simetria e enquadramento das obras. A ideia de fazer uma exposição fotográfica era uma forma de apoiar a causa judicial da ocupação em seu processo de resistência a uma reintegração de posse. A primeira defesa que a gente tem para não sair de casa são as melhorias feitas no imóvel antes abandonado. Montar uma exposição da história do teatro foi meu aporte artístico para uma possível estratégia legal, um escudo histórico, uma burocracia poética e segura, além de uma motivação para próximos artistas itinerantes que chegassem a se questionar por que estão dedicando tanto tempo e energia a esse coletivo, esse teatro, essa ocupação. É curioso como tem tanta gente que sabe que a Ouvidor 63 é a maior Okupa Artística de toda a América Latina, mas dentro da Ouvidor tem muitas pessoas que desconhecem a existência de outras okupas artísticas, porém, desconhecem seus sistemas, o que leva a uma exotização e a questionamentos das formas e normativas do prédio. Tomar consciência da exotização do movimento okupa artístico me inspirou a escrever este relatório que menciona 18 okupas que, paralelamente, têm funcionado como semelhantes, além dos contextos sociais e políticos de cada país, cada cidade. 

O centro de São Paulo é um imenso e sofisticado polo cultural, onde se obtém os conceitos do underground e os devolve polidos e prontos para a venda comercial de arte contemporânea. E, assim, como se explica que a arte vandal seja punida social e legalmente, mas que a fotografia de um grafite seja exposta numa sala de museu, e sem reconhecimento do artista, mas sim do fotógrafo pesquisador de arte contemporânea? Acho indispensável ocupar nossos espaços de fala e contar nossas próprias histórias. 

Nessa afinidade em misturar arte e realidade com pensamentos político-poéticos, fui convidada a formar parte das Varieté Sem Memória, uma proposta do coletivo “Lab 4º andar”, que estava indagando sobre incluir conteúdo histórico em espectáculos de circo-performance. A ideia era contar a história, sempre tão trágica, de mortes injustas e ao mesmo tempo cheia de vida e esperança. Experimentamos novamente elencos multiculturais contando as histórias das ditaduras, a criminalização da arte, o genocídio, os manicômios, os despejos, trazendo a memória com experiências imersivas de arte de alto impacto, dramatizações de diferentes arquétipos de terapia de choque e a força do ser humano em vencer isso tudo e no final ser livre, estando juntos. Os recursos visuais que compõem as cenografias das Sem Memória juntamente com oficinas de videomapping me brindaram a autonomia para mais na frente ter minhas próprias composições visuais criando cenografias digitais para nossos projetos e reforçar tecnologicamente números de outras artistas. Ter tanto o que dizer me impulsionou a aprender a falar direito o português para conduzir palcos abertos na porta da ocupação nos tempos de tentativas de reintegração de posse. Viver em Ouvidor 63 me deu a oportunidade de chegar até aqui.

Flyer feito por Rocio Urbano para grupo de estudos presencial na Ouvidor 63 comparando 18 ocupações artísticas 

Este grupo de estudos nasce da necessidade de des-exotizar a existência de ocupações artísticas e decolonizar comparações eurocêntricas sobre o movimento okupa ligado às artes como ferramenta de impacto social, com a intenção de globalizar realidades contraculturais onde a autonomia artivista ocupacional surge como solução natural a distintos contextos de negligência governamental, desmitificando o conceito que hierarquiza em linha temporal uma estrutura violenta em que a Europa cria o movimento squat e a América Latina o reproduz.

Como atual ocupante do Centro Cultural Ocupacional Ouvidor 63, Rocio Urbano traz as memórias de outras 17 ocupações artísticas que abriram as portas para ela ao longo da sua caminhada como artista nômade na Argentina, no Chile, na Espanha e no Brasil, muitas delas já despejadas e algumas ainda em resistência ativa, mas todas igualmente importantes e reais. Nesses encontros mergulharemos nas semelhanças desses espaços de luta, que paralelamente e sem conexão têm nascido, se organizado e resistido aos ataques estaduais que privatizam o direito à cidade, à cultura e à moradia digna.

Indagaremos nos contextos geo-sociais que têm em comum a negligência governamental de cada país e a autonomia como resposta imediata a novas vidas dignas: estratégias legais, métodos de organização horizontais, artivismo como ação social local, multiplicidades e nomadismo lutando por moradias dignas. Evidenciando artistas e empreendedores autônomos indispensáveis nesses organismos vivos que são as ocupações culturais. Juntxs somos mais fortes. Ocupemos a História, 

nossas memórias=nossos espaços de fala .

A multiplicidade é a capacidade que a diferença tem de (se) multiplicar.

(Texto convocatório para abertura do grupo de estudos, por Rocío Urbano).

Referências que reforçam esta pesquisa:

"Do sedentarismo ao nomadismo: intervenções para se pensar e agir de outros modos na educação" by Alexandre Filordi de Carvalho

"“Não sei estudar parada: inclusão escolar e nomadismo" by Betina Hillesheim

"Nomadismo, Currículos e Cotidianos Escolares: Ou Sobre Uma Política Nômade Para O Corpo" by Carlos Eduardo Ferraço

"[E]etnomatemáticaS: uma discussão acerca do nomadismo" by ERIC MACHADO PAULUCCI

“NOMADISMO E EDUCAÇÃO”by Dhemersson Warly Santos Costa and Maria dos Remédios de Brito

“NOMADISMO E SUBVERSÕES EM EDUCAÇÃO” by Claudia Horn Fabiane Olegário

“POR QUE AINDA É IMPORTANTE PENSAR COMO UM NÔMADE EM NOSSO TEMPO?” by Hélio Rebello Cardoso Júnior

“DOCÊNCIAS-NÔMADE NA EDUCAÇÃO: O QUE NOS FORÇA A PENSAR? NOMADIC-TEACHING AND EDUCATION: WHAT FORCES OUR THINKING?” by Letícia Regina Silva Souza, Ana Carolina Justiniano and Tamili Mardegan da Silva

El bosquecito de Hernández: ensayo antropojurídico sobre la memoria y el territorio

 Henao Tapasco, Julián Eduardo

video María Paula Etcheverry, Sofía Bustos, Virginia Cappelli y Tomás Grilli



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