Ouvidor 63: IPHAN

O processo de pedido de registro e proteção junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)

(Ano)

2023

(Descrição)

IPHAN

Ouvidor 63:

Registro com IPHAN

O projeto de pesquisa Unifesp/Fapesp/Ouvidor abriu diversas frentes de colaboração, como a tentativa de proteção do centro cultural, reconhecendo seu valor como lugar de cultura imaterial em São Paulo e até mesmo internacionalmente. O debate teve início no grupo jurídico da ocupação, que também avaliava as diferentes formas de resistência ao risco de despejo. 

Nosso objetivo era trazer elementos não apenas para a defesa jurídica da ocupação, mas também para demonstrar a sua relevância político-cultural, como lugar de referência para trocas e apresentações artísticas, que atrai artistas de diversas partes do mundo e um amplo público. Completando 10 anos de existência (2014-2024), é possível afirmar que a Ouvidor 63 já se enraizou, estabeleceu colaborações diversas e abre as portas para inúmeras iniciativas culturais, sociais, ambientais, entre outras.

Em outubro de 2023, o Prof. Pedro Arantes aconselhou prepararmos um pedido de registro e proteção da Ouvidor 63 como patrimônio histórico. A partir daí, criamos um grupo de trabalho, ouvimos diversos profissionais e apoiadores, e iniciamos a pesquisa e a redação do texto. 

A equipe da pesquisa propôs então algumas conversas com especialistas para definirmos nossa estratégia no pedido de proteção. Havia uma indecisão sobre a modalidade e o nível de proteção para os quais deveríamos fazer o pedido, em qual órgão e com qual justificativa. Por exemplo, não nos interessava o tombamento arquitetônico do prédio em si, pois a proteção é muito mais ao uso e modo de vida do que ao edifício físico. Dentre as modalidades de proteção e registro imaterial, também existiam diversas possibilidades que precisavam ser avaliadas.

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Ortofoto de São Paulo em 2020 com destaque para a Rua do Ouvidor e o lote 63. Fonte: Geosampa com marcação nossa.

Nesse período preparatório, conversamos com os arquitetos Fernando Almeida (ex-presidente do IPHAN) e Érica Diogo (atual coordenadora geral do Instituto), com a diretora do IPHAN de São Paulo, Olivia Malfatti, e com o historiador do órgão que cuida do processos de proteção imaterial, Evandro Domingues. Também tivemos conversas com dois professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Raquel Rolnik e Renato Cymbalista, e com a coordenadora de patrimônio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU-SP), Bruna Fregonezi. 

Foram vários meses de pesquisa documental e elaboração dos textos, com algumas informações que remontam a séculos, pois, para além da situação atual, pretendemos compreender e caracterizar a ocupação territorial de mais longa duração, seus sujeitos, as práticas e edificações, a formação de um trecho da paisagem material e da cultura imaterial de São Paulo. Reproduzimos aqui um trecho da justificativa: 

A Ouvidor 63 exemplifica a continuidade histórica e a recriação cultural que caracterizam um "lugar" de importância cultural imaterial. As atividades realizadas neste espaço, desde reuniões comunitárias e mutirões até expressões artísticas variadas, são práticas que se adaptam e evoluem com o tempo, sempre em resposta ao ambiente e à história do local. Este processo de recriação constante promove um sentimento de identidade e continuidade, inclusive com o prédio, a rua e o bairro, essencial para a manutenção da diversidade cultural. (Parte do texto de pedido ao IPHAN, p. 11). 

Pessoas sentadas no chão

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaMulher com criança no colo

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaPessoas sentadas em banco

Descrição gerada automaticamente

Uma das reuniões preparatórias do pedido de proteção, com a presença de Renato Cymbalista (FAU-USP), Bruna Fregonezi (CAU-SP), o advogado Augusto Luiz, equipe da Unifesp e artistas-moradores. Fotos: Pedro Arantes.

Em agosto de 2024, a Assembleia Geral da ocupação confirmou o interesse na ação e o teor geral do texto, entendendo que esta seria uma boa opção para preservar as diversidades culturais e os processos coletivos que fazem parte da identidade da Ouvidor 63. 

Nosso pedido foi protocolado ainda em agosto de 2024 e recebeu cartas de apoio do LabCidade FAU-USP, do Deputado Eduardo Suplicy, do mandato coletivo Quilombo Periférico, do curso de Direito da USP, do curso de História da Arte da Unifesp, do Grupo Tortura Nunca Mais, entre outros. O CAU-SP também emitiu posicionamento favorável. O processo já passou pela diretoria de Brasília e de São Paulo, foi recebido e distribuído na área técnica pertinente, e atualmente se encontra em tramitação interna no IPHAN. 

Selecionamos para esta publicação dois trechos do material enviado ao IPHAN: o histórico do lugar e a justificativa do pedido. Ambos apresentam os resultados mais significativos da colaboração entre a equipe de pesquisa da Unifesp/Fapesp/Ouvidor, artistas-moradores e do advogado que assessora a ocupação. 

EXCERTOS DO PEDIDO DE REGISTRO DA OUVIDOR 63 NO IPHAN

Histórico do lugar

A Ocupação Ouvidor 63 está localizada no declive da baixada do Ribeirão Itororó, próximo à sua confluência com o Ribeirão Anhangabaú, ambos atualmente canalizados e cobertos. No passado, essa área formava um grande charco, que fazia parte da Chácara do Bexiga. Com o tempo, a região foi drenada e pavimentada, dando origem à atual Praça da Bandeira e ao terminal de ônibus. Originalmente, essa terra era habitada por povos indígenas, principalmente os tupiniquins e guaranis. Com a chegada dos portugueses no século XVI e das missões religiosas (jesuítas, franciscanos, beneditinos e carmelitas), esses povos entraram em um regime de guerra, resultando em conflitos sangrentos, como o cerco de Piratininga, que está intimamente ligado à fundação de São Paulo.

Na cidade colonial, a região onde está a Ouvidor 63 se consolidou como território urbanizado em torno da Igreja e do Convento de São Francisco e seu Largo, com as primeiras construções datadas de 1647. O complexo arquitetônico é um exemplo notável do estilo barroco brasileiro, com rica decoração interna e elementos artísticos que refletem a influência dos estilos europeus adaptados às condições locais.

Foto preta e branca de uma igreja

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Convento e Largo de São Francisco em 1860. Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Largo_do_Capim-Largo_S%C3%A3o_Francisco_%28SP,_1860%29.jpg

No fim do século XVIII foi construída, pelo governador Lorena, uma ponte sobre o Ribeirão Anhangabaú no caminho de descida do Largo de São Francisco para o outro lado do vale, de onde chegavam tropeiros, com víveres e escravos. A ponte foi posteriormente batizada de Ponte dos Piques (mesmo nome da atual passarela que desemboca à frente do Ouvidor 63, cruzando a Praça e o Terminal Bandeira), ligando a cidade velha ao mercado de escravos e de víveres que se estabeleceu no Largo dos Piques (depois chamado de Largo da Memória). 

 

Desenho de personagens

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Mercado de escravos no Largo dos Piques e obelisco ao fundo. Desenho a nanquim (autor ignorado). Fonte: https://saopauloantiga.com.br/o-largo-do-piques-e-o-obelisco/

Foto em preto e branco de tanque de guerra

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Largo dos Piques com seu obelisco em 1862, com vista ao fundo da ladeira do Ouvidor e da Igreja de São Francisco. Fonte: https://www.paulistando.com.br/2015/12/painel-de-azulejos-do-largo-da-memoria.html

Recentes pesquisas divulgadas em evento no museu de culturas indígenas da cidade acrescentam ainda à biografia o registro de que pela ladeira da Ouvidor 63 passa o histórico-mítico caminho Peabiru. A notícia foi recebida com grande satisfação pelas/os ocupantes, que reivindicam diversos elementos filosóficos originários, como as formas não proprietárias de relação com a criação, com o território e com a natureza.

A poucos metros da Ouvidor, em 1827, foi criada a Faculdade de Direito de São Paulo no convento desativado, a primeira do Brasil, sendo um marco na história da educação jurídica do país. A faculdade tornou-se um centro de formação de importantes figuras políticas, jurídicas e culturais do Brasil e trouxe para a região estudantes, escritórios de advocacia e prédios de escritórios e da administração estatal. Atualmente a renomada faculdade mantém próxima parceria com a Ouvidor 63, através de seu Serviço de Apoio Jurídico Universitário dedicado à legislação urbanística e afins (Saju-Cidades), cuja parceria foi reativada após atividades na ocupação realizadas pelos estudantes durante a última greve universitária. Uma das linhas de atuação conjunta é a educação para uma cidade antirracista.

Foto preta e branca de uma igreja

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Faculdade de Direito no final do século XIX, ao lado do complexo franciscano. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Faculdade_de_Direito_da_Universidade_de_S%C3%A3o_Paulo

Assim, a paisagem onde se insere o edifício Ouvidor 63 conecta várias dimensões e camadas históricas: a tomada de terras indígenas pela colonização portuguesa, com a chegada das ordens religiosas, a urbanização de taipa e depois de tijolo, comércio e escravidão. Abriga até hoje o complexo arquitetônico franciscano e a primeira e mais importante escola de Direito do país formando quadros para o Brasil Independente (do Império à República). É também a história do domínio da natureza na transposição e depois canalização dos ribeirões Itororó e Anhangabaú, e drenagem do charco para uma praça e um terminal de transportes. E ainda envolve, mais diretamente, na história do terreno e da construção do edifício, um Barão, seus sucessores, um esperto incorporador imobiliário, um engenheiro-pintor, uma desapropriação pública discutível, o abandono nos anos 1990 e duas grandes e longas ocupações por movimentos sociais, até o presente. 

Chegamos agora à escala da rua. O logradouro hoje conhecido como Rua do Ouvidor foi chamado de “Ladeira do Bexiga”, pois era o caminho que levava à Chácara do Bexiga, localizada onde hoje se encontra a Praça da Bandeira. Em 1865, o nome foi alterado para “Ladeira de Santo Amaro”, devido ao fato de que, ao ultrapassar a atual Praça da Bandeira, chegava-se à Rua Santo Amaro, pelo caminho dos Piques.

A população, contudo, frequentemente se referia ao trecho como “Ladeira do Ouvidor”, pois ficava próximo à antiga Rua do Ouvidor, que corresponde à atual Rua José Bonifácio. Foi somente em 1930 que a “Ladeira de Santo Amaro” recebeu oficialmente o nome de Rua do Ouvidor. A primeira Rua do Ouvidor (atual Rua José Bonifácio) ganhou esse nome porque, no século XVII, nela residia o primeiro ouvidor de São Paulo, o Dr. Antônio Luís Peleja, nomeado em 1699. 

No século XIX, o ouvidor era uma autoridade judicial e administrativa no Brasil, responsável pela aplicação da justiça, administração de vilas e cidades e fiscalização das atividades públicas e privadas. Em São Paulo, o ouvidor desempenhava um papel crucial na manutenção da ordem pública e na implementação das leis coloniais e imperiais, atuando como juiz em causas cíveis e criminais, supervisionando a administração pública e fiscalizando o comportamento dos moradores. Nomeados pelo rei de Portugal ou pelo imperador do Brasil, os ouvidores tinham autonomia significativa em suas decisões e eram essenciais para garantir o cumprimento das ordens do governo central nas províncias e vilas afastadas.

O Largo de São Francisco também recebe o nome de Praça Ouvidor Pacheco e Silva. José Correia Pacheco e Silva foi ouvidor e político brasileiro, conhecido por ser membro do triunvirato que governou provisoriamente a província de São Paulo logo após a independência do Brasil. Ele desempenhou um papel significativo na administração e na justiça de São Paulo durante o início do século XIX. 

A Rua do Ouvidor também foi um local importante por abrigar, na esquina com a atual rua José Bonifácio, o “Paço do Concelho” (local aproximado do atual edifício da Secretaria de Segurança Pública). O Paço continha, no andar superior, a Câmara e, no térreo, uma cadeia e um açougue. As sessões da Câmara Municipal foram realizadas nesse local até 1870, quando o prédio começou a ruir.

Foto preta e branca de uma casa

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“Paço do Concelho” em 1862 (foto de Militão de Azevedo). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pa%C3%A7o_Municipal,_F%C3%B3rum_e_Cadeia_de_S%C3%A3o_Paulo,_1862

Na Rua do Ouvidor também situava-se a residência do Barão (Francisco Antônio) de Souza Queiroz, uma figura proeminente da história política de São Paulo. Foi vereador, deputado provincial, deputado geral, presidente interino da Província de São Paulo e senador do Império do Brasil, de 1849 a 1891. E é nas terras do Barão que foi construído o edifício que abriga o centro cultural Ouvidor 63.

Mapa

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Planta de São Paulo em 1930 com destaque para a Rua do Ouvidor e o lote 63. Fonte: Geosampa, com marcação nossa.

Chegamos agora à escala do lote. O prédio cuja história acompanhamos foi construído no local em que existiam duas casas geminadas (ou anexas), na antiga Ladeira de Santo Amaro, nos números 3 e 5, provavelmente construídas na segunda metade do século XIX. A família do Barão Souza Queiroz era dona de diversos imóveis na Rua do Ouvidor. As casas foram originalmente do casal Frederico de Souza Queiroz (filho do Barão) e sua esposa, Augusta Fleury de Souza Queiroz (em nome de quem consta a titulação dos imóveis). Em 1919, a família Souza Queiroz vendeu as duas casas para Joaquim dos Santos Azevedo e esposa, que lá residiram por quase 30 anos. As casas foram então compradas para demolição e edificação do prédio em 1948 por Luiz Barata Ribeiro, Henrique Mazzei, pela construtora Dabague e pela Hidro Eletro Brasil Ltda. (conforme dados da certidão centenária). 

Foto preta e branca de uma casa

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Rua do Ouvidor esquina com o Largo/Rua Riachuelo em 1939. Fonte: https://br.pinterest.com/pin/548805904573350916/ 

Luiz Barata Ribeiro era um empresário que atuava em diferentes ramos, inclusive como empreendedor imobiliário (segundo matéria de 1937, do Correio de S. Paulo). Foi contratado para o projeto do edifício o engenheiro civil Arthur Ferreira dos Santos, a execução a cargo da construtora Dabague & Celeste Ltda. e as instalações pela Hidro Eletro Ltda., ambas compradoras das casas à venda. As plantas legais foram aprovadas em março e a obra recebeu alvará de construção em abril de 1948. 

Texto

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Aprovações da Prefeitura e alvará de construção do edifício em 1948. Fonte: coleta documental no acervo da Prefeitura pela equipe da Unifesp.

O prédio da Ouvidor 63 foi inicialmente concebido como edifício de escritórios e projetado pelo engenheiro civil Arthur Ferreira dos Santos, formado no Mackenzie College nos anos 1920 e também pintor amador. Nos anos 1970, interessado com o progressivo uso de estruturas metálicas no Brasil, torna-se especialista na área, ministra cursos no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e escreve um livro de 500 páginas, pioneiro no Brasil, e que se torna referência na área, intitulado Estruturas Metálicas: Projeto e Detalhes para Fabricação, publicado em 1977 pela editora McGraw Hill do Brasil.

O edifício por ele projetado ocupa um terreno de 16,9 m de frente e 21,6 m de fundos, num total de 358 m2. Conforme planta legal e alvará de construção (16.693/1948)  a área construída é de 3.439 m2. Em levantamento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), o edifício tem área construída menor, de 2.913,17 m2 e 2.100,00 m2 no cadastro municipal Geosampa. Apenas a execução de um levantamento as-built permitiria a aferição exata.  A certidão que indica a desapropriação pelo Estado de São Paulo em 1950 não apresenta a metragem do edifício, apenas do lote.

Diagrama, Esquemático

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Fachada e corte do edifício com as varandas escalonadas. Fonte: desenhos originais obtidos e escaneados pela equipe da Unifesp junto ao acervo histórico da PMSP.

O edifício é alinhado com a Rua Ouvidor e conta com subsolo, térreo e 13 andares, com área de piso variando de 296 m2 a 61 m2 cada um. A partir do sétimo pavimento, a fachada frontal tem recuos frontais formando terraços. O Código de Obras de São Paulo de 1934 estabeleceu regras detalhadas sobre recuos e coeficientes de aproveitamento do solo. Essas normas foram inspiradas em legislações estrangeiras, como a de Nova York (Zoning Resolution de 1916), que já previa a redução gradual da área construída à medida que o edifício ganhava altura, criando o famoso efeito de “degraus”. Essa configuração permitia maior entrada de luz e circulação de ar tanto para as vias públicas quanto para os imóveis vizinhos. Além disso, essas regulamentações estavam alinhadas com as preocupações higienistas do período, que buscavam controlar os efeitos do adensamento e da urbanização acelerada. 

Com 13 andares, o gabarito do prédio não é de um arranha-céu, evidentemente, pois tem 40 metros de altura. O térreo foi projetado como “loja” (o que denominamos hoje de “fachada ativa”), com dois acessos independentes, além da entrada para o subsolo. Os demais andares foram concebidos como salões de escritório, com espaço amplo frontal, bem iluminado por janelas do piso ao teto e estrutura independente (planta livre). A torre hidráulica posterior  abriga banheiros, área de serviço e pequena copa de apoio e tem um amplo fosso de ventilação, iluminado. As empenas laterais são cegas (paredes sem janelas no alinhamento do lote), como previa a legislação à época (Código de Obras de 1934), permitindo que edifícios vizinhos encostassem uns nos outros, sem a necessidade de recuos laterais (hoje não mais permitido).  

Diagrama, Esquemático

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Planta do térreo e subsolo. Fonte: equipe da Unifesp junto ao acervo histórico da PMSP.

Em fevereiro de 1950, o edifício recém-concluído, sem ter tido nenhum usuário, foi desapropriado de forma amigável pela Fazenda do Estado de São Paulo. Não temos informações se o edifício já foi planejado e construído pelo empreendedor desde o princípio com esse propósito: a venda indireta para o Estado. Uma vez que não era obra pública nem encomenda pública, não foi licitada nem leiloada, a adoção da desapropriação de edifício recém-construído para instalação de escritórios administrativos de secretarias do Estado merece reflexão. Seria esta uma estratégia patrimonialista de Luiz Barata Ribeiro para remuneração de seu investimento, sem os procedimentos mais republicanos de planejamento, licitação e construção de edifícios públicos? Parece haver aí a oportunidade de uma promiscuidade público-privada. 

Foto preta e branca de uma cidade

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Prédio da Ouvidor 63 (à direita) recém-construído, em meio ao maciço de edifícios visto à partir da Praça da Bandeira, anos 1950 (foto de Werner Haberkorn). Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/ac/Werner_Haberkorn_-_Vista_parcial_da_Pra%C3%A7a_da_Bandeira._S%C3%A3o_Paulo-SP.jpg

Iniciado o uso do edifício pela administração pública, ainda não temos claro quais secretarias de fato ocuparam o edifício e quando, o que exigirá uma rodada de investigação adicional nos registros históricos do Governo do Estado de São Paulo que permitiriam informações mais completas e detalhadas. O que obtivemos de informação até o momento (decretos diversos e extrato histórico obtido junto ao Governo por meio da Lei de Acesso à Informação) é que o prédio foi gerido pelo Departamento de Administração e abrigou atividades de diferentes Secretarias. 

Diagrama

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Planta de São Paulo em 1954 com destaque para a Rua do Ouvidor e o lote 63. Fonte: Geosampa, com marcação nossa.

Em 1968, o Decreto nº 49.217 transfere o edifício para a Secretaria de Promoção Social (futura Secretaria de Desenvolvimento Social). Em 1985, o edifício mudou de mãos e foi entregue à Secretaria de Cultura (Decreto nº 24.203/1985). Não há registro da data de desocupação pela Secretaria de Cultura, cuja sede, naquela época, ficava no Palácio dos Campos Elíseos (antigo Palacete Elias Chaves). Em 1999, a Secretaria da Cultura foi definitivamente instalada na Estação Júlio Prestes, no complexo da Sala São Paulo. Mas o prédio seguiu nominalmente com essa Secretaria até 2007, como veremos adiante.   

Nos anos 1990, o imóvel permaneceu vazio e em estado de deterioração. Em 1997, numa onda de ocupações de imóveis abandonados no Centro de São Paulo, o edifício foi ocupado pelo Movimento de Moradia Centro (MMC). O Movimento permaneceu no local por oito anos. Após diversas rodadas de negociação, em 2005, 89 famílias foram atendidas pelo Programa de Atuação em Cortiços (PAC) da CDHU e receberam cartas de crédito, ajuda de custo ou foram realocadas para outros projetos habitacionais (na Moóca). 

Na sequência, o prédio seguiu novamente sem uso e ocupação pelo Governo do Estado. Em 2007, o edifício foi então destinado à Secretaria de Habitação (Decreto nº 52.473), endereçado para promoção de Habitação de Interesse Social (HIS). Passados dois anos sem qualquer avanço, em 2009, novo decreto (nº 54.409) permitiu não apenas HIS, mas também outras modalidades e programas habitacionais, momento em que foi analisada sua utilização como Moradia Provisória para Policiais Militares. O projeto do Estado novamente não avançou. Diante da suposta “inviabilidade econômica para a utilização para HIS”, a Fazenda do Estado revogou os decretos que vinculavam o imóvel à habitação. Em 2013, autorizou a sua destinação (Decreto nº 58.847) à Universidade Estadual Paulista (Unesp), numa permissão gratuita de uso do imóvel por 99 anos para implementar um Centro de Cultura e Divulgação Científica. Contudo, a universidade estadual não tomou providências concretas, nem administrativas. 

Sem uso e ocupação desde 2005, o prédio seguia deteriorando, acumulando lixo e não cumprindo a função social da propriedade.  Em maio de 2014, artistas sem-teto ou que estavam noutras ocupações, como a Casa Amarela, ocuparam o imóvel e permanecem no local até o presente, constituindo o Centro Cultural Ouvidor 63.  Dada a incapacidade do governo de utilizar o prédio para moradia de interesse social e/ou para cultura, coube aos artistas-ocupantes realizar, desde então, há uma década, essa implementação, de forma autogerida, solidária e aberta ao público, com atividades gratuitas diversas. 

Em junho de 2014, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo é aprovado (Lei nº 16.050/2014) e, entre outras providências, define o prédio e a esquina contígua como Zonas Especiais de Interesse Social 3 (ZEIS-3). O objetivo principal das ZEIS-3 é a recuperação de áreas urbanas deterioradas e o aproveitamento de imóveis subutilizados ou ociosos para a produção de habitação social e melhorar a qualidade de vida dos moradores, facilitando o acesso à infraestrutura urbana e serviços essenciais.

Em 2016, mesmo com o prédio ocupado pelos artistas, o Governo do Estado tentou vender o imóvel por leilão, sem interessados. 

Desde 2014 o Governo estadual mantém processo de reintegração de posse. A ação nº 1025334-69.2014.8.26.0053 foi ajuizada pelo Estado de São Paulo, tramitando na 8ª Vara de Fazenda Pública. Os moradores contestaram e interpuseram recursos, obtendo a sucessiva suspensão do mandado de reintegração de posse, com expressivo apoio do Ministério Público de São Paulo (MPSP) e da Defensoria Pública de Habitação. 

Atualmente, ambas as instituições sustentam a invalidade do processo reintegratório, especialmente diante dos 5 anos de negociações já estabelecidos desde que, em 2019, a comunidade da Ouvidor 63 passou a se fazer presente nos autos da ação civil pública (ACP) nº 1020523-90.2019.8.26.0053, que tramita na 4ª Vara da Fazenda Pública.

Essa ACP conecta-se de maneira determinante à história da cidade, pois faz parte de um conjunto de dezenas de ações iniciadas pelo MPSP para avaliação de risco de incêndio, após o trágico colapso do Edifício Wilton Paes de Almeida no Largo do Paissandu em 1º de maio de 2018, com diversas mortes e desaparecimentos.

No processo que buscou averiguar a segurança de seu edifício, a Ouvidor 63 não apenas satisfez todas as perícias e vistorias como reivindicou uma discussão aprofundada sobre a segurança humana das pessoas ocupantes, apresentando nesse processo, ao longo de diversas audiências públicas com a presença de múltiplos atores da área da cultura e habitação (legisladores, secretários, centros culturais, universidades) uma nova proposta de contrato com o Estado, ainda pendente de melhor apreciação, que busca atender à salvaguarda da cultura e formas de organização presentes na comunidade. 

Nesse sentido, a Ouvidor 63 desdobrou-se desde 2019 em esforços coletivos para constituir um GT jurídico autônomo que atua em parceria com a Defensoria Pública, o Serviço de Assistência Jurídica Universitária (SAJU), Consultorias de Universidades e Centros de Direitos Humanos e que se reúne semanalmente há anos com um advogado popular voluntário para planejar e realizar atos como a constituição de uma aparentemente inédita associação horizontal e não  presidencialista (com árduos, mas bem-sucedidos registros junto à receita federal e órgãos afins), campanha de investigação internacional sobre novos moldes de relação com o território em ocupações artísticas e edição dos mais variados tipos de ofícios para estabelecimento de relações comunitárias locais.

Cadastro com dados do edifício Ouvidor 63. Fonte: sistema Geosampa.



Justificativa do pedido de proteção

A Ocupação Cultural Ouvidor 63, localizada no coração da metrópole de São Paulo, representa um rico e multifacetado patrimônio imaterial, abrigando uma diversidade de manifestações culturais, históricas e políticas que moldaram esse lugar ao longo de décadas. É, atualmente, a maior ocupação cultural da América Latina, tem recebido amplo público e merecido atenção da mídia, de universidades, instituições culturais e vídeo-documentaristas como um espaço único e marcante na cidade.  

O prédio da rua Ouvidor 63, com 13 andares escalonados e um subsolo, foi originalmente um edifício de escritórios, projetado pelo engenheiro civil Arthur Ferreira dos Santos e construído entre 1948 e 1949 por iniciativa do empreendedor Luiz Barata Ribeiro, como já apresentado no histórico. Com a obra recém-concluída, o edifício não foi alugado ou vendido, mas desapropriado em 1950 pela Fazenda do Estado de São Paulo. Com seus salões comerciais utilizados pela administração pública até o fim dos anos 1980, o prédio abrigou órgãos de diferentes secretarias, incluindo a Secretaria da Cultura. Nos anos 1990, o prédio ficou desocupado e sem destinação pelo Governo do Estado de São Paulo. 

A partir de 1997, tornou-se um ícone de resistência popular e expressão política, quando foi ocupado pelo Movimento de Moradia Centro (MMC). Até 2005, o MMC utilizou o espaço como uma base para a luta pelo direito à moradia e à cidade, em um momento crucial para a organização popular e a mobilização social em São Paulo. O período de ocupação pelo MMC foi marcado por intensas atividades de formação, organização e ação política, com assembleias regulares, manifestações e uma série de eventos culturais que visavam conscientizar e engajar a comunidade na luta por direitos e cidadania. 


Ocupação do prédio nos anos 1990 pelo MMC, faixa na porta de entrada, com o arquiteto Lucas (à esquerda), e líder Gegê em entrevista para a TVT (à direita). Fonte: MMC e TVT.

Em 1999, o MMC firmou parceria com a Universidade de São Paulo (Poli e FAU) e o Politécnico de Torino, além de ONGs (como Polis, Gaspar Garcia, Usina e Peabiru) para criação de um laboratório de projetos de reconversão de edifícios históricos e cortiços do centro de São Paulo, com estudo de caso e proposta de intervenção no Ouvidor 63. Tal ação, pioneira e emblemática, que se tornou um marco para a história da habitação social no centro de São Paulo, foi relatada em livro (Laboratório de Projeto Integrado e Participativo para Requalificação de Cortiço. São Paulo: FAU/USP, 2002, depois republicado pela Annablume), artigos e em audiovisual. O MMC também mantinha grupos de estudos e extensão no local, como o de leitura de O Capital, de Karl Marx, com os estudantes do centro acadêmico (GFAU-USP) e o Prof. Hector Benoit, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp).

Capas das duas edições do livro do Laboratório Integrado na Ouvidor 63


A ocupação do edifício da rua do Ouvidor pelo MMC, por cerca de 90 famílias, não apenas trouxe visibilidade para a questão da moradia, mas também integrou a cultura como uma ferramenta de resistência e transformação social, criando um ambiente de autogestão popular potente e criativo. Mesmo não conseguindo a reforma do edifício da Ouvidor para sua permanência, após diversas rodadas de negociação, em 2005, as famílias foram atendidas pelo Programa de Atuação em Cortiços (PAC) da CDHU, receberam cartas de crédito, ajuda de custos ou foram realocadas para outros projetos habitacionais na Moóca. 

Após o ciclo de ocupação pelo movimento de luta por moradia, o edifício passou novamente por uma fase de abandono pelo Governo do Estado.  Sem que a Secretaria de Cultura tomasse qualquer iniciativa, o edifício foi destinado por decreto para a Secretaria de Habitação, em 2007. Na forma de protesto contra a falta de resposta habitacional e reforma do edifício, a Central de Movimentos Populares (CMP), o Movimento de Moradia Centro (MMC) e o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) ocuparam simbolicamente o prédio por um dia em outubro de 2007.

Prédio na rua

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Ocupação por 1 dia pelos movimentos de moradia em 2007. Fonte: https://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL154700-5605,00-SEMTETO+INVADEM+PREDIO+NO+CENTRO+DE+SP.html

Passados mais seis anos sem que nada de concreto ocorresse, em 2013 houve nova destinação, para a Universidade Estadual Paulista (Unesp) instalar no local um Centro de Cultura e Divulgação Científica, e novamente nada saiu do papel.

Dada a incapacidade do governo em utilizar o prédio para moradia de interesse social ou cultura, coube aos artistas-ocupantes realizar essas duas destinações de uso, de forma autogerida, horizontal, solidária e aberta ao público. No dia 1º de maio de 2014, Dia do Trabalhador, ocorreu então a ocupação de “residência (e resistência) artística”, e que dura até hoje. O edifício passou a ser um espaço de criação artística e cultural, conhecido como Ocupação Cultural Ouvidor 63, onde mora, trabalha, produz arte e espetáculos uma população flutuante de cerca de cem artistas. 



Documentação da ocupação cultural em agosto de 2024 para o pedido de proteção junto ao IPHAN. Fotos: Rose Steinmetz.

Nos últimos dez anos, o prédio tem sido um vibrante centro de diversidade cultural, abrigando artistas de várias regiões do Brasil, da América Latina e do mundo. Esse ponto de encontro único revelou-se particularmente importante para a convergência de culturas afro-diaspóricas e indígenas, refletindo a rica trama cultural do nosso continente. Artistas de grandes centros urbanos como Bogotá, Buenos Aires, Santiago, Lima e Porto Alegre, além de São Paulo, e vindos de áreas rurais e do interior, de florestas e montanhas, contribuíram para um diálogo intercultural dinâmico e outros modos de vida que permeiam a ocupação, numa perspectiva decolonial. 

A Ouvidor 63, além de garantir o direito fundamental à moradia aos que lá residem, é um palco plural das lutas dos movimentos sociais e um centro de intercâmbio cultural nacional e internacional em que pessoas encontram novas possibilidades de criação e organização, de forma autogestionária e horizontal, com assembleias comunitárias semanais, coletivos diversos e grupos organizados por projetos e ações. Os artistas-moradores mantêm ateliês, bibliotecas, espaços para ensaios, oficinas e apresentações em todos os andares, em conjunto com cozinhas, lavanderias e outros espaços comunitários.

Nesse oásis de fertilidade criativa à beira do rio Anhangabaú, os artistas promovem diversas atividades culturais gratuitas, como espetáculos, oficinas, laboratórios, exposições, saraus, desfiles e performances, além de grupos de estudo, cultivo de plantas, encontros culinários e ações sociais, como o projeto Circo Social. Realizam festivais anuais e apresentações frequentes em diversas linguagens artísticas, como teatro, música, circo, dança, poesia, audiovisual, tatuagem, artes plásticas, moda, editoras independentes etc. A Ocupação Ouvidor 63 e sua programação sociocultural foram reconhecidas pelo Edital nº 49/2018 da Política Nacional de Cultura Viva no Estado de São Paulo, tornando-se “Ponto de Cultura”.

Destaca-se que os espaços de troca e aprendizado são permanentes entre artistas e o público interessado, funcionando como uma Escola Livre de Artes, com diversas linguagens e metodologias de ensino, aprendizado e colaboração. Com o intercâmbio de saberes, referências e técnicas, é frequente que os artistas, nas mais diversas fases de seu aprendizado, tornem-se mais abertos à inovação criativa, ao cruzamento de linguagens e referências multiculturais e transtemporais. 

Os recursos eventualmente coletados, em atividades, fomento e venda de obras, ou por doações, são utilizados como prática de economia solidária, permitindo manutenções e reformas no prédio através de mutirões e aprendizado cotidiano (inclusive formando uma escola de construção civil). Com isso, o prédio recebe melhorias frequentes e não apresenta qualquer risco estrutural, mantendo atualizadas suas instalações elétricas e hidráulicas sempre que possível. 

As práticas solidárias, marcadores raciais fenotípicos e atitudinais, e modos de afetos no viver junto se estendem a diversas outras esferas da vida, como o cuidado e o apoio a mães e mulheres ou a quem tem enfrentado dificuldades e vulnerabilidades diversas — a Ouvidor 63 também abriga uma grande comunidade de artistas LGBTQIAP+. O grupo estabeleceu práticas de mediação de conflitos e tem regras para eventual exclusão de pessoas que cometerem ações não aceitáveis pelo grupo.

A Ouvidor 63 mantém ações ambientais relevantes, coletando, reciclando e utilizando materiais descartados em suas atividades, performances e obras. A reciclagem é determinante na segurança alimentar dos artistas-moradores, que coletam doações de alimentos, especialmente em feiras de rua e comércios, preparando comidas vegetarianas e veganas a partir de tradições e receitas latino-americanas. 

O grupo ainda mantém práticas de cultivo e acervo de sementes tradicionais, com plantas (incluindo plantas alimentícias não convencionais — PANCs) e hortas comunitárias em vários andares, terraços e na cobertura. Inscritas no programa “Sampa+Rural”, as hortas compõem uma frente ampla de estudos sobre a relação com a natureza, segundo as cosmopercepções ancestrais presentes na ocupação. Atualmente, a Ouvidor 63 reivindica, em contato com o precedente do “Corredor Verde do Butantã”, atenção dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Cultura de Paz e da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, para sua prática de reflorestamento de ruas, corações e mentes.

Tudo isso permite minimizar as trocas monetárias e a dependência por dinheiro e renda. As redes e práticas de solidariedade promovem modos de vida comunitários que são menos pressionados por demandas externas, encomendas, assalariamento ou outras formas de trabalho subordinado. Nesse contexto de grande autonomia em relação ao sistema vigente, as práticas artísticas inovadoras florescem. Esse território aberto, múltiplo e único se torna um espaço fértil para atividades livres e uma imaginação coletiva sem fronteiras, representando um verdadeiro “comum” em que a criação e a convivência se entrelaçam de maneira emancipadora.

Por isso, a Ouvidor 63 é mais do que apenas um local físico. É um espaço único de confluência de linguagens, práticas e saberes, um lugar vibrante e único, na integração entre arte e modos de vida, na construção de outros mundos possíveis. Através de exposições, performances, oficinas e debates, o espaço promove uma interação viva entre diferentes formas de expressão cultural e artística não hegemônicas.

Mostrando o interesse e a relevância pela experiência que ocorre na Ouvidor, já são 34 trabalhos acadêmicos (ou 49, incluindo o período de ocupação do MMC) e uma dezena de filmes-documentários de média e longa metragem (dois deles em cartaz em São Paulo atualmente), além de diversas reportagens na mídia impressa, digital e audiovisual. A Ouvidor 63 também tem mantido diversas parcerias e espetáculos com instituições culturais, como o SESC, uma exposição em preparação no Memorial da Resistência (antigo DOPS), além de colaboração intensa com instituições de ensino e pesquisa, como a Unifesp, a USP e a Fapesp (que financia projeto de pesquisa na ocupação com duração de 2 anos). 

A preservação da Ocupação Cultural Ouvidor 63 como Lugar relevante no “Livro de Registro dos Lugares” é crucial para valorizar as práticas culturais e organizativas que definem a própria natureza singular desse espaço de autogestão popular, produção artística e imaginação social. O reconhecimento oficial protegeria tanto o patrimônio material quanto o imaterial do local, para que continue a ser um ponto de referência para a cultura urbana e a invenção social em São Paulo e no Brasil.

De acordo com a Convenção Internacional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ratificada pelo Brasil em 2006, o patrimônio cultural imaterial inclui “lugares culturais” que são reconhecidos por comunidades e grupos como parte integrante de seu patrimônio cultural. A Ouvidor 63 é um desses lugares, servindo como ponto de convergência para diversas expressões culturais e sociais. 

A Ouvidor 63 exemplifica a continuidade histórica e a recriação cultural que caracterizam um “lugar” de importância cultural imaterial. As atividades realizadas nesse espaço, desde reuniões comunitárias e mutirões até expressões artísticas variadas, são práticas que se adaptam e evoluem com o tempo, sempre em resposta ao ambiente e à história do local. Esse processo de recriação constante promove um sentimento de identidade e continuidade, inclusive com o prédio, a rua e o bairro, essencial para a manutenção da diversidade cultural.

O conceito de “lugar” na Ouvidor 63 também inclui a intergeracionalidade, em que práticas e conhecimentos são passados de uma geração para outra, mantendo vivas as tradições culturais. O edifício é um ponto de encontro internacional, onde culturas de diferentes partes do mundo se cruzam, enriquecendo ainda mais o ambiente cultural. 

A Ouvidor 63 insere-se no Território de Interesse Cultural e da Paisagem, parte da Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (Lei nº 16.050/2014), atualmente em vias de regulamentação. Esse instrumento de gestão do patrimônio cultural reconhece a importância de lugares simbólicos para a identidade e a memória de grupos sociais, tratando as paisagens urbanas como territórios de memória e identidade social. Instituído através de um processo participativo envolvendo movimentos sociais e universidades públicas, o Território de Interesse da Cultura e da Paisagem (TICP) Paulista/Luz, que inclui o centro histórico da cidade, destaca a relevância de preservar modos de vida e elementos culturais significativos. Nesse contexto, a existência da Ocupação Cultural Ouvidor 63 constitui lugar de relevante valor histórico-cultural, contribuindo para a diversidade étnico-cultural e a luta pelo direito à cultura, memória e moradia popular no perímetro da TICP.

A Ocupação Cultural Ouvidor 63 também é um espaço de continuidade histórica intergeracional que desempenha um papel fundamental na memória, identidade e formação da sociedade brasileira, conforme previsto no Art. 1 do Decreto nº 3.551/2000. A Ouvidor não apenas perpetua a luta histórica por direitos fundamentais, como moradia e cultura, mas também atua como um ponto de encontro e preservação de diversas manifestações e formas de arte, muitas vezes ameaçadas pelas pressões da indústria cultural e econômicas, perda da memória histórica e prática de determinados fazeres e saberes. 

Como já mencionamos, inicialmente o edifício na rua do Ouvidor 63 insere-se na continuidade da luta por moradia no centro de São Paulo, sendo um símbolo de resistência e organização social. Desde a ocupação pelo Movimento de Moradia Centro (MMC) até a atual fase como centro cultural, o espaço tem sido um campo de mobilização social e participação direta, integrando universidades e instituições culturais em suas atividades. Essa trajetória de luta e colaboração multidisciplinar destaca a relevância nacional do local para a memória e a identidade brasileira, sublinhando a importância de proteger espaços que promovem os direitos humanos e culturais.

A Ouvidor 63 é um lugar relevante para a preservação e transmissão intergeracional de práticas culturais e artísticas: abriga uma diversidade de expressões culturais, funcionando como refúgio e ponto de encontro para artistas de rua e circenses, entre outros, cujas práticas e formas de sociabilidade são frequentemente marginalizadas pela indústria cultural e pelo sistema das artes dominantes. Há saberes ancestrais, afro-diaspóricos, indígenas (inclusive andinos), das comunidades rurais e periféricas, de países vizinhos ou distantes, que seguem ali vivos e mobilizados para produções artísticas contemporâneas. A Ouvidor 63 cumpre esse papel de oásis multicultural e transtemporal (incluindo noções plurais de temporalidade) em que esses artistas encontram um lugar onde podem continuar a exercer sua arte, mobilizar ancestralidades e manter suas tradições vivas, transmitindo esses conhecimentos às novas gerações e ao público urbano em geral.

Conforme estabelecido pelo Decreto nº 5.753/2006, que adota a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, a Ouvidor 63 se alinha aos critérios de proteção como patrimônio cultural imaterial devido à sua relevância para memória, identidade e formação da sociedade brasileira.

A Ouvidor 63 promove uma interação profunda entre diferentes gerações, valorizando as ancestralidades e práticas de vida comum. A comunidade adota modos de organização que refletem tradições coletivas, como o mutirão e a reunião geral semanal da comunidade, considerada tecnicamente uma “assembleia geral”. Esses encontros são marcados por uma participação inclusiva e um respeito prolongado pela fala de todos os participantes, incluindo crianças, reunidos em disposição circular. Essa abordagem não apenas facilita a transmissão de conhecimentos e práticas, como também promove um sentimento de pertencimento e continuidade entre os membros da comunidade, refletindo as marcas atitudinais de povos que sofreram genocídios coloniais.

A Ouvidor 63, como polo de diversidade artística, onde práticas e expressões artísticas tradicionais e contemporâneas se encontram e se renovam, abriga linguagens e técnicas artesanais tradicionais e ancestrais que são ali preservadas e transmitidas, proporcionando um ambiente de aprendizado e inovação contínua. A ocupação mantém um diálogo constante com os guardiães do conhecimento das fases anteriores do edifício, como o líder Gegê, além de professores e ativistas que participaram da defesa da moradia social e das práticas culturais. 

Esse diálogo é essencial para a revisitação e atualização do conhecimento específico da luta social por moradia no centro da cidade. A investigação contínua das raízes dessas lutas inclui a consideração de referências ancestrais em territórios plurais da América Latina, que chegam ao Ouvidor por meio de artistas nômades, promovendo trocas e hibridismos. A relevância da Ouvidor 63 para a identidade nacional e latino-americana é reconhecível nas diversas manifestações culturais que ocorrem no local, desde práticas típicas como trancismo capilar, capoeira e samba de cavaquinho até movimentos de vanguarda artística como o coletivo Lâmina e o projeto Motor Humano.  

Por isso, a Ouvidor 63 não é apenas um espaço local, é um ponto de convergência para práticas internacionais de itinerâncias e ocupações artísticas. Essas práticas servem como uma forma de defesa de conhecimentos e formas de vida com teor artístico inerente, bem como práticas relacionadas à natureza, sabedorias e cosmovisões plurais. O intercâmbio internacional de ideias e práticas enriquecem a diversidade cultural do espaço e promovem um entendimento mais amplo e inclusivo das expressões culturais e seus significados contemporâneos.

Assim, não se trata apenas de um espaço físico, mas um marco simbólico e histórico da resistência cultural e social na cidade e no continente. Sua proteção como patrimônio imaterial é essencial para garantir a continuidade e a transmissão de práticas culturais que são parte integrante da identidade brasileira, latino-americana e da memória coletiva de grupos que foram marginalizados ou subalternizados.

A Ocupação Cultural Ouvidor 63 é, por isso, um testemunho vivo da capacidade de transformação e resistência das comunidades, tornando-se um farol de diversidade, criatividade e inclusão. A proteção desse espaço, seu lugar e modos de vida e criação artística, permitirá que futuras gerações tenham acesso a um patrimônio único, que reflete a complexidade e a riqueza da experiência urbana e multicultural em São Paulo. A justificativa para a proteção desse local não se baseia apenas na preservação do prédio, mas na salvaguarda de um Lugar onde a cultura, a arte e a luta por direitos se encontram e se fortalecem mutuamente há décadas.

Ao reconhecer a Ouvidor 63 como um Lugar relevante de cultura imaterial, o Estado brasileiro honra seus compromissos internacionais, conforme estabelecido pela UNESCO. A sua proteção é essencial para preservar a rica trama de práticas culturais que ele abriga, garantindo que essas tradições e expressões continuem a ser uma parte vibrante do patrimônio cultural brasileiro.



Ouvidor 63: IPHAN

O processo de pedido de registro e proteção junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)

(Ano)

2023

(Descrição)

IPHAN

Ouvidor 63:

Registro com IPHAN

O projeto de pesquisa Unifesp/Fapesp/Ouvidor abriu diversas frentes de colaboração, como a tentativa de proteção do centro cultural, reconhecendo seu valor como lugar de cultura imaterial em São Paulo e até mesmo internacionalmente. O debate teve início no grupo jurídico da ocupação, que também avaliava as diferentes formas de resistência ao risco de despejo. 

Nosso objetivo era trazer elementos não apenas para a defesa jurídica da ocupação, mas também para demonstrar a sua relevância político-cultural, como lugar de referência para trocas e apresentações artísticas, que atrai artistas de diversas partes do mundo e um amplo público. Completando 10 anos de existência (2014-2024), é possível afirmar que a Ouvidor 63 já se enraizou, estabeleceu colaborações diversas e abre as portas para inúmeras iniciativas culturais, sociais, ambientais, entre outras.

Em outubro de 2023, o Prof. Pedro Arantes aconselhou prepararmos um pedido de registro e proteção da Ouvidor 63 como patrimônio histórico. A partir daí, criamos um grupo de trabalho, ouvimos diversos profissionais e apoiadores, e iniciamos a pesquisa e a redação do texto. 

A equipe da pesquisa propôs então algumas conversas com especialistas para definirmos nossa estratégia no pedido de proteção. Havia uma indecisão sobre a modalidade e o nível de proteção para os quais deveríamos fazer o pedido, em qual órgão e com qual justificativa. Por exemplo, não nos interessava o tombamento arquitetônico do prédio em si, pois a proteção é muito mais ao uso e modo de vida do que ao edifício físico. Dentre as modalidades de proteção e registro imaterial, também existiam diversas possibilidades que precisavam ser avaliadas.

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Ortofoto de São Paulo em 2020 com destaque para a Rua do Ouvidor e o lote 63. Fonte: Geosampa com marcação nossa.

Nesse período preparatório, conversamos com os arquitetos Fernando Almeida (ex-presidente do IPHAN) e Érica Diogo (atual coordenadora geral do Instituto), com a diretora do IPHAN de São Paulo, Olivia Malfatti, e com o historiador do órgão que cuida do processos de proteção imaterial, Evandro Domingues. Também tivemos conversas com dois professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Raquel Rolnik e Renato Cymbalista, e com a coordenadora de patrimônio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU-SP), Bruna Fregonezi. 

Foram vários meses de pesquisa documental e elaboração dos textos, com algumas informações que remontam a séculos, pois, para além da situação atual, pretendemos compreender e caracterizar a ocupação territorial de mais longa duração, seus sujeitos, as práticas e edificações, a formação de um trecho da paisagem material e da cultura imaterial de São Paulo. Reproduzimos aqui um trecho da justificativa: 

A Ouvidor 63 exemplifica a continuidade histórica e a recriação cultural que caracterizam um "lugar" de importância cultural imaterial. As atividades realizadas neste espaço, desde reuniões comunitárias e mutirões até expressões artísticas variadas, são práticas que se adaptam e evoluem com o tempo, sempre em resposta ao ambiente e à história do local. Este processo de recriação constante promove um sentimento de identidade e continuidade, inclusive com o prédio, a rua e o bairro, essencial para a manutenção da diversidade cultural. (Parte do texto de pedido ao IPHAN, p. 11). 

Pessoas sentadas no chão

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaMulher com criança no colo

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaPessoas sentadas em banco

Descrição gerada automaticamente

Uma das reuniões preparatórias do pedido de proteção, com a presença de Renato Cymbalista (FAU-USP), Bruna Fregonezi (CAU-SP), o advogado Augusto Luiz, equipe da Unifesp e artistas-moradores. Fotos: Pedro Arantes.

Em agosto de 2024, a Assembleia Geral da ocupação confirmou o interesse na ação e o teor geral do texto, entendendo que esta seria uma boa opção para preservar as diversidades culturais e os processos coletivos que fazem parte da identidade da Ouvidor 63. 

Nosso pedido foi protocolado ainda em agosto de 2024 e recebeu cartas de apoio do LabCidade FAU-USP, do Deputado Eduardo Suplicy, do mandato coletivo Quilombo Periférico, do curso de Direito da USP, do curso de História da Arte da Unifesp, do Grupo Tortura Nunca Mais, entre outros. O CAU-SP também emitiu posicionamento favorável. O processo já passou pela diretoria de Brasília e de São Paulo, foi recebido e distribuído na área técnica pertinente, e atualmente se encontra em tramitação interna no IPHAN. 

Selecionamos para esta publicação dois trechos do material enviado ao IPHAN: o histórico do lugar e a justificativa do pedido. Ambos apresentam os resultados mais significativos da colaboração entre a equipe de pesquisa da Unifesp/Fapesp/Ouvidor, artistas-moradores e do advogado que assessora a ocupação. 

EXCERTOS DO PEDIDO DE REGISTRO DA OUVIDOR 63 NO IPHAN

Histórico do lugar

A Ocupação Ouvidor 63 está localizada no declive da baixada do Ribeirão Itororó, próximo à sua confluência com o Ribeirão Anhangabaú, ambos atualmente canalizados e cobertos. No passado, essa área formava um grande charco, que fazia parte da Chácara do Bexiga. Com o tempo, a região foi drenada e pavimentada, dando origem à atual Praça da Bandeira e ao terminal de ônibus. Originalmente, essa terra era habitada por povos indígenas, principalmente os tupiniquins e guaranis. Com a chegada dos portugueses no século XVI e das missões religiosas (jesuítas, franciscanos, beneditinos e carmelitas), esses povos entraram em um regime de guerra, resultando em conflitos sangrentos, como o cerco de Piratininga, que está intimamente ligado à fundação de São Paulo.

Na cidade colonial, a região onde está a Ouvidor 63 se consolidou como território urbanizado em torno da Igreja e do Convento de São Francisco e seu Largo, com as primeiras construções datadas de 1647. O complexo arquitetônico é um exemplo notável do estilo barroco brasileiro, com rica decoração interna e elementos artísticos que refletem a influência dos estilos europeus adaptados às condições locais.

Foto preta e branca de uma igreja

Descrição gerada automaticamente

Convento e Largo de São Francisco em 1860. Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Largo_do_Capim-Largo_S%C3%A3o_Francisco_%28SP,_1860%29.jpg

No fim do século XVIII foi construída, pelo governador Lorena, uma ponte sobre o Ribeirão Anhangabaú no caminho de descida do Largo de São Francisco para o outro lado do vale, de onde chegavam tropeiros, com víveres e escravos. A ponte foi posteriormente batizada de Ponte dos Piques (mesmo nome da atual passarela que desemboca à frente do Ouvidor 63, cruzando a Praça e o Terminal Bandeira), ligando a cidade velha ao mercado de escravos e de víveres que se estabeleceu no Largo dos Piques (depois chamado de Largo da Memória). 

 

Desenho de personagens

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Mercado de escravos no Largo dos Piques e obelisco ao fundo. Desenho a nanquim (autor ignorado). Fonte: https://saopauloantiga.com.br/o-largo-do-piques-e-o-obelisco/

Foto em preto e branco de tanque de guerra

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Largo dos Piques com seu obelisco em 1862, com vista ao fundo da ladeira do Ouvidor e da Igreja de São Francisco. Fonte: https://www.paulistando.com.br/2015/12/painel-de-azulejos-do-largo-da-memoria.html

Recentes pesquisas divulgadas em evento no museu de culturas indígenas da cidade acrescentam ainda à biografia o registro de que pela ladeira da Ouvidor 63 passa o histórico-mítico caminho Peabiru. A notícia foi recebida com grande satisfação pelas/os ocupantes, que reivindicam diversos elementos filosóficos originários, como as formas não proprietárias de relação com a criação, com o território e com a natureza.

A poucos metros da Ouvidor, em 1827, foi criada a Faculdade de Direito de São Paulo no convento desativado, a primeira do Brasil, sendo um marco na história da educação jurídica do país. A faculdade tornou-se um centro de formação de importantes figuras políticas, jurídicas e culturais do Brasil e trouxe para a região estudantes, escritórios de advocacia e prédios de escritórios e da administração estatal. Atualmente a renomada faculdade mantém próxima parceria com a Ouvidor 63, através de seu Serviço de Apoio Jurídico Universitário dedicado à legislação urbanística e afins (Saju-Cidades), cuja parceria foi reativada após atividades na ocupação realizadas pelos estudantes durante a última greve universitária. Uma das linhas de atuação conjunta é a educação para uma cidade antirracista.

Foto preta e branca de uma igreja

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Faculdade de Direito no final do século XIX, ao lado do complexo franciscano. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Faculdade_de_Direito_da_Universidade_de_S%C3%A3o_Paulo

Assim, a paisagem onde se insere o edifício Ouvidor 63 conecta várias dimensões e camadas históricas: a tomada de terras indígenas pela colonização portuguesa, com a chegada das ordens religiosas, a urbanização de taipa e depois de tijolo, comércio e escravidão. Abriga até hoje o complexo arquitetônico franciscano e a primeira e mais importante escola de Direito do país formando quadros para o Brasil Independente (do Império à República). É também a história do domínio da natureza na transposição e depois canalização dos ribeirões Itororó e Anhangabaú, e drenagem do charco para uma praça e um terminal de transportes. E ainda envolve, mais diretamente, na história do terreno e da construção do edifício, um Barão, seus sucessores, um esperto incorporador imobiliário, um engenheiro-pintor, uma desapropriação pública discutível, o abandono nos anos 1990 e duas grandes e longas ocupações por movimentos sociais, até o presente. 

Chegamos agora à escala da rua. O logradouro hoje conhecido como Rua do Ouvidor foi chamado de “Ladeira do Bexiga”, pois era o caminho que levava à Chácara do Bexiga, localizada onde hoje se encontra a Praça da Bandeira. Em 1865, o nome foi alterado para “Ladeira de Santo Amaro”, devido ao fato de que, ao ultrapassar a atual Praça da Bandeira, chegava-se à Rua Santo Amaro, pelo caminho dos Piques.

A população, contudo, frequentemente se referia ao trecho como “Ladeira do Ouvidor”, pois ficava próximo à antiga Rua do Ouvidor, que corresponde à atual Rua José Bonifácio. Foi somente em 1930 que a “Ladeira de Santo Amaro” recebeu oficialmente o nome de Rua do Ouvidor. A primeira Rua do Ouvidor (atual Rua José Bonifácio) ganhou esse nome porque, no século XVII, nela residia o primeiro ouvidor de São Paulo, o Dr. Antônio Luís Peleja, nomeado em 1699. 

No século XIX, o ouvidor era uma autoridade judicial e administrativa no Brasil, responsável pela aplicação da justiça, administração de vilas e cidades e fiscalização das atividades públicas e privadas. Em São Paulo, o ouvidor desempenhava um papel crucial na manutenção da ordem pública e na implementação das leis coloniais e imperiais, atuando como juiz em causas cíveis e criminais, supervisionando a administração pública e fiscalizando o comportamento dos moradores. Nomeados pelo rei de Portugal ou pelo imperador do Brasil, os ouvidores tinham autonomia significativa em suas decisões e eram essenciais para garantir o cumprimento das ordens do governo central nas províncias e vilas afastadas.

O Largo de São Francisco também recebe o nome de Praça Ouvidor Pacheco e Silva. José Correia Pacheco e Silva foi ouvidor e político brasileiro, conhecido por ser membro do triunvirato que governou provisoriamente a província de São Paulo logo após a independência do Brasil. Ele desempenhou um papel significativo na administração e na justiça de São Paulo durante o início do século XIX. 

A Rua do Ouvidor também foi um local importante por abrigar, na esquina com a atual rua José Bonifácio, o “Paço do Concelho” (local aproximado do atual edifício da Secretaria de Segurança Pública). O Paço continha, no andar superior, a Câmara e, no térreo, uma cadeia e um açougue. As sessões da Câmara Municipal foram realizadas nesse local até 1870, quando o prédio começou a ruir.

Foto preta e branca de uma casa

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“Paço do Concelho” em 1862 (foto de Militão de Azevedo). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pa%C3%A7o_Municipal,_F%C3%B3rum_e_Cadeia_de_S%C3%A3o_Paulo,_1862

Na Rua do Ouvidor também situava-se a residência do Barão (Francisco Antônio) de Souza Queiroz, uma figura proeminente da história política de São Paulo. Foi vereador, deputado provincial, deputado geral, presidente interino da Província de São Paulo e senador do Império do Brasil, de 1849 a 1891. E é nas terras do Barão que foi construído o edifício que abriga o centro cultural Ouvidor 63.

Mapa

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Planta de São Paulo em 1930 com destaque para a Rua do Ouvidor e o lote 63. Fonte: Geosampa, com marcação nossa.

Chegamos agora à escala do lote. O prédio cuja história acompanhamos foi construído no local em que existiam duas casas geminadas (ou anexas), na antiga Ladeira de Santo Amaro, nos números 3 e 5, provavelmente construídas na segunda metade do século XIX. A família do Barão Souza Queiroz era dona de diversos imóveis na Rua do Ouvidor. As casas foram originalmente do casal Frederico de Souza Queiroz (filho do Barão) e sua esposa, Augusta Fleury de Souza Queiroz (em nome de quem consta a titulação dos imóveis). Em 1919, a família Souza Queiroz vendeu as duas casas para Joaquim dos Santos Azevedo e esposa, que lá residiram por quase 30 anos. As casas foram então compradas para demolição e edificação do prédio em 1948 por Luiz Barata Ribeiro, Henrique Mazzei, pela construtora Dabague e pela Hidro Eletro Brasil Ltda. (conforme dados da certidão centenária). 

Foto preta e branca de uma casa

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Rua do Ouvidor esquina com o Largo/Rua Riachuelo em 1939. Fonte: https://br.pinterest.com/pin/548805904573350916/ 

Luiz Barata Ribeiro era um empresário que atuava em diferentes ramos, inclusive como empreendedor imobiliário (segundo matéria de 1937, do Correio de S. Paulo). Foi contratado para o projeto do edifício o engenheiro civil Arthur Ferreira dos Santos, a execução a cargo da construtora Dabague & Celeste Ltda. e as instalações pela Hidro Eletro Ltda., ambas compradoras das casas à venda. As plantas legais foram aprovadas em março e a obra recebeu alvará de construção em abril de 1948. 

Texto

Descrição gerada automaticamenteTela de computador com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

Aprovações da Prefeitura e alvará de construção do edifício em 1948. Fonte: coleta documental no acervo da Prefeitura pela equipe da Unifesp.

O prédio da Ouvidor 63 foi inicialmente concebido como edifício de escritórios e projetado pelo engenheiro civil Arthur Ferreira dos Santos, formado no Mackenzie College nos anos 1920 e também pintor amador. Nos anos 1970, interessado com o progressivo uso de estruturas metálicas no Brasil, torna-se especialista na área, ministra cursos no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e escreve um livro de 500 páginas, pioneiro no Brasil, e que se torna referência na área, intitulado Estruturas Metálicas: Projeto e Detalhes para Fabricação, publicado em 1977 pela editora McGraw Hill do Brasil.

O edifício por ele projetado ocupa um terreno de 16,9 m de frente e 21,6 m de fundos, num total de 358 m2. Conforme planta legal e alvará de construção (16.693/1948)  a área construída é de 3.439 m2. Em levantamento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), o edifício tem área construída menor, de 2.913,17 m2 e 2.100,00 m2 no cadastro municipal Geosampa. Apenas a execução de um levantamento as-built permitiria a aferição exata.  A certidão que indica a desapropriação pelo Estado de São Paulo em 1950 não apresenta a metragem do edifício, apenas do lote.

Diagrama, Esquemático

Descrição gerada automaticamente

 

Fachada e corte do edifício com as varandas escalonadas. Fonte: desenhos originais obtidos e escaneados pela equipe da Unifesp junto ao acervo histórico da PMSP.

O edifício é alinhado com a Rua Ouvidor e conta com subsolo, térreo e 13 andares, com área de piso variando de 296 m2 a 61 m2 cada um. A partir do sétimo pavimento, a fachada frontal tem recuos frontais formando terraços. O Código de Obras de São Paulo de 1934 estabeleceu regras detalhadas sobre recuos e coeficientes de aproveitamento do solo. Essas normas foram inspiradas em legislações estrangeiras, como a de Nova York (Zoning Resolution de 1916), que já previa a redução gradual da área construída à medida que o edifício ganhava altura, criando o famoso efeito de “degraus”. Essa configuração permitia maior entrada de luz e circulação de ar tanto para as vias públicas quanto para os imóveis vizinhos. Além disso, essas regulamentações estavam alinhadas com as preocupações higienistas do período, que buscavam controlar os efeitos do adensamento e da urbanização acelerada. 

Com 13 andares, o gabarito do prédio não é de um arranha-céu, evidentemente, pois tem 40 metros de altura. O térreo foi projetado como “loja” (o que denominamos hoje de “fachada ativa”), com dois acessos independentes, além da entrada para o subsolo. Os demais andares foram concebidos como salões de escritório, com espaço amplo frontal, bem iluminado por janelas do piso ao teto e estrutura independente (planta livre). A torre hidráulica posterior  abriga banheiros, área de serviço e pequena copa de apoio e tem um amplo fosso de ventilação, iluminado. As empenas laterais são cegas (paredes sem janelas no alinhamento do lote), como previa a legislação à época (Código de Obras de 1934), permitindo que edifícios vizinhos encostassem uns nos outros, sem a necessidade de recuos laterais (hoje não mais permitido).  

Diagrama, Esquemático

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Planta do térreo e subsolo. Fonte: equipe da Unifesp junto ao acervo histórico da PMSP.

Em fevereiro de 1950, o edifício recém-concluído, sem ter tido nenhum usuário, foi desapropriado de forma amigável pela Fazenda do Estado de São Paulo. Não temos informações se o edifício já foi planejado e construído pelo empreendedor desde o princípio com esse propósito: a venda indireta para o Estado. Uma vez que não era obra pública nem encomenda pública, não foi licitada nem leiloada, a adoção da desapropriação de edifício recém-construído para instalação de escritórios administrativos de secretarias do Estado merece reflexão. Seria esta uma estratégia patrimonialista de Luiz Barata Ribeiro para remuneração de seu investimento, sem os procedimentos mais republicanos de planejamento, licitação e construção de edifícios públicos? Parece haver aí a oportunidade de uma promiscuidade público-privada. 

Foto preta e branca de uma cidade

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Prédio da Ouvidor 63 (à direita) recém-construído, em meio ao maciço de edifícios visto à partir da Praça da Bandeira, anos 1950 (foto de Werner Haberkorn). Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/ac/Werner_Haberkorn_-_Vista_parcial_da_Pra%C3%A7a_da_Bandeira._S%C3%A3o_Paulo-SP.jpg

Iniciado o uso do edifício pela administração pública, ainda não temos claro quais secretarias de fato ocuparam o edifício e quando, o que exigirá uma rodada de investigação adicional nos registros históricos do Governo do Estado de São Paulo que permitiriam informações mais completas e detalhadas. O que obtivemos de informação até o momento (decretos diversos e extrato histórico obtido junto ao Governo por meio da Lei de Acesso à Informação) é que o prédio foi gerido pelo Departamento de Administração e abrigou atividades de diferentes Secretarias. 

Diagrama

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Planta de São Paulo em 1954 com destaque para a Rua do Ouvidor e o lote 63. Fonte: Geosampa, com marcação nossa.

Em 1968, o Decreto nº 49.217 transfere o edifício para a Secretaria de Promoção Social (futura Secretaria de Desenvolvimento Social). Em 1985, o edifício mudou de mãos e foi entregue à Secretaria de Cultura (Decreto nº 24.203/1985). Não há registro da data de desocupação pela Secretaria de Cultura, cuja sede, naquela época, ficava no Palácio dos Campos Elíseos (antigo Palacete Elias Chaves). Em 1999, a Secretaria da Cultura foi definitivamente instalada na Estação Júlio Prestes, no complexo da Sala São Paulo. Mas o prédio seguiu nominalmente com essa Secretaria até 2007, como veremos adiante.   

Nos anos 1990, o imóvel permaneceu vazio e em estado de deterioração. Em 1997, numa onda de ocupações de imóveis abandonados no Centro de São Paulo, o edifício foi ocupado pelo Movimento de Moradia Centro (MMC). O Movimento permaneceu no local por oito anos. Após diversas rodadas de negociação, em 2005, 89 famílias foram atendidas pelo Programa de Atuação em Cortiços (PAC) da CDHU e receberam cartas de crédito, ajuda de custo ou foram realocadas para outros projetos habitacionais (na Moóca). 

Na sequência, o prédio seguiu novamente sem uso e ocupação pelo Governo do Estado. Em 2007, o edifício foi então destinado à Secretaria de Habitação (Decreto nº 52.473), endereçado para promoção de Habitação de Interesse Social (HIS). Passados dois anos sem qualquer avanço, em 2009, novo decreto (nº 54.409) permitiu não apenas HIS, mas também outras modalidades e programas habitacionais, momento em que foi analisada sua utilização como Moradia Provisória para Policiais Militares. O projeto do Estado novamente não avançou. Diante da suposta “inviabilidade econômica para a utilização para HIS”, a Fazenda do Estado revogou os decretos que vinculavam o imóvel à habitação. Em 2013, autorizou a sua destinação (Decreto nº 58.847) à Universidade Estadual Paulista (Unesp), numa permissão gratuita de uso do imóvel por 99 anos para implementar um Centro de Cultura e Divulgação Científica. Contudo, a universidade estadual não tomou providências concretas, nem administrativas. 

Sem uso e ocupação desde 2005, o prédio seguia deteriorando, acumulando lixo e não cumprindo a função social da propriedade.  Em maio de 2014, artistas sem-teto ou que estavam noutras ocupações, como a Casa Amarela, ocuparam o imóvel e permanecem no local até o presente, constituindo o Centro Cultural Ouvidor 63.  Dada a incapacidade do governo de utilizar o prédio para moradia de interesse social e/ou para cultura, coube aos artistas-ocupantes realizar, desde então, há uma década, essa implementação, de forma autogerida, solidária e aberta ao público, com atividades gratuitas diversas. 

Em junho de 2014, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo é aprovado (Lei nº 16.050/2014) e, entre outras providências, define o prédio e a esquina contígua como Zonas Especiais de Interesse Social 3 (ZEIS-3). O objetivo principal das ZEIS-3 é a recuperação de áreas urbanas deterioradas e o aproveitamento de imóveis subutilizados ou ociosos para a produção de habitação social e melhorar a qualidade de vida dos moradores, facilitando o acesso à infraestrutura urbana e serviços essenciais.

Em 2016, mesmo com o prédio ocupado pelos artistas, o Governo do Estado tentou vender o imóvel por leilão, sem interessados. 

Desde 2014 o Governo estadual mantém processo de reintegração de posse. A ação nº 1025334-69.2014.8.26.0053 foi ajuizada pelo Estado de São Paulo, tramitando na 8ª Vara de Fazenda Pública. Os moradores contestaram e interpuseram recursos, obtendo a sucessiva suspensão do mandado de reintegração de posse, com expressivo apoio do Ministério Público de São Paulo (MPSP) e da Defensoria Pública de Habitação. 

Atualmente, ambas as instituições sustentam a invalidade do processo reintegratório, especialmente diante dos 5 anos de negociações já estabelecidos desde que, em 2019, a comunidade da Ouvidor 63 passou a se fazer presente nos autos da ação civil pública (ACP) nº 1020523-90.2019.8.26.0053, que tramita na 4ª Vara da Fazenda Pública.

Essa ACP conecta-se de maneira determinante à história da cidade, pois faz parte de um conjunto de dezenas de ações iniciadas pelo MPSP para avaliação de risco de incêndio, após o trágico colapso do Edifício Wilton Paes de Almeida no Largo do Paissandu em 1º de maio de 2018, com diversas mortes e desaparecimentos.

No processo que buscou averiguar a segurança de seu edifício, a Ouvidor 63 não apenas satisfez todas as perícias e vistorias como reivindicou uma discussão aprofundada sobre a segurança humana das pessoas ocupantes, apresentando nesse processo, ao longo de diversas audiências públicas com a presença de múltiplos atores da área da cultura e habitação (legisladores, secretários, centros culturais, universidades) uma nova proposta de contrato com o Estado, ainda pendente de melhor apreciação, que busca atender à salvaguarda da cultura e formas de organização presentes na comunidade. 

Nesse sentido, a Ouvidor 63 desdobrou-se desde 2019 em esforços coletivos para constituir um GT jurídico autônomo que atua em parceria com a Defensoria Pública, o Serviço de Assistência Jurídica Universitária (SAJU), Consultorias de Universidades e Centros de Direitos Humanos e que se reúne semanalmente há anos com um advogado popular voluntário para planejar e realizar atos como a constituição de uma aparentemente inédita associação horizontal e não  presidencialista (com árduos, mas bem-sucedidos registros junto à receita federal e órgãos afins), campanha de investigação internacional sobre novos moldes de relação com o território em ocupações artísticas e edição dos mais variados tipos de ofícios para estabelecimento de relações comunitárias locais.

Cadastro com dados do edifício Ouvidor 63. Fonte: sistema Geosampa.



Justificativa do pedido de proteção

A Ocupação Cultural Ouvidor 63, localizada no coração da metrópole de São Paulo, representa um rico e multifacetado patrimônio imaterial, abrigando uma diversidade de manifestações culturais, históricas e políticas que moldaram esse lugar ao longo de décadas. É, atualmente, a maior ocupação cultural da América Latina, tem recebido amplo público e merecido atenção da mídia, de universidades, instituições culturais e vídeo-documentaristas como um espaço único e marcante na cidade.  

O prédio da rua Ouvidor 63, com 13 andares escalonados e um subsolo, foi originalmente um edifício de escritórios, projetado pelo engenheiro civil Arthur Ferreira dos Santos e construído entre 1948 e 1949 por iniciativa do empreendedor Luiz Barata Ribeiro, como já apresentado no histórico. Com a obra recém-concluída, o edifício não foi alugado ou vendido, mas desapropriado em 1950 pela Fazenda do Estado de São Paulo. Com seus salões comerciais utilizados pela administração pública até o fim dos anos 1980, o prédio abrigou órgãos de diferentes secretarias, incluindo a Secretaria da Cultura. Nos anos 1990, o prédio ficou desocupado e sem destinação pelo Governo do Estado de São Paulo. 

A partir de 1997, tornou-se um ícone de resistência popular e expressão política, quando foi ocupado pelo Movimento de Moradia Centro (MMC). Até 2005, o MMC utilizou o espaço como uma base para a luta pelo direito à moradia e à cidade, em um momento crucial para a organização popular e a mobilização social em São Paulo. O período de ocupação pelo MMC foi marcado por intensas atividades de formação, organização e ação política, com assembleias regulares, manifestações e uma série de eventos culturais que visavam conscientizar e engajar a comunidade na luta por direitos e cidadania. 


Ocupação do prédio nos anos 1990 pelo MMC, faixa na porta de entrada, com o arquiteto Lucas (à esquerda), e líder Gegê em entrevista para a TVT (à direita). Fonte: MMC e TVT.

Em 1999, o MMC firmou parceria com a Universidade de São Paulo (Poli e FAU) e o Politécnico de Torino, além de ONGs (como Polis, Gaspar Garcia, Usina e Peabiru) para criação de um laboratório de projetos de reconversão de edifícios históricos e cortiços do centro de São Paulo, com estudo de caso e proposta de intervenção no Ouvidor 63. Tal ação, pioneira e emblemática, que se tornou um marco para a história da habitação social no centro de São Paulo, foi relatada em livro (Laboratório de Projeto Integrado e Participativo para Requalificação de Cortiço. São Paulo: FAU/USP, 2002, depois republicado pela Annablume), artigos e em audiovisual. O MMC também mantinha grupos de estudos e extensão no local, como o de leitura de O Capital, de Karl Marx, com os estudantes do centro acadêmico (GFAU-USP) e o Prof. Hector Benoit, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp).

Capas das duas edições do livro do Laboratório Integrado na Ouvidor 63


A ocupação do edifício da rua do Ouvidor pelo MMC, por cerca de 90 famílias, não apenas trouxe visibilidade para a questão da moradia, mas também integrou a cultura como uma ferramenta de resistência e transformação social, criando um ambiente de autogestão popular potente e criativo. Mesmo não conseguindo a reforma do edifício da Ouvidor para sua permanência, após diversas rodadas de negociação, em 2005, as famílias foram atendidas pelo Programa de Atuação em Cortiços (PAC) da CDHU, receberam cartas de crédito, ajuda de custos ou foram realocadas para outros projetos habitacionais na Moóca. 

Após o ciclo de ocupação pelo movimento de luta por moradia, o edifício passou novamente por uma fase de abandono pelo Governo do Estado.  Sem que a Secretaria de Cultura tomasse qualquer iniciativa, o edifício foi destinado por decreto para a Secretaria de Habitação, em 2007. Na forma de protesto contra a falta de resposta habitacional e reforma do edifício, a Central de Movimentos Populares (CMP), o Movimento de Moradia Centro (MMC) e o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) ocuparam simbolicamente o prédio por um dia em outubro de 2007.

Prédio na rua

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Ocupação por 1 dia pelos movimentos de moradia em 2007. Fonte: https://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL154700-5605,00-SEMTETO+INVADEM+PREDIO+NO+CENTRO+DE+SP.html

Passados mais seis anos sem que nada de concreto ocorresse, em 2013 houve nova destinação, para a Universidade Estadual Paulista (Unesp) instalar no local um Centro de Cultura e Divulgação Científica, e novamente nada saiu do papel.

Dada a incapacidade do governo em utilizar o prédio para moradia de interesse social ou cultura, coube aos artistas-ocupantes realizar essas duas destinações de uso, de forma autogerida, horizontal, solidária e aberta ao público. No dia 1º de maio de 2014, Dia do Trabalhador, ocorreu então a ocupação de “residência (e resistência) artística”, e que dura até hoje. O edifício passou a ser um espaço de criação artística e cultural, conhecido como Ocupação Cultural Ouvidor 63, onde mora, trabalha, produz arte e espetáculos uma população flutuante de cerca de cem artistas. 



Documentação da ocupação cultural em agosto de 2024 para o pedido de proteção junto ao IPHAN. Fotos: Rose Steinmetz.

Nos últimos dez anos, o prédio tem sido um vibrante centro de diversidade cultural, abrigando artistas de várias regiões do Brasil, da América Latina e do mundo. Esse ponto de encontro único revelou-se particularmente importante para a convergência de culturas afro-diaspóricas e indígenas, refletindo a rica trama cultural do nosso continente. Artistas de grandes centros urbanos como Bogotá, Buenos Aires, Santiago, Lima e Porto Alegre, além de São Paulo, e vindos de áreas rurais e do interior, de florestas e montanhas, contribuíram para um diálogo intercultural dinâmico e outros modos de vida que permeiam a ocupação, numa perspectiva decolonial. 

A Ouvidor 63, além de garantir o direito fundamental à moradia aos que lá residem, é um palco plural das lutas dos movimentos sociais e um centro de intercâmbio cultural nacional e internacional em que pessoas encontram novas possibilidades de criação e organização, de forma autogestionária e horizontal, com assembleias comunitárias semanais, coletivos diversos e grupos organizados por projetos e ações. Os artistas-moradores mantêm ateliês, bibliotecas, espaços para ensaios, oficinas e apresentações em todos os andares, em conjunto com cozinhas, lavanderias e outros espaços comunitários.

Nesse oásis de fertilidade criativa à beira do rio Anhangabaú, os artistas promovem diversas atividades culturais gratuitas, como espetáculos, oficinas, laboratórios, exposições, saraus, desfiles e performances, além de grupos de estudo, cultivo de plantas, encontros culinários e ações sociais, como o projeto Circo Social. Realizam festivais anuais e apresentações frequentes em diversas linguagens artísticas, como teatro, música, circo, dança, poesia, audiovisual, tatuagem, artes plásticas, moda, editoras independentes etc. A Ocupação Ouvidor 63 e sua programação sociocultural foram reconhecidas pelo Edital nº 49/2018 da Política Nacional de Cultura Viva no Estado de São Paulo, tornando-se “Ponto de Cultura”.

Destaca-se que os espaços de troca e aprendizado são permanentes entre artistas e o público interessado, funcionando como uma Escola Livre de Artes, com diversas linguagens e metodologias de ensino, aprendizado e colaboração. Com o intercâmbio de saberes, referências e técnicas, é frequente que os artistas, nas mais diversas fases de seu aprendizado, tornem-se mais abertos à inovação criativa, ao cruzamento de linguagens e referências multiculturais e transtemporais. 

Os recursos eventualmente coletados, em atividades, fomento e venda de obras, ou por doações, são utilizados como prática de economia solidária, permitindo manutenções e reformas no prédio através de mutirões e aprendizado cotidiano (inclusive formando uma escola de construção civil). Com isso, o prédio recebe melhorias frequentes e não apresenta qualquer risco estrutural, mantendo atualizadas suas instalações elétricas e hidráulicas sempre que possível. 

As práticas solidárias, marcadores raciais fenotípicos e atitudinais, e modos de afetos no viver junto se estendem a diversas outras esferas da vida, como o cuidado e o apoio a mães e mulheres ou a quem tem enfrentado dificuldades e vulnerabilidades diversas — a Ouvidor 63 também abriga uma grande comunidade de artistas LGBTQIAP+. O grupo estabeleceu práticas de mediação de conflitos e tem regras para eventual exclusão de pessoas que cometerem ações não aceitáveis pelo grupo.

A Ouvidor 63 mantém ações ambientais relevantes, coletando, reciclando e utilizando materiais descartados em suas atividades, performances e obras. A reciclagem é determinante na segurança alimentar dos artistas-moradores, que coletam doações de alimentos, especialmente em feiras de rua e comércios, preparando comidas vegetarianas e veganas a partir de tradições e receitas latino-americanas. 

O grupo ainda mantém práticas de cultivo e acervo de sementes tradicionais, com plantas (incluindo plantas alimentícias não convencionais — PANCs) e hortas comunitárias em vários andares, terraços e na cobertura. Inscritas no programa “Sampa+Rural”, as hortas compõem uma frente ampla de estudos sobre a relação com a natureza, segundo as cosmopercepções ancestrais presentes na ocupação. Atualmente, a Ouvidor 63 reivindica, em contato com o precedente do “Corredor Verde do Butantã”, atenção dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Cultura de Paz e da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, para sua prática de reflorestamento de ruas, corações e mentes.

Tudo isso permite minimizar as trocas monetárias e a dependência por dinheiro e renda. As redes e práticas de solidariedade promovem modos de vida comunitários que são menos pressionados por demandas externas, encomendas, assalariamento ou outras formas de trabalho subordinado. Nesse contexto de grande autonomia em relação ao sistema vigente, as práticas artísticas inovadoras florescem. Esse território aberto, múltiplo e único se torna um espaço fértil para atividades livres e uma imaginação coletiva sem fronteiras, representando um verdadeiro “comum” em que a criação e a convivência se entrelaçam de maneira emancipadora.

Por isso, a Ouvidor 63 é mais do que apenas um local físico. É um espaço único de confluência de linguagens, práticas e saberes, um lugar vibrante e único, na integração entre arte e modos de vida, na construção de outros mundos possíveis. Através de exposições, performances, oficinas e debates, o espaço promove uma interação viva entre diferentes formas de expressão cultural e artística não hegemônicas.

Mostrando o interesse e a relevância pela experiência que ocorre na Ouvidor, já são 34 trabalhos acadêmicos (ou 49, incluindo o período de ocupação do MMC) e uma dezena de filmes-documentários de média e longa metragem (dois deles em cartaz em São Paulo atualmente), além de diversas reportagens na mídia impressa, digital e audiovisual. A Ouvidor 63 também tem mantido diversas parcerias e espetáculos com instituições culturais, como o SESC, uma exposição em preparação no Memorial da Resistência (antigo DOPS), além de colaboração intensa com instituições de ensino e pesquisa, como a Unifesp, a USP e a Fapesp (que financia projeto de pesquisa na ocupação com duração de 2 anos). 

A preservação da Ocupação Cultural Ouvidor 63 como Lugar relevante no “Livro de Registro dos Lugares” é crucial para valorizar as práticas culturais e organizativas que definem a própria natureza singular desse espaço de autogestão popular, produção artística e imaginação social. O reconhecimento oficial protegeria tanto o patrimônio material quanto o imaterial do local, para que continue a ser um ponto de referência para a cultura urbana e a invenção social em São Paulo e no Brasil.

De acordo com a Convenção Internacional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ratificada pelo Brasil em 2006, o patrimônio cultural imaterial inclui “lugares culturais” que são reconhecidos por comunidades e grupos como parte integrante de seu patrimônio cultural. A Ouvidor 63 é um desses lugares, servindo como ponto de convergência para diversas expressões culturais e sociais. 

A Ouvidor 63 exemplifica a continuidade histórica e a recriação cultural que caracterizam um “lugar” de importância cultural imaterial. As atividades realizadas nesse espaço, desde reuniões comunitárias e mutirões até expressões artísticas variadas, são práticas que se adaptam e evoluem com o tempo, sempre em resposta ao ambiente e à história do local. Esse processo de recriação constante promove um sentimento de identidade e continuidade, inclusive com o prédio, a rua e o bairro, essencial para a manutenção da diversidade cultural.

O conceito de “lugar” na Ouvidor 63 também inclui a intergeracionalidade, em que práticas e conhecimentos são passados de uma geração para outra, mantendo vivas as tradições culturais. O edifício é um ponto de encontro internacional, onde culturas de diferentes partes do mundo se cruzam, enriquecendo ainda mais o ambiente cultural. 

A Ouvidor 63 insere-se no Território de Interesse Cultural e da Paisagem, parte da Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (Lei nº 16.050/2014), atualmente em vias de regulamentação. Esse instrumento de gestão do patrimônio cultural reconhece a importância de lugares simbólicos para a identidade e a memória de grupos sociais, tratando as paisagens urbanas como territórios de memória e identidade social. Instituído através de um processo participativo envolvendo movimentos sociais e universidades públicas, o Território de Interesse da Cultura e da Paisagem (TICP) Paulista/Luz, que inclui o centro histórico da cidade, destaca a relevância de preservar modos de vida e elementos culturais significativos. Nesse contexto, a existência da Ocupação Cultural Ouvidor 63 constitui lugar de relevante valor histórico-cultural, contribuindo para a diversidade étnico-cultural e a luta pelo direito à cultura, memória e moradia popular no perímetro da TICP.

A Ocupação Cultural Ouvidor 63 também é um espaço de continuidade histórica intergeracional que desempenha um papel fundamental na memória, identidade e formação da sociedade brasileira, conforme previsto no Art. 1 do Decreto nº 3.551/2000. A Ouvidor não apenas perpetua a luta histórica por direitos fundamentais, como moradia e cultura, mas também atua como um ponto de encontro e preservação de diversas manifestações e formas de arte, muitas vezes ameaçadas pelas pressões da indústria cultural e econômicas, perda da memória histórica e prática de determinados fazeres e saberes. 

Como já mencionamos, inicialmente o edifício na rua do Ouvidor 63 insere-se na continuidade da luta por moradia no centro de São Paulo, sendo um símbolo de resistência e organização social. Desde a ocupação pelo Movimento de Moradia Centro (MMC) até a atual fase como centro cultural, o espaço tem sido um campo de mobilização social e participação direta, integrando universidades e instituições culturais em suas atividades. Essa trajetória de luta e colaboração multidisciplinar destaca a relevância nacional do local para a memória e a identidade brasileira, sublinhando a importância de proteger espaços que promovem os direitos humanos e culturais.

A Ouvidor 63 é um lugar relevante para a preservação e transmissão intergeracional de práticas culturais e artísticas: abriga uma diversidade de expressões culturais, funcionando como refúgio e ponto de encontro para artistas de rua e circenses, entre outros, cujas práticas e formas de sociabilidade são frequentemente marginalizadas pela indústria cultural e pelo sistema das artes dominantes. Há saberes ancestrais, afro-diaspóricos, indígenas (inclusive andinos), das comunidades rurais e periféricas, de países vizinhos ou distantes, que seguem ali vivos e mobilizados para produções artísticas contemporâneas. A Ouvidor 63 cumpre esse papel de oásis multicultural e transtemporal (incluindo noções plurais de temporalidade) em que esses artistas encontram um lugar onde podem continuar a exercer sua arte, mobilizar ancestralidades e manter suas tradições vivas, transmitindo esses conhecimentos às novas gerações e ao público urbano em geral.

Conforme estabelecido pelo Decreto nº 5.753/2006, que adota a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, a Ouvidor 63 se alinha aos critérios de proteção como patrimônio cultural imaterial devido à sua relevância para memória, identidade e formação da sociedade brasileira.

A Ouvidor 63 promove uma interação profunda entre diferentes gerações, valorizando as ancestralidades e práticas de vida comum. A comunidade adota modos de organização que refletem tradições coletivas, como o mutirão e a reunião geral semanal da comunidade, considerada tecnicamente uma “assembleia geral”. Esses encontros são marcados por uma participação inclusiva e um respeito prolongado pela fala de todos os participantes, incluindo crianças, reunidos em disposição circular. Essa abordagem não apenas facilita a transmissão de conhecimentos e práticas, como também promove um sentimento de pertencimento e continuidade entre os membros da comunidade, refletindo as marcas atitudinais de povos que sofreram genocídios coloniais.

A Ouvidor 63, como polo de diversidade artística, onde práticas e expressões artísticas tradicionais e contemporâneas se encontram e se renovam, abriga linguagens e técnicas artesanais tradicionais e ancestrais que são ali preservadas e transmitidas, proporcionando um ambiente de aprendizado e inovação contínua. A ocupação mantém um diálogo constante com os guardiães do conhecimento das fases anteriores do edifício, como o líder Gegê, além de professores e ativistas que participaram da defesa da moradia social e das práticas culturais. 

Esse diálogo é essencial para a revisitação e atualização do conhecimento específico da luta social por moradia no centro da cidade. A investigação contínua das raízes dessas lutas inclui a consideração de referências ancestrais em territórios plurais da América Latina, que chegam ao Ouvidor por meio de artistas nômades, promovendo trocas e hibridismos. A relevância da Ouvidor 63 para a identidade nacional e latino-americana é reconhecível nas diversas manifestações culturais que ocorrem no local, desde práticas típicas como trancismo capilar, capoeira e samba de cavaquinho até movimentos de vanguarda artística como o coletivo Lâmina e o projeto Motor Humano.  

Por isso, a Ouvidor 63 não é apenas um espaço local, é um ponto de convergência para práticas internacionais de itinerâncias e ocupações artísticas. Essas práticas servem como uma forma de defesa de conhecimentos e formas de vida com teor artístico inerente, bem como práticas relacionadas à natureza, sabedorias e cosmovisões plurais. O intercâmbio internacional de ideias e práticas enriquecem a diversidade cultural do espaço e promovem um entendimento mais amplo e inclusivo das expressões culturais e seus significados contemporâneos.

Assim, não se trata apenas de um espaço físico, mas um marco simbólico e histórico da resistência cultural e social na cidade e no continente. Sua proteção como patrimônio imaterial é essencial para garantir a continuidade e a transmissão de práticas culturais que são parte integrante da identidade brasileira, latino-americana e da memória coletiva de grupos que foram marginalizados ou subalternizados.

A Ocupação Cultural Ouvidor 63 é, por isso, um testemunho vivo da capacidade de transformação e resistência das comunidades, tornando-se um farol de diversidade, criatividade e inclusão. A proteção desse espaço, seu lugar e modos de vida e criação artística, permitirá que futuras gerações tenham acesso a um patrimônio único, que reflete a complexidade e a riqueza da experiência urbana e multicultural em São Paulo. A justificativa para a proteção desse local não se baseia apenas na preservação do prédio, mas na salvaguarda de um Lugar onde a cultura, a arte e a luta por direitos se encontram e se fortalecem mutuamente há décadas.

Ao reconhecer a Ouvidor 63 como um Lugar relevante de cultura imaterial, o Estado brasileiro honra seus compromissos internacionais, conforme estabelecido pela UNESCO. A sua proteção é essencial para preservar a rica trama de práticas culturais que ele abriga, garantindo que essas tradições e expressões continuem a ser uma parte vibrante do patrimônio cultural brasileiro.



Ouvidor 63: IPHAN

O processo de pedido de registro e proteção junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)

(Ano)

2023

(Descrição)

IPHAN

Ouvidor 63:

Registro com IPHAN

O projeto de pesquisa Unifesp/Fapesp/Ouvidor abriu diversas frentes de colaboração, como a tentativa de proteção do centro cultural, reconhecendo seu valor como lugar de cultura imaterial em São Paulo e até mesmo internacionalmente. O debate teve início no grupo jurídico da ocupação, que também avaliava as diferentes formas de resistência ao risco de despejo. 

Nosso objetivo era trazer elementos não apenas para a defesa jurídica da ocupação, mas também para demonstrar a sua relevância político-cultural, como lugar de referência para trocas e apresentações artísticas, que atrai artistas de diversas partes do mundo e um amplo público. Completando 10 anos de existência (2014-2024), é possível afirmar que a Ouvidor 63 já se enraizou, estabeleceu colaborações diversas e abre as portas para inúmeras iniciativas culturais, sociais, ambientais, entre outras.

Em outubro de 2023, o Prof. Pedro Arantes aconselhou prepararmos um pedido de registro e proteção da Ouvidor 63 como patrimônio histórico. A partir daí, criamos um grupo de trabalho, ouvimos diversos profissionais e apoiadores, e iniciamos a pesquisa e a redação do texto. 

A equipe da pesquisa propôs então algumas conversas com especialistas para definirmos nossa estratégia no pedido de proteção. Havia uma indecisão sobre a modalidade e o nível de proteção para os quais deveríamos fazer o pedido, em qual órgão e com qual justificativa. Por exemplo, não nos interessava o tombamento arquitetônico do prédio em si, pois a proteção é muito mais ao uso e modo de vida do que ao edifício físico. Dentre as modalidades de proteção e registro imaterial, também existiam diversas possibilidades que precisavam ser avaliadas.

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Ortofoto de São Paulo em 2020 com destaque para a Rua do Ouvidor e o lote 63. Fonte: Geosampa com marcação nossa.

Nesse período preparatório, conversamos com os arquitetos Fernando Almeida (ex-presidente do IPHAN) e Érica Diogo (atual coordenadora geral do Instituto), com a diretora do IPHAN de São Paulo, Olivia Malfatti, e com o historiador do órgão que cuida do processos de proteção imaterial, Evandro Domingues. Também tivemos conversas com dois professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Raquel Rolnik e Renato Cymbalista, e com a coordenadora de patrimônio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU-SP), Bruna Fregonezi. 

Foram vários meses de pesquisa documental e elaboração dos textos, com algumas informações que remontam a séculos, pois, para além da situação atual, pretendemos compreender e caracterizar a ocupação territorial de mais longa duração, seus sujeitos, as práticas e edificações, a formação de um trecho da paisagem material e da cultura imaterial de São Paulo. Reproduzimos aqui um trecho da justificativa: 

A Ouvidor 63 exemplifica a continuidade histórica e a recriação cultural que caracterizam um "lugar" de importância cultural imaterial. As atividades realizadas neste espaço, desde reuniões comunitárias e mutirões até expressões artísticas variadas, são práticas que se adaptam e evoluem com o tempo, sempre em resposta ao ambiente e à história do local. Este processo de recriação constante promove um sentimento de identidade e continuidade, inclusive com o prédio, a rua e o bairro, essencial para a manutenção da diversidade cultural. (Parte do texto de pedido ao IPHAN, p. 11). 

Pessoas sentadas no chão

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaMulher com criança no colo

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaPessoas sentadas em banco

Descrição gerada automaticamente

Uma das reuniões preparatórias do pedido de proteção, com a presença de Renato Cymbalista (FAU-USP), Bruna Fregonezi (CAU-SP), o advogado Augusto Luiz, equipe da Unifesp e artistas-moradores. Fotos: Pedro Arantes.

Em agosto de 2024, a Assembleia Geral da ocupação confirmou o interesse na ação e o teor geral do texto, entendendo que esta seria uma boa opção para preservar as diversidades culturais e os processos coletivos que fazem parte da identidade da Ouvidor 63. 

Nosso pedido foi protocolado ainda em agosto de 2024 e recebeu cartas de apoio do LabCidade FAU-USP, do Deputado Eduardo Suplicy, do mandato coletivo Quilombo Periférico, do curso de Direito da USP, do curso de História da Arte da Unifesp, do Grupo Tortura Nunca Mais, entre outros. O CAU-SP também emitiu posicionamento favorável. O processo já passou pela diretoria de Brasília e de São Paulo, foi recebido e distribuído na área técnica pertinente, e atualmente se encontra em tramitação interna no IPHAN. 

Selecionamos para esta publicação dois trechos do material enviado ao IPHAN: o histórico do lugar e a justificativa do pedido. Ambos apresentam os resultados mais significativos da colaboração entre a equipe de pesquisa da Unifesp/Fapesp/Ouvidor, artistas-moradores e do advogado que assessora a ocupação. 

EXCERTOS DO PEDIDO DE REGISTRO DA OUVIDOR 63 NO IPHAN

Histórico do lugar

A Ocupação Ouvidor 63 está localizada no declive da baixada do Ribeirão Itororó, próximo à sua confluência com o Ribeirão Anhangabaú, ambos atualmente canalizados e cobertos. No passado, essa área formava um grande charco, que fazia parte da Chácara do Bexiga. Com o tempo, a região foi drenada e pavimentada, dando origem à atual Praça da Bandeira e ao terminal de ônibus. Originalmente, essa terra era habitada por povos indígenas, principalmente os tupiniquins e guaranis. Com a chegada dos portugueses no século XVI e das missões religiosas (jesuítas, franciscanos, beneditinos e carmelitas), esses povos entraram em um regime de guerra, resultando em conflitos sangrentos, como o cerco de Piratininga, que está intimamente ligado à fundação de São Paulo.

Na cidade colonial, a região onde está a Ouvidor 63 se consolidou como território urbanizado em torno da Igreja e do Convento de São Francisco e seu Largo, com as primeiras construções datadas de 1647. O complexo arquitetônico é um exemplo notável do estilo barroco brasileiro, com rica decoração interna e elementos artísticos que refletem a influência dos estilos europeus adaptados às condições locais.

Foto preta e branca de uma igreja

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Convento e Largo de São Francisco em 1860. Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Largo_do_Capim-Largo_S%C3%A3o_Francisco_%28SP,_1860%29.jpg

No fim do século XVIII foi construída, pelo governador Lorena, uma ponte sobre o Ribeirão Anhangabaú no caminho de descida do Largo de São Francisco para o outro lado do vale, de onde chegavam tropeiros, com víveres e escravos. A ponte foi posteriormente batizada de Ponte dos Piques (mesmo nome da atual passarela que desemboca à frente do Ouvidor 63, cruzando a Praça e o Terminal Bandeira), ligando a cidade velha ao mercado de escravos e de víveres que se estabeleceu no Largo dos Piques (depois chamado de Largo da Memória). 

 

Desenho de personagens

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Mercado de escravos no Largo dos Piques e obelisco ao fundo. Desenho a nanquim (autor ignorado). Fonte: https://saopauloantiga.com.br/o-largo-do-piques-e-o-obelisco/

Foto em preto e branco de tanque de guerra

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Largo dos Piques com seu obelisco em 1862, com vista ao fundo da ladeira do Ouvidor e da Igreja de São Francisco. Fonte: https://www.paulistando.com.br/2015/12/painel-de-azulejos-do-largo-da-memoria.html

Recentes pesquisas divulgadas em evento no museu de culturas indígenas da cidade acrescentam ainda à biografia o registro de que pela ladeira da Ouvidor 63 passa o histórico-mítico caminho Peabiru. A notícia foi recebida com grande satisfação pelas/os ocupantes, que reivindicam diversos elementos filosóficos originários, como as formas não proprietárias de relação com a criação, com o território e com a natureza.

A poucos metros da Ouvidor, em 1827, foi criada a Faculdade de Direito de São Paulo no convento desativado, a primeira do Brasil, sendo um marco na história da educação jurídica do país. A faculdade tornou-se um centro de formação de importantes figuras políticas, jurídicas e culturais do Brasil e trouxe para a região estudantes, escritórios de advocacia e prédios de escritórios e da administração estatal. Atualmente a renomada faculdade mantém próxima parceria com a Ouvidor 63, através de seu Serviço de Apoio Jurídico Universitário dedicado à legislação urbanística e afins (Saju-Cidades), cuja parceria foi reativada após atividades na ocupação realizadas pelos estudantes durante a última greve universitária. Uma das linhas de atuação conjunta é a educação para uma cidade antirracista.

Foto preta e branca de uma igreja

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Faculdade de Direito no final do século XIX, ao lado do complexo franciscano. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Faculdade_de_Direito_da_Universidade_de_S%C3%A3o_Paulo

Assim, a paisagem onde se insere o edifício Ouvidor 63 conecta várias dimensões e camadas históricas: a tomada de terras indígenas pela colonização portuguesa, com a chegada das ordens religiosas, a urbanização de taipa e depois de tijolo, comércio e escravidão. Abriga até hoje o complexo arquitetônico franciscano e a primeira e mais importante escola de Direito do país formando quadros para o Brasil Independente (do Império à República). É também a história do domínio da natureza na transposição e depois canalização dos ribeirões Itororó e Anhangabaú, e drenagem do charco para uma praça e um terminal de transportes. E ainda envolve, mais diretamente, na história do terreno e da construção do edifício, um Barão, seus sucessores, um esperto incorporador imobiliário, um engenheiro-pintor, uma desapropriação pública discutível, o abandono nos anos 1990 e duas grandes e longas ocupações por movimentos sociais, até o presente. 

Chegamos agora à escala da rua. O logradouro hoje conhecido como Rua do Ouvidor foi chamado de “Ladeira do Bexiga”, pois era o caminho que levava à Chácara do Bexiga, localizada onde hoje se encontra a Praça da Bandeira. Em 1865, o nome foi alterado para “Ladeira de Santo Amaro”, devido ao fato de que, ao ultrapassar a atual Praça da Bandeira, chegava-se à Rua Santo Amaro, pelo caminho dos Piques.

A população, contudo, frequentemente se referia ao trecho como “Ladeira do Ouvidor”, pois ficava próximo à antiga Rua do Ouvidor, que corresponde à atual Rua José Bonifácio. Foi somente em 1930 que a “Ladeira de Santo Amaro” recebeu oficialmente o nome de Rua do Ouvidor. A primeira Rua do Ouvidor (atual Rua José Bonifácio) ganhou esse nome porque, no século XVII, nela residia o primeiro ouvidor de São Paulo, o Dr. Antônio Luís Peleja, nomeado em 1699. 

No século XIX, o ouvidor era uma autoridade judicial e administrativa no Brasil, responsável pela aplicação da justiça, administração de vilas e cidades e fiscalização das atividades públicas e privadas. Em São Paulo, o ouvidor desempenhava um papel crucial na manutenção da ordem pública e na implementação das leis coloniais e imperiais, atuando como juiz em causas cíveis e criminais, supervisionando a administração pública e fiscalizando o comportamento dos moradores. Nomeados pelo rei de Portugal ou pelo imperador do Brasil, os ouvidores tinham autonomia significativa em suas decisões e eram essenciais para garantir o cumprimento das ordens do governo central nas províncias e vilas afastadas.

O Largo de São Francisco também recebe o nome de Praça Ouvidor Pacheco e Silva. José Correia Pacheco e Silva foi ouvidor e político brasileiro, conhecido por ser membro do triunvirato que governou provisoriamente a província de São Paulo logo após a independência do Brasil. Ele desempenhou um papel significativo na administração e na justiça de São Paulo durante o início do século XIX. 

A Rua do Ouvidor também foi um local importante por abrigar, na esquina com a atual rua José Bonifácio, o “Paço do Concelho” (local aproximado do atual edifício da Secretaria de Segurança Pública). O Paço continha, no andar superior, a Câmara e, no térreo, uma cadeia e um açougue. As sessões da Câmara Municipal foram realizadas nesse local até 1870, quando o prédio começou a ruir.

Foto preta e branca de uma casa

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“Paço do Concelho” em 1862 (foto de Militão de Azevedo). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pa%C3%A7o_Municipal,_F%C3%B3rum_e_Cadeia_de_S%C3%A3o_Paulo,_1862

Na Rua do Ouvidor também situava-se a residência do Barão (Francisco Antônio) de Souza Queiroz, uma figura proeminente da história política de São Paulo. Foi vereador, deputado provincial, deputado geral, presidente interino da Província de São Paulo e senador do Império do Brasil, de 1849 a 1891. E é nas terras do Barão que foi construído o edifício que abriga o centro cultural Ouvidor 63.

Mapa

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Planta de São Paulo em 1930 com destaque para a Rua do Ouvidor e o lote 63. Fonte: Geosampa, com marcação nossa.

Chegamos agora à escala do lote. O prédio cuja história acompanhamos foi construído no local em que existiam duas casas geminadas (ou anexas), na antiga Ladeira de Santo Amaro, nos números 3 e 5, provavelmente construídas na segunda metade do século XIX. A família do Barão Souza Queiroz era dona de diversos imóveis na Rua do Ouvidor. As casas foram originalmente do casal Frederico de Souza Queiroz (filho do Barão) e sua esposa, Augusta Fleury de Souza Queiroz (em nome de quem consta a titulação dos imóveis). Em 1919, a família Souza Queiroz vendeu as duas casas para Joaquim dos Santos Azevedo e esposa, que lá residiram por quase 30 anos. As casas foram então compradas para demolição e edificação do prédio em 1948 por Luiz Barata Ribeiro, Henrique Mazzei, pela construtora Dabague e pela Hidro Eletro Brasil Ltda. (conforme dados da certidão centenária). 

Foto preta e branca de uma casa

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Rua do Ouvidor esquina com o Largo/Rua Riachuelo em 1939. Fonte: https://br.pinterest.com/pin/548805904573350916/ 

Luiz Barata Ribeiro era um empresário que atuava em diferentes ramos, inclusive como empreendedor imobiliário (segundo matéria de 1937, do Correio de S. Paulo). Foi contratado para o projeto do edifício o engenheiro civil Arthur Ferreira dos Santos, a execução a cargo da construtora Dabague & Celeste Ltda. e as instalações pela Hidro Eletro Ltda., ambas compradoras das casas à venda. As plantas legais foram aprovadas em março e a obra recebeu alvará de construção em abril de 1948. 

Texto

Descrição gerada automaticamenteTela de computador com texto preto sobre fundo branco

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Aprovações da Prefeitura e alvará de construção do edifício em 1948. Fonte: coleta documental no acervo da Prefeitura pela equipe da Unifesp.

O prédio da Ouvidor 63 foi inicialmente concebido como edifício de escritórios e projetado pelo engenheiro civil Arthur Ferreira dos Santos, formado no Mackenzie College nos anos 1920 e também pintor amador. Nos anos 1970, interessado com o progressivo uso de estruturas metálicas no Brasil, torna-se especialista na área, ministra cursos no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e escreve um livro de 500 páginas, pioneiro no Brasil, e que se torna referência na área, intitulado Estruturas Metálicas: Projeto e Detalhes para Fabricação, publicado em 1977 pela editora McGraw Hill do Brasil.

O edifício por ele projetado ocupa um terreno de 16,9 m de frente e 21,6 m de fundos, num total de 358 m2. Conforme planta legal e alvará de construção (16.693/1948)  a área construída é de 3.439 m2. Em levantamento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), o edifício tem área construída menor, de 2.913,17 m2 e 2.100,00 m2 no cadastro municipal Geosampa. Apenas a execução de um levantamento as-built permitiria a aferição exata.  A certidão que indica a desapropriação pelo Estado de São Paulo em 1950 não apresenta a metragem do edifício, apenas do lote.

Diagrama, Esquemático

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Fachada e corte do edifício com as varandas escalonadas. Fonte: desenhos originais obtidos e escaneados pela equipe da Unifesp junto ao acervo histórico da PMSP.

O edifício é alinhado com a Rua Ouvidor e conta com subsolo, térreo e 13 andares, com área de piso variando de 296 m2 a 61 m2 cada um. A partir do sétimo pavimento, a fachada frontal tem recuos frontais formando terraços. O Código de Obras de São Paulo de 1934 estabeleceu regras detalhadas sobre recuos e coeficientes de aproveitamento do solo. Essas normas foram inspiradas em legislações estrangeiras, como a de Nova York (Zoning Resolution de 1916), que já previa a redução gradual da área construída à medida que o edifício ganhava altura, criando o famoso efeito de “degraus”. Essa configuração permitia maior entrada de luz e circulação de ar tanto para as vias públicas quanto para os imóveis vizinhos. Além disso, essas regulamentações estavam alinhadas com as preocupações higienistas do período, que buscavam controlar os efeitos do adensamento e da urbanização acelerada. 

Com 13 andares, o gabarito do prédio não é de um arranha-céu, evidentemente, pois tem 40 metros de altura. O térreo foi projetado como “loja” (o que denominamos hoje de “fachada ativa”), com dois acessos independentes, além da entrada para o subsolo. Os demais andares foram concebidos como salões de escritório, com espaço amplo frontal, bem iluminado por janelas do piso ao teto e estrutura independente (planta livre). A torre hidráulica posterior  abriga banheiros, área de serviço e pequena copa de apoio e tem um amplo fosso de ventilação, iluminado. As empenas laterais são cegas (paredes sem janelas no alinhamento do lote), como previa a legislação à época (Código de Obras de 1934), permitindo que edifícios vizinhos encostassem uns nos outros, sem a necessidade de recuos laterais (hoje não mais permitido).  

Diagrama, Esquemático

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Planta do térreo e subsolo. Fonte: equipe da Unifesp junto ao acervo histórico da PMSP.

Em fevereiro de 1950, o edifício recém-concluído, sem ter tido nenhum usuário, foi desapropriado de forma amigável pela Fazenda do Estado de São Paulo. Não temos informações se o edifício já foi planejado e construído pelo empreendedor desde o princípio com esse propósito: a venda indireta para o Estado. Uma vez que não era obra pública nem encomenda pública, não foi licitada nem leiloada, a adoção da desapropriação de edifício recém-construído para instalação de escritórios administrativos de secretarias do Estado merece reflexão. Seria esta uma estratégia patrimonialista de Luiz Barata Ribeiro para remuneração de seu investimento, sem os procedimentos mais republicanos de planejamento, licitação e construção de edifícios públicos? Parece haver aí a oportunidade de uma promiscuidade público-privada. 

Foto preta e branca de uma cidade

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Prédio da Ouvidor 63 (à direita) recém-construído, em meio ao maciço de edifícios visto à partir da Praça da Bandeira, anos 1950 (foto de Werner Haberkorn). Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/ac/Werner_Haberkorn_-_Vista_parcial_da_Pra%C3%A7a_da_Bandeira._S%C3%A3o_Paulo-SP.jpg

Iniciado o uso do edifício pela administração pública, ainda não temos claro quais secretarias de fato ocuparam o edifício e quando, o que exigirá uma rodada de investigação adicional nos registros históricos do Governo do Estado de São Paulo que permitiriam informações mais completas e detalhadas. O que obtivemos de informação até o momento (decretos diversos e extrato histórico obtido junto ao Governo por meio da Lei de Acesso à Informação) é que o prédio foi gerido pelo Departamento de Administração e abrigou atividades de diferentes Secretarias. 

Diagrama

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Planta de São Paulo em 1954 com destaque para a Rua do Ouvidor e o lote 63. Fonte: Geosampa, com marcação nossa.

Em 1968, o Decreto nº 49.217 transfere o edifício para a Secretaria de Promoção Social (futura Secretaria de Desenvolvimento Social). Em 1985, o edifício mudou de mãos e foi entregue à Secretaria de Cultura (Decreto nº 24.203/1985). Não há registro da data de desocupação pela Secretaria de Cultura, cuja sede, naquela época, ficava no Palácio dos Campos Elíseos (antigo Palacete Elias Chaves). Em 1999, a Secretaria da Cultura foi definitivamente instalada na Estação Júlio Prestes, no complexo da Sala São Paulo. Mas o prédio seguiu nominalmente com essa Secretaria até 2007, como veremos adiante.   

Nos anos 1990, o imóvel permaneceu vazio e em estado de deterioração. Em 1997, numa onda de ocupações de imóveis abandonados no Centro de São Paulo, o edifício foi ocupado pelo Movimento de Moradia Centro (MMC). O Movimento permaneceu no local por oito anos. Após diversas rodadas de negociação, em 2005, 89 famílias foram atendidas pelo Programa de Atuação em Cortiços (PAC) da CDHU e receberam cartas de crédito, ajuda de custo ou foram realocadas para outros projetos habitacionais (na Moóca). 

Na sequência, o prédio seguiu novamente sem uso e ocupação pelo Governo do Estado. Em 2007, o edifício foi então destinado à Secretaria de Habitação (Decreto nº 52.473), endereçado para promoção de Habitação de Interesse Social (HIS). Passados dois anos sem qualquer avanço, em 2009, novo decreto (nº 54.409) permitiu não apenas HIS, mas também outras modalidades e programas habitacionais, momento em que foi analisada sua utilização como Moradia Provisória para Policiais Militares. O projeto do Estado novamente não avançou. Diante da suposta “inviabilidade econômica para a utilização para HIS”, a Fazenda do Estado revogou os decretos que vinculavam o imóvel à habitação. Em 2013, autorizou a sua destinação (Decreto nº 58.847) à Universidade Estadual Paulista (Unesp), numa permissão gratuita de uso do imóvel por 99 anos para implementar um Centro de Cultura e Divulgação Científica. Contudo, a universidade estadual não tomou providências concretas, nem administrativas. 

Sem uso e ocupação desde 2005, o prédio seguia deteriorando, acumulando lixo e não cumprindo a função social da propriedade.  Em maio de 2014, artistas sem-teto ou que estavam noutras ocupações, como a Casa Amarela, ocuparam o imóvel e permanecem no local até o presente, constituindo o Centro Cultural Ouvidor 63.  Dada a incapacidade do governo de utilizar o prédio para moradia de interesse social e/ou para cultura, coube aos artistas-ocupantes realizar, desde então, há uma década, essa implementação, de forma autogerida, solidária e aberta ao público, com atividades gratuitas diversas. 

Em junho de 2014, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo é aprovado (Lei nº 16.050/2014) e, entre outras providências, define o prédio e a esquina contígua como Zonas Especiais de Interesse Social 3 (ZEIS-3). O objetivo principal das ZEIS-3 é a recuperação de áreas urbanas deterioradas e o aproveitamento de imóveis subutilizados ou ociosos para a produção de habitação social e melhorar a qualidade de vida dos moradores, facilitando o acesso à infraestrutura urbana e serviços essenciais.

Em 2016, mesmo com o prédio ocupado pelos artistas, o Governo do Estado tentou vender o imóvel por leilão, sem interessados. 

Desde 2014 o Governo estadual mantém processo de reintegração de posse. A ação nº 1025334-69.2014.8.26.0053 foi ajuizada pelo Estado de São Paulo, tramitando na 8ª Vara de Fazenda Pública. Os moradores contestaram e interpuseram recursos, obtendo a sucessiva suspensão do mandado de reintegração de posse, com expressivo apoio do Ministério Público de São Paulo (MPSP) e da Defensoria Pública de Habitação. 

Atualmente, ambas as instituições sustentam a invalidade do processo reintegratório, especialmente diante dos 5 anos de negociações já estabelecidos desde que, em 2019, a comunidade da Ouvidor 63 passou a se fazer presente nos autos da ação civil pública (ACP) nº 1020523-90.2019.8.26.0053, que tramita na 4ª Vara da Fazenda Pública.

Essa ACP conecta-se de maneira determinante à história da cidade, pois faz parte de um conjunto de dezenas de ações iniciadas pelo MPSP para avaliação de risco de incêndio, após o trágico colapso do Edifício Wilton Paes de Almeida no Largo do Paissandu em 1º de maio de 2018, com diversas mortes e desaparecimentos.

No processo que buscou averiguar a segurança de seu edifício, a Ouvidor 63 não apenas satisfez todas as perícias e vistorias como reivindicou uma discussão aprofundada sobre a segurança humana das pessoas ocupantes, apresentando nesse processo, ao longo de diversas audiências públicas com a presença de múltiplos atores da área da cultura e habitação (legisladores, secretários, centros culturais, universidades) uma nova proposta de contrato com o Estado, ainda pendente de melhor apreciação, que busca atender à salvaguarda da cultura e formas de organização presentes na comunidade. 

Nesse sentido, a Ouvidor 63 desdobrou-se desde 2019 em esforços coletivos para constituir um GT jurídico autônomo que atua em parceria com a Defensoria Pública, o Serviço de Assistência Jurídica Universitária (SAJU), Consultorias de Universidades e Centros de Direitos Humanos e que se reúne semanalmente há anos com um advogado popular voluntário para planejar e realizar atos como a constituição de uma aparentemente inédita associação horizontal e não  presidencialista (com árduos, mas bem-sucedidos registros junto à receita federal e órgãos afins), campanha de investigação internacional sobre novos moldes de relação com o território em ocupações artísticas e edição dos mais variados tipos de ofícios para estabelecimento de relações comunitárias locais.

Cadastro com dados do edifício Ouvidor 63. Fonte: sistema Geosampa.



Justificativa do pedido de proteção

A Ocupação Cultural Ouvidor 63, localizada no coração da metrópole de São Paulo, representa um rico e multifacetado patrimônio imaterial, abrigando uma diversidade de manifestações culturais, históricas e políticas que moldaram esse lugar ao longo de décadas. É, atualmente, a maior ocupação cultural da América Latina, tem recebido amplo público e merecido atenção da mídia, de universidades, instituições culturais e vídeo-documentaristas como um espaço único e marcante na cidade.  

O prédio da rua Ouvidor 63, com 13 andares escalonados e um subsolo, foi originalmente um edifício de escritórios, projetado pelo engenheiro civil Arthur Ferreira dos Santos e construído entre 1948 e 1949 por iniciativa do empreendedor Luiz Barata Ribeiro, como já apresentado no histórico. Com a obra recém-concluída, o edifício não foi alugado ou vendido, mas desapropriado em 1950 pela Fazenda do Estado de São Paulo. Com seus salões comerciais utilizados pela administração pública até o fim dos anos 1980, o prédio abrigou órgãos de diferentes secretarias, incluindo a Secretaria da Cultura. Nos anos 1990, o prédio ficou desocupado e sem destinação pelo Governo do Estado de São Paulo. 

A partir de 1997, tornou-se um ícone de resistência popular e expressão política, quando foi ocupado pelo Movimento de Moradia Centro (MMC). Até 2005, o MMC utilizou o espaço como uma base para a luta pelo direito à moradia e à cidade, em um momento crucial para a organização popular e a mobilização social em São Paulo. O período de ocupação pelo MMC foi marcado por intensas atividades de formação, organização e ação política, com assembleias regulares, manifestações e uma série de eventos culturais que visavam conscientizar e engajar a comunidade na luta por direitos e cidadania. 


Ocupação do prédio nos anos 1990 pelo MMC, faixa na porta de entrada, com o arquiteto Lucas (à esquerda), e líder Gegê em entrevista para a TVT (à direita). Fonte: MMC e TVT.

Em 1999, o MMC firmou parceria com a Universidade de São Paulo (Poli e FAU) e o Politécnico de Torino, além de ONGs (como Polis, Gaspar Garcia, Usina e Peabiru) para criação de um laboratório de projetos de reconversão de edifícios históricos e cortiços do centro de São Paulo, com estudo de caso e proposta de intervenção no Ouvidor 63. Tal ação, pioneira e emblemática, que se tornou um marco para a história da habitação social no centro de São Paulo, foi relatada em livro (Laboratório de Projeto Integrado e Participativo para Requalificação de Cortiço. São Paulo: FAU/USP, 2002, depois republicado pela Annablume), artigos e em audiovisual. O MMC também mantinha grupos de estudos e extensão no local, como o de leitura de O Capital, de Karl Marx, com os estudantes do centro acadêmico (GFAU-USP) e o Prof. Hector Benoit, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp).

Capas das duas edições do livro do Laboratório Integrado na Ouvidor 63


A ocupação do edifício da rua do Ouvidor pelo MMC, por cerca de 90 famílias, não apenas trouxe visibilidade para a questão da moradia, mas também integrou a cultura como uma ferramenta de resistência e transformação social, criando um ambiente de autogestão popular potente e criativo. Mesmo não conseguindo a reforma do edifício da Ouvidor para sua permanência, após diversas rodadas de negociação, em 2005, as famílias foram atendidas pelo Programa de Atuação em Cortiços (PAC) da CDHU, receberam cartas de crédito, ajuda de custos ou foram realocadas para outros projetos habitacionais na Moóca. 

Após o ciclo de ocupação pelo movimento de luta por moradia, o edifício passou novamente por uma fase de abandono pelo Governo do Estado.  Sem que a Secretaria de Cultura tomasse qualquer iniciativa, o edifício foi destinado por decreto para a Secretaria de Habitação, em 2007. Na forma de protesto contra a falta de resposta habitacional e reforma do edifício, a Central de Movimentos Populares (CMP), o Movimento de Moradia Centro (MMC) e o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) ocuparam simbolicamente o prédio por um dia em outubro de 2007.

Prédio na rua

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Ocupação por 1 dia pelos movimentos de moradia em 2007. Fonte: https://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL154700-5605,00-SEMTETO+INVADEM+PREDIO+NO+CENTRO+DE+SP.html

Passados mais seis anos sem que nada de concreto ocorresse, em 2013 houve nova destinação, para a Universidade Estadual Paulista (Unesp) instalar no local um Centro de Cultura e Divulgação Científica, e novamente nada saiu do papel.

Dada a incapacidade do governo em utilizar o prédio para moradia de interesse social ou cultura, coube aos artistas-ocupantes realizar essas duas destinações de uso, de forma autogerida, horizontal, solidária e aberta ao público. No dia 1º de maio de 2014, Dia do Trabalhador, ocorreu então a ocupação de “residência (e resistência) artística”, e que dura até hoje. O edifício passou a ser um espaço de criação artística e cultural, conhecido como Ocupação Cultural Ouvidor 63, onde mora, trabalha, produz arte e espetáculos uma população flutuante de cerca de cem artistas. 



Documentação da ocupação cultural em agosto de 2024 para o pedido de proteção junto ao IPHAN. Fotos: Rose Steinmetz.

Nos últimos dez anos, o prédio tem sido um vibrante centro de diversidade cultural, abrigando artistas de várias regiões do Brasil, da América Latina e do mundo. Esse ponto de encontro único revelou-se particularmente importante para a convergência de culturas afro-diaspóricas e indígenas, refletindo a rica trama cultural do nosso continente. Artistas de grandes centros urbanos como Bogotá, Buenos Aires, Santiago, Lima e Porto Alegre, além de São Paulo, e vindos de áreas rurais e do interior, de florestas e montanhas, contribuíram para um diálogo intercultural dinâmico e outros modos de vida que permeiam a ocupação, numa perspectiva decolonial. 

A Ouvidor 63, além de garantir o direito fundamental à moradia aos que lá residem, é um palco plural das lutas dos movimentos sociais e um centro de intercâmbio cultural nacional e internacional em que pessoas encontram novas possibilidades de criação e organização, de forma autogestionária e horizontal, com assembleias comunitárias semanais, coletivos diversos e grupos organizados por projetos e ações. Os artistas-moradores mantêm ateliês, bibliotecas, espaços para ensaios, oficinas e apresentações em todos os andares, em conjunto com cozinhas, lavanderias e outros espaços comunitários.

Nesse oásis de fertilidade criativa à beira do rio Anhangabaú, os artistas promovem diversas atividades culturais gratuitas, como espetáculos, oficinas, laboratórios, exposições, saraus, desfiles e performances, além de grupos de estudo, cultivo de plantas, encontros culinários e ações sociais, como o projeto Circo Social. Realizam festivais anuais e apresentações frequentes em diversas linguagens artísticas, como teatro, música, circo, dança, poesia, audiovisual, tatuagem, artes plásticas, moda, editoras independentes etc. A Ocupação Ouvidor 63 e sua programação sociocultural foram reconhecidas pelo Edital nº 49/2018 da Política Nacional de Cultura Viva no Estado de São Paulo, tornando-se “Ponto de Cultura”.

Destaca-se que os espaços de troca e aprendizado são permanentes entre artistas e o público interessado, funcionando como uma Escola Livre de Artes, com diversas linguagens e metodologias de ensino, aprendizado e colaboração. Com o intercâmbio de saberes, referências e técnicas, é frequente que os artistas, nas mais diversas fases de seu aprendizado, tornem-se mais abertos à inovação criativa, ao cruzamento de linguagens e referências multiculturais e transtemporais. 

Os recursos eventualmente coletados, em atividades, fomento e venda de obras, ou por doações, são utilizados como prática de economia solidária, permitindo manutenções e reformas no prédio através de mutirões e aprendizado cotidiano (inclusive formando uma escola de construção civil). Com isso, o prédio recebe melhorias frequentes e não apresenta qualquer risco estrutural, mantendo atualizadas suas instalações elétricas e hidráulicas sempre que possível. 

As práticas solidárias, marcadores raciais fenotípicos e atitudinais, e modos de afetos no viver junto se estendem a diversas outras esferas da vida, como o cuidado e o apoio a mães e mulheres ou a quem tem enfrentado dificuldades e vulnerabilidades diversas — a Ouvidor 63 também abriga uma grande comunidade de artistas LGBTQIAP+. O grupo estabeleceu práticas de mediação de conflitos e tem regras para eventual exclusão de pessoas que cometerem ações não aceitáveis pelo grupo.

A Ouvidor 63 mantém ações ambientais relevantes, coletando, reciclando e utilizando materiais descartados em suas atividades, performances e obras. A reciclagem é determinante na segurança alimentar dos artistas-moradores, que coletam doações de alimentos, especialmente em feiras de rua e comércios, preparando comidas vegetarianas e veganas a partir de tradições e receitas latino-americanas. 

O grupo ainda mantém práticas de cultivo e acervo de sementes tradicionais, com plantas (incluindo plantas alimentícias não convencionais — PANCs) e hortas comunitárias em vários andares, terraços e na cobertura. Inscritas no programa “Sampa+Rural”, as hortas compõem uma frente ampla de estudos sobre a relação com a natureza, segundo as cosmopercepções ancestrais presentes na ocupação. Atualmente, a Ouvidor 63 reivindica, em contato com o precedente do “Corredor Verde do Butantã”, atenção dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Cultura de Paz e da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, para sua prática de reflorestamento de ruas, corações e mentes.

Tudo isso permite minimizar as trocas monetárias e a dependência por dinheiro e renda. As redes e práticas de solidariedade promovem modos de vida comunitários que são menos pressionados por demandas externas, encomendas, assalariamento ou outras formas de trabalho subordinado. Nesse contexto de grande autonomia em relação ao sistema vigente, as práticas artísticas inovadoras florescem. Esse território aberto, múltiplo e único se torna um espaço fértil para atividades livres e uma imaginação coletiva sem fronteiras, representando um verdadeiro “comum” em que a criação e a convivência se entrelaçam de maneira emancipadora.

Por isso, a Ouvidor 63 é mais do que apenas um local físico. É um espaço único de confluência de linguagens, práticas e saberes, um lugar vibrante e único, na integração entre arte e modos de vida, na construção de outros mundos possíveis. Através de exposições, performances, oficinas e debates, o espaço promove uma interação viva entre diferentes formas de expressão cultural e artística não hegemônicas.

Mostrando o interesse e a relevância pela experiência que ocorre na Ouvidor, já são 34 trabalhos acadêmicos (ou 49, incluindo o período de ocupação do MMC) e uma dezena de filmes-documentários de média e longa metragem (dois deles em cartaz em São Paulo atualmente), além de diversas reportagens na mídia impressa, digital e audiovisual. A Ouvidor 63 também tem mantido diversas parcerias e espetáculos com instituições culturais, como o SESC, uma exposição em preparação no Memorial da Resistência (antigo DOPS), além de colaboração intensa com instituições de ensino e pesquisa, como a Unifesp, a USP e a Fapesp (que financia projeto de pesquisa na ocupação com duração de 2 anos). 

A preservação da Ocupação Cultural Ouvidor 63 como Lugar relevante no “Livro de Registro dos Lugares” é crucial para valorizar as práticas culturais e organizativas que definem a própria natureza singular desse espaço de autogestão popular, produção artística e imaginação social. O reconhecimento oficial protegeria tanto o patrimônio material quanto o imaterial do local, para que continue a ser um ponto de referência para a cultura urbana e a invenção social em São Paulo e no Brasil.

De acordo com a Convenção Internacional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ratificada pelo Brasil em 2006, o patrimônio cultural imaterial inclui “lugares culturais” que são reconhecidos por comunidades e grupos como parte integrante de seu patrimônio cultural. A Ouvidor 63 é um desses lugares, servindo como ponto de convergência para diversas expressões culturais e sociais. 

A Ouvidor 63 exemplifica a continuidade histórica e a recriação cultural que caracterizam um “lugar” de importância cultural imaterial. As atividades realizadas nesse espaço, desde reuniões comunitárias e mutirões até expressões artísticas variadas, são práticas que se adaptam e evoluem com o tempo, sempre em resposta ao ambiente e à história do local. Esse processo de recriação constante promove um sentimento de identidade e continuidade, inclusive com o prédio, a rua e o bairro, essencial para a manutenção da diversidade cultural.

O conceito de “lugar” na Ouvidor 63 também inclui a intergeracionalidade, em que práticas e conhecimentos são passados de uma geração para outra, mantendo vivas as tradições culturais. O edifício é um ponto de encontro internacional, onde culturas de diferentes partes do mundo se cruzam, enriquecendo ainda mais o ambiente cultural. 

A Ouvidor 63 insere-se no Território de Interesse Cultural e da Paisagem, parte da Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (Lei nº 16.050/2014), atualmente em vias de regulamentação. Esse instrumento de gestão do patrimônio cultural reconhece a importância de lugares simbólicos para a identidade e a memória de grupos sociais, tratando as paisagens urbanas como territórios de memória e identidade social. Instituído através de um processo participativo envolvendo movimentos sociais e universidades públicas, o Território de Interesse da Cultura e da Paisagem (TICP) Paulista/Luz, que inclui o centro histórico da cidade, destaca a relevância de preservar modos de vida e elementos culturais significativos. Nesse contexto, a existência da Ocupação Cultural Ouvidor 63 constitui lugar de relevante valor histórico-cultural, contribuindo para a diversidade étnico-cultural e a luta pelo direito à cultura, memória e moradia popular no perímetro da TICP.

A Ocupação Cultural Ouvidor 63 também é um espaço de continuidade histórica intergeracional que desempenha um papel fundamental na memória, identidade e formação da sociedade brasileira, conforme previsto no Art. 1 do Decreto nº 3.551/2000. A Ouvidor não apenas perpetua a luta histórica por direitos fundamentais, como moradia e cultura, mas também atua como um ponto de encontro e preservação de diversas manifestações e formas de arte, muitas vezes ameaçadas pelas pressões da indústria cultural e econômicas, perda da memória histórica e prática de determinados fazeres e saberes. 

Como já mencionamos, inicialmente o edifício na rua do Ouvidor 63 insere-se na continuidade da luta por moradia no centro de São Paulo, sendo um símbolo de resistência e organização social. Desde a ocupação pelo Movimento de Moradia Centro (MMC) até a atual fase como centro cultural, o espaço tem sido um campo de mobilização social e participação direta, integrando universidades e instituições culturais em suas atividades. Essa trajetória de luta e colaboração multidisciplinar destaca a relevância nacional do local para a memória e a identidade brasileira, sublinhando a importância de proteger espaços que promovem os direitos humanos e culturais.

A Ouvidor 63 é um lugar relevante para a preservação e transmissão intergeracional de práticas culturais e artísticas: abriga uma diversidade de expressões culturais, funcionando como refúgio e ponto de encontro para artistas de rua e circenses, entre outros, cujas práticas e formas de sociabilidade são frequentemente marginalizadas pela indústria cultural e pelo sistema das artes dominantes. Há saberes ancestrais, afro-diaspóricos, indígenas (inclusive andinos), das comunidades rurais e periféricas, de países vizinhos ou distantes, que seguem ali vivos e mobilizados para produções artísticas contemporâneas. A Ouvidor 63 cumpre esse papel de oásis multicultural e transtemporal (incluindo noções plurais de temporalidade) em que esses artistas encontram um lugar onde podem continuar a exercer sua arte, mobilizar ancestralidades e manter suas tradições vivas, transmitindo esses conhecimentos às novas gerações e ao público urbano em geral.

Conforme estabelecido pelo Decreto nº 5.753/2006, que adota a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, a Ouvidor 63 se alinha aos critérios de proteção como patrimônio cultural imaterial devido à sua relevância para memória, identidade e formação da sociedade brasileira.

A Ouvidor 63 promove uma interação profunda entre diferentes gerações, valorizando as ancestralidades e práticas de vida comum. A comunidade adota modos de organização que refletem tradições coletivas, como o mutirão e a reunião geral semanal da comunidade, considerada tecnicamente uma “assembleia geral”. Esses encontros são marcados por uma participação inclusiva e um respeito prolongado pela fala de todos os participantes, incluindo crianças, reunidos em disposição circular. Essa abordagem não apenas facilita a transmissão de conhecimentos e práticas, como também promove um sentimento de pertencimento e continuidade entre os membros da comunidade, refletindo as marcas atitudinais de povos que sofreram genocídios coloniais.

A Ouvidor 63, como polo de diversidade artística, onde práticas e expressões artísticas tradicionais e contemporâneas se encontram e se renovam, abriga linguagens e técnicas artesanais tradicionais e ancestrais que são ali preservadas e transmitidas, proporcionando um ambiente de aprendizado e inovação contínua. A ocupação mantém um diálogo constante com os guardiães do conhecimento das fases anteriores do edifício, como o líder Gegê, além de professores e ativistas que participaram da defesa da moradia social e das práticas culturais. 

Esse diálogo é essencial para a revisitação e atualização do conhecimento específico da luta social por moradia no centro da cidade. A investigação contínua das raízes dessas lutas inclui a consideração de referências ancestrais em territórios plurais da América Latina, que chegam ao Ouvidor por meio de artistas nômades, promovendo trocas e hibridismos. A relevância da Ouvidor 63 para a identidade nacional e latino-americana é reconhecível nas diversas manifestações culturais que ocorrem no local, desde práticas típicas como trancismo capilar, capoeira e samba de cavaquinho até movimentos de vanguarda artística como o coletivo Lâmina e o projeto Motor Humano.  

Por isso, a Ouvidor 63 não é apenas um espaço local, é um ponto de convergência para práticas internacionais de itinerâncias e ocupações artísticas. Essas práticas servem como uma forma de defesa de conhecimentos e formas de vida com teor artístico inerente, bem como práticas relacionadas à natureza, sabedorias e cosmovisões plurais. O intercâmbio internacional de ideias e práticas enriquecem a diversidade cultural do espaço e promovem um entendimento mais amplo e inclusivo das expressões culturais e seus significados contemporâneos.

Assim, não se trata apenas de um espaço físico, mas um marco simbólico e histórico da resistência cultural e social na cidade e no continente. Sua proteção como patrimônio imaterial é essencial para garantir a continuidade e a transmissão de práticas culturais que são parte integrante da identidade brasileira, latino-americana e da memória coletiva de grupos que foram marginalizados ou subalternizados.

A Ocupação Cultural Ouvidor 63 é, por isso, um testemunho vivo da capacidade de transformação e resistência das comunidades, tornando-se um farol de diversidade, criatividade e inclusão. A proteção desse espaço, seu lugar e modos de vida e criação artística, permitirá que futuras gerações tenham acesso a um patrimônio único, que reflete a complexidade e a riqueza da experiência urbana e multicultural em São Paulo. A justificativa para a proteção desse local não se baseia apenas na preservação do prédio, mas na salvaguarda de um Lugar onde a cultura, a arte e a luta por direitos se encontram e se fortalecem mutuamente há décadas.

Ao reconhecer a Ouvidor 63 como um Lugar relevante de cultura imaterial, o Estado brasileiro honra seus compromissos internacionais, conforme estabelecido pela UNESCO. A sua proteção é essencial para preservar a rica trama de práticas culturais que ele abriga, garantindo que essas tradições e expressões continuem a ser uma parte vibrante do patrimônio cultural brasileiro.