(

1 de out. de 2023

)

Emancipação

A ousadia de despertar a consciência de classe: educação comunitária como ferramenta emancipatória

Micaela Yañez

Para pensar a Ouvidor 63 como espaço educativo é necessário visualizar as pessoas dessa comunidade e a forma como elas enxergam o sistema neoliberal de Estado mínimo (consciente ou inconscientemente) e como atuam para construir práticas comunitárias. Tudo isso dentro de um processo de permanente emancipação com o intuito de despertar a consciência coletiva através da educação horizontal como ferramenta emancipatória, considerando que nem todas as pessoas têm os mesmos processos de inserção crítica. Compete à comunidade a construção de uma prática libertadora de modo comum, despertando a consciência de si como pessoa e como classe.

O sistema neoliberal usa como mecanismo a ação de dividir como o oposto à solidariedade, o qual é necessário para alienar. Se a população se sente isolada do resto da sociedade não percebe as questões sociais como consequências de desigualdades estruturais, e sim como resultado do próprio mérito, o que torna muito complexas ações comuns dentro dos próprios territórios ou a união para garantir direitos fundamentais. O fim é individualizar as problemáticas sociais para adoecer a população e assim mantê-la submetida, tanto nas práticas macro — empregos precarizados, falta de acesso à moradia, elitização das academias etc. — como nas práticas micro — a solidariedade, o sentimento de comunidade e a possibilidade de desejar fora do predeterminado. 

O fato de a Ouvidor 63 garantir direitos humanos fundamentais como primeira premissa, dá lugar a repensar os modos de vida, desde o que desejamos até o como atingimos esse desejo. Retomando práticas de ação solidária, coletiva, cultural, e consequentemente atingindo a educação comunitária que busca emancipar as pessoas que aqui habitam.

Como resumo desta introdução ao ensaio, reforço a absoluta relevância de sermos protagonistas representantes da própria história como ação transformadora da realidade material. Mesmo que o processo parta de uma pulsão de emancipação inconsciente, não o torna menos válido. Cabe à comunidade como núcleo de sustento tanto coletivo quanto individual trazer a reflexão da própria materialidade histórica problematizando o contexto macro (a sociedade) e micro (a própria comunidade), com o fim de despertar a consciência individual e de classe para tornar a nossa existência crítica e problematizadora e assim construir novas realidades possíveis

Garantir o direito fundamental à moradia como primeira premissa

Quando menciono que a garantia de direitos humanos fundamentais (em particular a moradia que precede qualquer direito) é uma premissa dentro da Ocupação Ouvidor 63, me refiro a que é preciso ter a possibilidade de sonhar em construir uma consciência comunitária crítica. A segurança de um espaço é a primeira necessidade para pensar na possibilidade de sonhar com qualquer outra realidade. Embora possa parecer um pressuposto básico, no contexto político social no qual nos encontramos não é assim. Atualmente não existem políticas públicas que deem conta do déficit habitacional. Os dados abaixo demonstram isso:

  • A quantidade de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo passou de 64,8 mil em 2023 para 76,6 mil em 2024.

  • Ao mesmo tempo, o Censo de 2022 contabiliza quase 590 mil imóveis vazios no estado de São Paulo. 

  • Segundo o levantamento do ano 2023, a fila de espera por moradia pela COHAB é de 66.893 famílias.

Sendo este um cenário nefasto das políticas habitacionais, o Estado insiste em despejar e especular ocupações como a nossa, que arcam com a função social que ele negligencia. 

Trazendo essa realidade, podemos nos perguntar: por que tendo tantos imóveis vazios e recursos suficientes para resolver o problema de moradia o governo opta por não resolver e ainda gera maior demanda com o despejo de ocupações? O que há por trás de manter essa parcela da população sem essa condição fundamental, que é o abrigo, há mais de 500 anos? Quão perigoso é para o Estado Neoliberal garantir ou deixar que garantamos esse direito? O que significa que possamos nos organizar como comunidade reforçando laços de solidariedade? Qual é o risco de que a população pobre possa desejar e atingir aqueles objetivos? 

Talvez as respostas se encontrem no fundamental: eles precisam nos manter submetidas e submetidos, já que ignorar um direito constitucional não é apenas uma péssima administração pública, mas sim uma escolha que gera instabilidade emocional e dependência político-social. 

Consequentemente, o fato de nos emanciparmos através da educação e da ação comunitária talvez seja o maior temor desse sistema. Nos querem adormecidas e adormecidos, pois a inserção crítica e a consciência de classe é uma ameaça para as estruturas sociais do modo que as conhecemos. 

Educação horizontal com a responsabilidade comunitária 

Garantir o direito à moradia e forjar laços comunitários entre as pessoas que habitam esse território é uma ação revolucionária dentro dos parâmetros sociais ocidentais estabelecidos. Comunidade e solidariedade são conceitos opostos ao mecanismo de ação de dividir usado pelo sistema para nos responsabilizar pelas problemáticas sociais e assim individualizar nosso adoecimento emocional causado pelas desigualdades estruturais. Porém, quando vivemos e pertencemos a um espaço comum, aqueles paradigmas são, mesmo que de modo inconsciente, contestados. 

Dentro da Ocupação Ouvidor 63, demandas cotidianas como o cuidado das crianças, reformas estruturais, compartilhamento geral do que se tem fazem parte do cotidiano. Necessidades individuais de grande magnitude, que excedem as possibilidades resolutivas da pessoa por si só, são resolvidas ou sustentadas de modo comunitário, através de força-tarefa, eventos em prol dessa causa ou cafeterias.

Considerando que nem todas as pessoas têm os mesmos processos de inserção crítica devido às suas particularidades, cabe à comunidade idear processos de permanente emancipação com o intuito de despertar a consciência coletiva. 

Nesse desenvolvimento coletivo e horizontal, cada pessoa pode se encaixar nas demandas comuns com as quais se sinta mais a fim. Isso gera uma potencialização da força de cada integrante desta comunidade e a possibilidade de permanente crescimento individual, e consequentemente comunitário. Contamos com assembleias gerais semanais e com diversas demandas que abarcam frentes de manutenção estrutural do prédio, jurídica e artístico-cultural; tudo isso é feito e aprendido de modo coletivo num intercâmbio de conhecimentos sem hierarquias. Também temos diversas oficinas e grupos de estudos. 

Esses processos geram uma perspectiva de si dentro da comunidade e em benefício dela, resgatando os conceitos de solidariedade e educação comunitária como mecanismo de resistência e defesa. E, ao mesmo tempo, o sentimento de pertencimento e produtividade para si e para com a comunidade. 

Consciência de si como pessoa e como classe

Exaltar e potencializar as particularidades das pessoas que fazem parte da Ocupação Ouvidor 63 traz força e segurança individual, e consequentemente coletiva. Entender que a situação de moradia nos precede por ser uma ferramenta de controle de massa há séculos e, assim, acioná-la para mitigar esse risco social e resolver essa demanda histórica, que não é só nossa, é uma imensa conquista.

Nós, pessoas que fazemos parte dessa comunidade pluricultural, encontramos denominadores comuns que são a demanda por moradia, por acesso ao centro, por arte e cultura, por uma vida digna que garanta os direitos humanos básicos para termos a possibilidade de sonhar para além do predeterminado para nós, pessoas pobres. 

Temos a potencialidade, a experiência, a vontade e a força, mas não detemos o capital. Por isso, e apesar disso, conseguimos nos unir, lutar e resistir. É nesse exato ponto que nos tornamos um perigo. Quando garantimos por nós mesmas/os o contexto que nos permite ousar a desejar além do mínimo pré-fabricado.

Conclusão

As negligências estaduais quanto aos direitos fundamentais são perpetuadas há séculos. O fim dessa prática é a dominação material sobre as pessoas que não têm a possibilidade econômica de pagar pela garantia de seus direitos. Assim, mantém-se a população presa a desejar e ter objetivos que unicamente arquem com as garantias das necessidades fundamentais, porque torna-se impossível sonhar e ir atrás de uma realidade melhor quando não temos garantia de onde iremos dormir cada noite. Esse mecanismo nos adoece e, consequentemente, nos enfraquece, pois o problema desse adoecimento é seu apenas quando a individualidade e o distanciamento do comum é um dos pilares que sustentam essa estrutura social.

Apesar do descaso estadual, criamos laços, nos solidarizamos, nos educamos comunitariamente e conseguimos ir além do que estava dito para nós. A revolta organizada perante o que não é justo e o que nos é negado traz a inquietude que abre caminho para a inserção crítica individual e comunitária. Mesmo que aquilo nem sempre se manifeste de modo consciente, o que é material, o que é vivido, não tem como ser apagado e a partir daí criamos mecanismos de resistência e defesa. É uma estratégia para sobreviver. 

Movimentação contra despejo da favela do Moinhos Foto: Rose Steinmetz.

mais ensaios

Descubra Sobre Possíveis mundos Pós-Capitalistas

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1 de out. de 2023

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Emancipação

A ousadia de despertar a consciência de classe: educação comunitária como ferramenta emancipatória

Micaela Yañez

Para pensar a Ouvidor 63 como espaço educativo é necessário visualizar as pessoas dessa comunidade e a forma como elas enxergam o sistema neoliberal de Estado mínimo (consciente ou inconscientemente) e como atuam para construir práticas comunitárias. Tudo isso dentro de um processo de permanente emancipação com o intuito de despertar a consciência coletiva através da educação horizontal como ferramenta emancipatória, considerando que nem todas as pessoas têm os mesmos processos de inserção crítica. Compete à comunidade a construção de uma prática libertadora de modo comum, despertando a consciência de si como pessoa e como classe.

O sistema neoliberal usa como mecanismo a ação de dividir como o oposto à solidariedade, o qual é necessário para alienar. Se a população se sente isolada do resto da sociedade não percebe as questões sociais como consequências de desigualdades estruturais, e sim como resultado do próprio mérito, o que torna muito complexas ações comuns dentro dos próprios territórios ou a união para garantir direitos fundamentais. O fim é individualizar as problemáticas sociais para adoecer a população e assim mantê-la submetida, tanto nas práticas macro — empregos precarizados, falta de acesso à moradia, elitização das academias etc. — como nas práticas micro — a solidariedade, o sentimento de comunidade e a possibilidade de desejar fora do predeterminado. 

O fato de a Ouvidor 63 garantir direitos humanos fundamentais como primeira premissa, dá lugar a repensar os modos de vida, desde o que desejamos até o como atingimos esse desejo. Retomando práticas de ação solidária, coletiva, cultural, e consequentemente atingindo a educação comunitária que busca emancipar as pessoas que aqui habitam.

Como resumo desta introdução ao ensaio, reforço a absoluta relevância de sermos protagonistas representantes da própria história como ação transformadora da realidade material. Mesmo que o processo parta de uma pulsão de emancipação inconsciente, não o torna menos válido. Cabe à comunidade como núcleo de sustento tanto coletivo quanto individual trazer a reflexão da própria materialidade histórica problematizando o contexto macro (a sociedade) e micro (a própria comunidade), com o fim de despertar a consciência individual e de classe para tornar a nossa existência crítica e problematizadora e assim construir novas realidades possíveis

Garantir o direito fundamental à moradia como primeira premissa

Quando menciono que a garantia de direitos humanos fundamentais (em particular a moradia que precede qualquer direito) é uma premissa dentro da Ocupação Ouvidor 63, me refiro a que é preciso ter a possibilidade de sonhar em construir uma consciência comunitária crítica. A segurança de um espaço é a primeira necessidade para pensar na possibilidade de sonhar com qualquer outra realidade. Embora possa parecer um pressuposto básico, no contexto político social no qual nos encontramos não é assim. Atualmente não existem políticas públicas que deem conta do déficit habitacional. Os dados abaixo demonstram isso:

  • A quantidade de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo passou de 64,8 mil em 2023 para 76,6 mil em 2024.

  • Ao mesmo tempo, o Censo de 2022 contabiliza quase 590 mil imóveis vazios no estado de São Paulo. 

  • Segundo o levantamento do ano 2023, a fila de espera por moradia pela COHAB é de 66.893 famílias.

Sendo este um cenário nefasto das políticas habitacionais, o Estado insiste em despejar e especular ocupações como a nossa, que arcam com a função social que ele negligencia. 

Trazendo essa realidade, podemos nos perguntar: por que tendo tantos imóveis vazios e recursos suficientes para resolver o problema de moradia o governo opta por não resolver e ainda gera maior demanda com o despejo de ocupações? O que há por trás de manter essa parcela da população sem essa condição fundamental, que é o abrigo, há mais de 500 anos? Quão perigoso é para o Estado Neoliberal garantir ou deixar que garantamos esse direito? O que significa que possamos nos organizar como comunidade reforçando laços de solidariedade? Qual é o risco de que a população pobre possa desejar e atingir aqueles objetivos? 

Talvez as respostas se encontrem no fundamental: eles precisam nos manter submetidas e submetidos, já que ignorar um direito constitucional não é apenas uma péssima administração pública, mas sim uma escolha que gera instabilidade emocional e dependência político-social. 

Consequentemente, o fato de nos emanciparmos através da educação e da ação comunitária talvez seja o maior temor desse sistema. Nos querem adormecidas e adormecidos, pois a inserção crítica e a consciência de classe é uma ameaça para as estruturas sociais do modo que as conhecemos. 

Educação horizontal com a responsabilidade comunitária 

Garantir o direito à moradia e forjar laços comunitários entre as pessoas que habitam esse território é uma ação revolucionária dentro dos parâmetros sociais ocidentais estabelecidos. Comunidade e solidariedade são conceitos opostos ao mecanismo de ação de dividir usado pelo sistema para nos responsabilizar pelas problemáticas sociais e assim individualizar nosso adoecimento emocional causado pelas desigualdades estruturais. Porém, quando vivemos e pertencemos a um espaço comum, aqueles paradigmas são, mesmo que de modo inconsciente, contestados. 

Dentro da Ocupação Ouvidor 63, demandas cotidianas como o cuidado das crianças, reformas estruturais, compartilhamento geral do que se tem fazem parte do cotidiano. Necessidades individuais de grande magnitude, que excedem as possibilidades resolutivas da pessoa por si só, são resolvidas ou sustentadas de modo comunitário, através de força-tarefa, eventos em prol dessa causa ou cafeterias.

Considerando que nem todas as pessoas têm os mesmos processos de inserção crítica devido às suas particularidades, cabe à comunidade idear processos de permanente emancipação com o intuito de despertar a consciência coletiva. 

Nesse desenvolvimento coletivo e horizontal, cada pessoa pode se encaixar nas demandas comuns com as quais se sinta mais a fim. Isso gera uma potencialização da força de cada integrante desta comunidade e a possibilidade de permanente crescimento individual, e consequentemente comunitário. Contamos com assembleias gerais semanais e com diversas demandas que abarcam frentes de manutenção estrutural do prédio, jurídica e artístico-cultural; tudo isso é feito e aprendido de modo coletivo num intercâmbio de conhecimentos sem hierarquias. Também temos diversas oficinas e grupos de estudos. 

Esses processos geram uma perspectiva de si dentro da comunidade e em benefício dela, resgatando os conceitos de solidariedade e educação comunitária como mecanismo de resistência e defesa. E, ao mesmo tempo, o sentimento de pertencimento e produtividade para si e para com a comunidade. 

Consciência de si como pessoa e como classe

Exaltar e potencializar as particularidades das pessoas que fazem parte da Ocupação Ouvidor 63 traz força e segurança individual, e consequentemente coletiva. Entender que a situação de moradia nos precede por ser uma ferramenta de controle de massa há séculos e, assim, acioná-la para mitigar esse risco social e resolver essa demanda histórica, que não é só nossa, é uma imensa conquista.

Nós, pessoas que fazemos parte dessa comunidade pluricultural, encontramos denominadores comuns que são a demanda por moradia, por acesso ao centro, por arte e cultura, por uma vida digna que garanta os direitos humanos básicos para termos a possibilidade de sonhar para além do predeterminado para nós, pessoas pobres. 

Temos a potencialidade, a experiência, a vontade e a força, mas não detemos o capital. Por isso, e apesar disso, conseguimos nos unir, lutar e resistir. É nesse exato ponto que nos tornamos um perigo. Quando garantimos por nós mesmas/os o contexto que nos permite ousar a desejar além do mínimo pré-fabricado.

Conclusão

As negligências estaduais quanto aos direitos fundamentais são perpetuadas há séculos. O fim dessa prática é a dominação material sobre as pessoas que não têm a possibilidade econômica de pagar pela garantia de seus direitos. Assim, mantém-se a população presa a desejar e ter objetivos que unicamente arquem com as garantias das necessidades fundamentais, porque torna-se impossível sonhar e ir atrás de uma realidade melhor quando não temos garantia de onde iremos dormir cada noite. Esse mecanismo nos adoece e, consequentemente, nos enfraquece, pois o problema desse adoecimento é seu apenas quando a individualidade e o distanciamento do comum é um dos pilares que sustentam essa estrutura social.

Apesar do descaso estadual, criamos laços, nos solidarizamos, nos educamos comunitariamente e conseguimos ir além do que estava dito para nós. A revolta organizada perante o que não é justo e o que nos é negado traz a inquietude que abre caminho para a inserção crítica individual e comunitária. Mesmo que aquilo nem sempre se manifeste de modo consciente, o que é material, o que é vivido, não tem como ser apagado e a partir daí criamos mecanismos de resistência e defesa. É uma estratégia para sobreviver. 

Movimentação contra despejo da favela do Moinhos Foto: Rose Steinmetz.

mais ensaios

Descubra Sobre Possíveis mundos Pós-Capitalistas

(

1 de out. de 2023

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Emancipação

A ousadia de despertar a consciência de classe: educação comunitária como ferramenta emancipatória

Micaela Yañez

Para pensar a Ouvidor 63 como espaço educativo é necessário visualizar as pessoas dessa comunidade e a forma como elas enxergam o sistema neoliberal de Estado mínimo (consciente ou inconscientemente) e como atuam para construir práticas comunitárias. Tudo isso dentro de um processo de permanente emancipação com o intuito de despertar a consciência coletiva através da educação horizontal como ferramenta emancipatória, considerando que nem todas as pessoas têm os mesmos processos de inserção crítica. Compete à comunidade a construção de uma prática libertadora de modo comum, despertando a consciência de si como pessoa e como classe.

O sistema neoliberal usa como mecanismo a ação de dividir como o oposto à solidariedade, o qual é necessário para alienar. Se a população se sente isolada do resto da sociedade não percebe as questões sociais como consequências de desigualdades estruturais, e sim como resultado do próprio mérito, o que torna muito complexas ações comuns dentro dos próprios territórios ou a união para garantir direitos fundamentais. O fim é individualizar as problemáticas sociais para adoecer a população e assim mantê-la submetida, tanto nas práticas macro — empregos precarizados, falta de acesso à moradia, elitização das academias etc. — como nas práticas micro — a solidariedade, o sentimento de comunidade e a possibilidade de desejar fora do predeterminado. 

O fato de a Ouvidor 63 garantir direitos humanos fundamentais como primeira premissa, dá lugar a repensar os modos de vida, desde o que desejamos até o como atingimos esse desejo. Retomando práticas de ação solidária, coletiva, cultural, e consequentemente atingindo a educação comunitária que busca emancipar as pessoas que aqui habitam.

Como resumo desta introdução ao ensaio, reforço a absoluta relevância de sermos protagonistas representantes da própria história como ação transformadora da realidade material. Mesmo que o processo parta de uma pulsão de emancipação inconsciente, não o torna menos válido. Cabe à comunidade como núcleo de sustento tanto coletivo quanto individual trazer a reflexão da própria materialidade histórica problematizando o contexto macro (a sociedade) e micro (a própria comunidade), com o fim de despertar a consciência individual e de classe para tornar a nossa existência crítica e problematizadora e assim construir novas realidades possíveis

Garantir o direito fundamental à moradia como primeira premissa

Quando menciono que a garantia de direitos humanos fundamentais (em particular a moradia que precede qualquer direito) é uma premissa dentro da Ocupação Ouvidor 63, me refiro a que é preciso ter a possibilidade de sonhar em construir uma consciência comunitária crítica. A segurança de um espaço é a primeira necessidade para pensar na possibilidade de sonhar com qualquer outra realidade. Embora possa parecer um pressuposto básico, no contexto político social no qual nos encontramos não é assim. Atualmente não existem políticas públicas que deem conta do déficit habitacional. Os dados abaixo demonstram isso:

  • A quantidade de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo passou de 64,8 mil em 2023 para 76,6 mil em 2024.

  • Ao mesmo tempo, o Censo de 2022 contabiliza quase 590 mil imóveis vazios no estado de São Paulo. 

  • Segundo o levantamento do ano 2023, a fila de espera por moradia pela COHAB é de 66.893 famílias.

Sendo este um cenário nefasto das políticas habitacionais, o Estado insiste em despejar e especular ocupações como a nossa, que arcam com a função social que ele negligencia. 

Trazendo essa realidade, podemos nos perguntar: por que tendo tantos imóveis vazios e recursos suficientes para resolver o problema de moradia o governo opta por não resolver e ainda gera maior demanda com o despejo de ocupações? O que há por trás de manter essa parcela da população sem essa condição fundamental, que é o abrigo, há mais de 500 anos? Quão perigoso é para o Estado Neoliberal garantir ou deixar que garantamos esse direito? O que significa que possamos nos organizar como comunidade reforçando laços de solidariedade? Qual é o risco de que a população pobre possa desejar e atingir aqueles objetivos? 

Talvez as respostas se encontrem no fundamental: eles precisam nos manter submetidas e submetidos, já que ignorar um direito constitucional não é apenas uma péssima administração pública, mas sim uma escolha que gera instabilidade emocional e dependência político-social. 

Consequentemente, o fato de nos emanciparmos através da educação e da ação comunitária talvez seja o maior temor desse sistema. Nos querem adormecidas e adormecidos, pois a inserção crítica e a consciência de classe é uma ameaça para as estruturas sociais do modo que as conhecemos. 

Educação horizontal com a responsabilidade comunitária 

Garantir o direito à moradia e forjar laços comunitários entre as pessoas que habitam esse território é uma ação revolucionária dentro dos parâmetros sociais ocidentais estabelecidos. Comunidade e solidariedade são conceitos opostos ao mecanismo de ação de dividir usado pelo sistema para nos responsabilizar pelas problemáticas sociais e assim individualizar nosso adoecimento emocional causado pelas desigualdades estruturais. Porém, quando vivemos e pertencemos a um espaço comum, aqueles paradigmas são, mesmo que de modo inconsciente, contestados. 

Dentro da Ocupação Ouvidor 63, demandas cotidianas como o cuidado das crianças, reformas estruturais, compartilhamento geral do que se tem fazem parte do cotidiano. Necessidades individuais de grande magnitude, que excedem as possibilidades resolutivas da pessoa por si só, são resolvidas ou sustentadas de modo comunitário, através de força-tarefa, eventos em prol dessa causa ou cafeterias.

Considerando que nem todas as pessoas têm os mesmos processos de inserção crítica devido às suas particularidades, cabe à comunidade idear processos de permanente emancipação com o intuito de despertar a consciência coletiva. 

Nesse desenvolvimento coletivo e horizontal, cada pessoa pode se encaixar nas demandas comuns com as quais se sinta mais a fim. Isso gera uma potencialização da força de cada integrante desta comunidade e a possibilidade de permanente crescimento individual, e consequentemente comunitário. Contamos com assembleias gerais semanais e com diversas demandas que abarcam frentes de manutenção estrutural do prédio, jurídica e artístico-cultural; tudo isso é feito e aprendido de modo coletivo num intercâmbio de conhecimentos sem hierarquias. Também temos diversas oficinas e grupos de estudos. 

Esses processos geram uma perspectiva de si dentro da comunidade e em benefício dela, resgatando os conceitos de solidariedade e educação comunitária como mecanismo de resistência e defesa. E, ao mesmo tempo, o sentimento de pertencimento e produtividade para si e para com a comunidade. 

Consciência de si como pessoa e como classe

Exaltar e potencializar as particularidades das pessoas que fazem parte da Ocupação Ouvidor 63 traz força e segurança individual, e consequentemente coletiva. Entender que a situação de moradia nos precede por ser uma ferramenta de controle de massa há séculos e, assim, acioná-la para mitigar esse risco social e resolver essa demanda histórica, que não é só nossa, é uma imensa conquista.

Nós, pessoas que fazemos parte dessa comunidade pluricultural, encontramos denominadores comuns que são a demanda por moradia, por acesso ao centro, por arte e cultura, por uma vida digna que garanta os direitos humanos básicos para termos a possibilidade de sonhar para além do predeterminado para nós, pessoas pobres. 

Temos a potencialidade, a experiência, a vontade e a força, mas não detemos o capital. Por isso, e apesar disso, conseguimos nos unir, lutar e resistir. É nesse exato ponto que nos tornamos um perigo. Quando garantimos por nós mesmas/os o contexto que nos permite ousar a desejar além do mínimo pré-fabricado.

Conclusão

As negligências estaduais quanto aos direitos fundamentais são perpetuadas há séculos. O fim dessa prática é a dominação material sobre as pessoas que não têm a possibilidade econômica de pagar pela garantia de seus direitos. Assim, mantém-se a população presa a desejar e ter objetivos que unicamente arquem com as garantias das necessidades fundamentais, porque torna-se impossível sonhar e ir atrás de uma realidade melhor quando não temos garantia de onde iremos dormir cada noite. Esse mecanismo nos adoece e, consequentemente, nos enfraquece, pois o problema desse adoecimento é seu apenas quando a individualidade e o distanciamento do comum é um dos pilares que sustentam essa estrutura social.

Apesar do descaso estadual, criamos laços, nos solidarizamos, nos educamos comunitariamente e conseguimos ir além do que estava dito para nós. A revolta organizada perante o que não é justo e o que nos é negado traz a inquietude que abre caminho para a inserção crítica individual e comunitária. Mesmo que aquilo nem sempre se manifeste de modo consciente, o que é material, o que é vivido, não tem como ser apagado e a partir daí criamos mecanismos de resistência e defesa. É uma estratégia para sobreviver. 

Movimentação contra despejo da favela do Moinhos Foto: Rose Steinmetz.

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